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3 DIREITO À MORADIA COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA

3.2 Direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade

3.2.3 Direito à igualdade

A igualdade, segundo Kelsen (1979), não “pressupõe que todos os homens sejam iguais; pelo contrário, ela pressupõe a sua desigualdade. Todavia, exige que não se faça acepção de qualquer desigualdade no tratamento dos homens.” (KELSEN, 1979, p. 66). É esse o sentido e a extensão do princípio da igualdade, que, embora sempre ligado à democracia, nunca foi postulado pela burguesia com a intensidade do princípio da liberdade, porque isso prejudicaria os seus interesses.

A liberdade sempre teve mais ênfase por representar a possibilidade de dominação da classe burguesa e sua democracia liberal. Todavia, é inconcebível pensar-se a democracia sem que se tenha o princípio da igualdade, como seu signo fundamental.

Desde os primórdios, a igualdade é um princípio que integrou o espírito de conquista do homem, mas sempre reconhecido no seu sentido jurídico-formal, ou seja, igualdade perante a lei. A esse respeito, Canotilho (2003) observa com a sua peculiar juridicidade que a “igualdade jurídica surge, assim, indissociável da própria liberdade individual”, e que “ser igual perante a lei não significa apenas a aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos.”, pois, “para todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou resultados jurídicos.” (CANOTILHO, 2003, p. 426-427)

A Constituição brasileira em vigor abre o seu capítulo de direitos e deveres individuais dizendo que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (artigo 5º., caput). É preciso, todavia, fazer a correta interpretação da disposição constitucional, pois os homens somente serão iguais se as desigualdades entre eles forem observadas. Em não se observando essas desigualdades, o homem só terá igualdade jurídico-formal. Kelsen (1979, p. 68) é claro: “só os que são iguais devem ser tratados por forma igual”, lembrando, porém, que esta formulação está incompleta e induz em erro, pois:

Com efeito, se apenas os que são iguais devem ser tratados igualmente e não há apenas indivíduos iguais mas também os há desiguais, os que são desiguais devem ser tratados desigualmente. Por isso, o princípio plenamente formulado, diz: Quando os indivíduos são iguais – mais rigorosamente: quando os indivíduos e as circunstâncias externas são iguais –, devem ser tratados igualmente, quando os indivíduos e as circunstâncias externas são desiguais, devem ser tratados desigualmente. Este princípio postula que as desigualdades relativamente a certas qualidades devam ser consideradas e que as desigualdades quanto a outras qualidades não devam ser levados (sic) em conta.

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O princípio não é, pois, de forma alguma, um princípio de igualdade. Ele não postula um tratamento igual, ou melhor, postula não apenas um tratamento igual mas também um tratamento desigual. (KELSEN, 1979, p.70).

O princípio da igualdade reflete uma exigência lógica, sem deixar de ser jurídica, pois os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente. Aqueles que têm as mesmas qualidades são iguais e não podem ser tratados de forma desigual. É fácil reconhecer a igualdade entre os seres humanos, em sua essência, pois são todos da mesma espécie. A “igualdade aqui se revela na própria identidade de essência dos membros da espécie. Isso não exclui a possibilidade de inúmeras desigualdades entre eles. Mas são desigualdades fenomênicas: naturais, físicas, morais, políticas, sociais, etc.” (SILVA, 2001, p. 216).

Entretanto, não se afirma a existência de uma igualdade que renegue as desigualdades naturais, pois elas são inafastáveis e o respeito que se deve a elas não infringe o princípio; ao contrário, enaltece-o. Os homens, como seres humanos, são todos iguais, não há dúvida, o que não impede que, entre eles, existam desigualdades naturais, físicas, políticas, sociais, etc. A exigência de tratamento de forma igual aos iguais e desigual aos desiguais, “não é sequer uma exigência da justiça, mas uma exigência da lógica” (KELSEN, 1979, p. 72). É lógica a conseqüência geral de toda norma que estabeleça o tratamento igualitário aos indivíduos que se encontram sob as mesmas circunstâncias.

A norma será aplicada não a um caso, mas a um sem número deles, desde que presentes os pressupostos por ela exigidos. A propósito, lembra Kelsen (1979), “o princípio de que, quando as condições são iguais, é, na verdade, a conseqüência lógica do carácter geral da norma que prescreve que, verificado um determinado pressuposto, se deve produzir determinada conseqüência”. (KELSEN, 1979, p. 75).

A igualdade está ligada à lei e, como tal, foi inserida na Constituição Federal para significar que os desiguais devem ser tratados com igualdade, dentro das suas desigualdades, pois “não se aspira uma igualdade que frustre e desbaste as desigualdades que semeiam a riqueza humana da sociedade plural, nem se deseja uma desigualdade tão grande e injusta que impeça o homem de ser digno em sua existência e feliz em seu destino.” (ROCHA, 1990, p. 118).

A notória observação de Aristóteles de que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais deve ser acolhida como ponto de partida, negando-se-lhe “o caráter de termo de chegada, pois entre um e outro extremo serpeia um fosso de incertezas cavado sobre a intuitiva pergunta que aflora o espírito: Quem são os iguais e quem são os

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Entre as pessoas, são perceptíveis as diferenças, mas elas não relevam, no entanto, a assunção de critérios justificadores de tratamentos dessemelhantes. A paridade legal é insubstituível, pois, já advertia Kelsen (1979) “Com efeito, a chamada igualdade perante a lei não significa qualquer outra coisa que não seja a aplicação legal, isto, correcta, da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter [...]” A garantia da igualdade perante a lei significa que os órgãos aplicadores do direito só podem admitir as diferenças existentes na lei “mesmo que ela não prescreva um tratamento igualitário mas um tratamento desigual”. (KELSEN, 1979, p. 78).

A igualdade não permite discriminações. Mas, na esteira do ensinamento de Mello (2005), há discriminações jurídicas, embora o princípio da igualdade impeça “tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais.” (MELLO, 2005, p. 12),

Isto significa que as normas legais podem discriminar situações e, por isso, algumas pessoas têm determinados direitos e obrigações que outras não têm, como, por exemplo: as pessoas maiores de idade têm direitos que os menores relativa e absolutamente incapazes não têm; a aposentadoria dos homens exige 35 anos de tempo de serviço e contribuição ao órgão previdenciário, exclusive, aquela por invalidez, a das mulheres 30 anos; funcionários públicos têm estabilidade, os de economia mista e de empresas privadas não têm; os trabalhadores domésticos não têm todos os direitos dos demais trabalhadores celetistas; o fundo de garantia por tempo de serviço não é obrigatório para os empregados domésticos, que só fazem jus ao seguro-desemprego se o empregador realizou depósitos de fundo de garantia e não recebem, também, horas extras. Os empregados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não têm estabilidade, mas têm fundo de garantia e seguro-desemprego e, desde que a jornada de trabalho ultrapasse 44 horas semanais, fazem jus ao recebimento de horas extras. O princípio da igualdade impõe discriminação, sem, todavia, permitir a existência de lei discriminatória. O tratamento desigual, como fundamento do princípio da igualdade, está alicerçado no conteúdo da lei, não havendo “igualdade no não direito”, devendo ser preservada e delineada a igualdade material, por meio da lei, para “tratar-se por ‘igual o que é igual e desigualmente o que é desigual’” (CANOTILHO, 2003, p. 427-428), sem prestigiar, é claro, o arbítrio que se configura quando os indivíduos em situações iguais são tratados desigualmente. É justamente a igualdade jurídica que dá suporte à “realização de todas as desigualdades humanas e as faça suprimento ético de valores poéticos que o homem possa desenvolver” (SILVA, 2007, p. 70).

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Rui Barbosa, na célebre Oração aos moços, em 1917, afirmou:

A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros, no céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados.

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.

Infere-se que o principio da igualdade consiste em proporcionar oportunidades iguais a todos, pois, somente por essa ótica, poder-se-á entender o inciso XXXI do artigo 7º da CF/1988, que, ao proibir diferenças salariais e definir critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência, não pretendeu, e nem pretende colocá-lo em melhores condições que os demais cidadãos, pois objetivou, apenas, a igualdade de condições.

Exemplos de igualdade material estão presentes no inciso XXX do mesmo artigo 7º da CF/1988. A República Federativa do Brasil tem como um dos seus objetivos a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III), repudiando toda e qualquer discriminação (artigo 3º, IV). Nos artigos 170, 193, 196 e 205 da Constituição Federal vigente estão presentes, também, preceitos de igualdade material.

As diferenças não impedem a existência e o exercício do princípio da igualdade, pois o que não se admite são critérios que validem tratamentos jurídicos dessemelhantes. São “nitidamente diferenciáveis os homens altos dos homens de baixa estatura”, mas não se admite lei que, em função disso, estabeleça “que os indivíduos altos têm direito a realizar contratos de compra e venda, sendo defeso o uso deste instituto jurídico às pessoas de amesquinhado tamanho.” (MELLO, 2005, p. 11-12).

O princípio da igualdade é um princípio de Estado de direito, mas é também “um princípio de Estado social”, pois assume relevo como “princípio de igualdade de oportunidades e de condições de vida” (CANOTILHO, 2000, p. 430).

É inegável a desigualdade dos homens sob os mais variados aspectos, o que não impede de descrevê-los e vê-los como iguais, pois, cada um nasce com características inteligíveis

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para, dentro de sua realidade individual, existir. Existir, formal e materialmente, sem esquecer que a verdadeira liberdade se exerce no plano das idéias. O pensar para si, ainda que não se o explicite, revela o verdadeiro exercício da igualdade.

A ninguém é proibido pensar e formatar a igualdade que pretende para si, para os outros e para o mundo. Se essa igualdade não é possível, pelos mais variados motivos, não se pode, contudo, deixar de querê-la, pois, só assim, se haverá de ter, em forma e em exercício, a liberdade, como princípio e como limite para as ações dos homens.