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1.7 Função social da propriedade urbana

1.7.2 Uso da propriedade em benefício da coletividade

O homem é dotado de inteligência e vontade e cada um tem uma escala de valores, o que torna difícil estabelecer uma finalidade que atenda os interesses individuais e da sociedade. Essa finalidade deve representar um valor que exteriorize um consenso da e para a sociedade, um bem comum capaz de atender as mais diversas preferências.

A conceituação de bem comum é difícil, pois a sua abrangência deve ser ampla o bastante para alcançar todos os homens, não obstante os múltiplos interesses e objetivos individuais. A finalidade da sociedade humana deve ser o bem comum, de natureza universal, reconhecido por todos os seus integrantes.

Respeitadas as reconhecidas diferenças entre as pessoas, é esse bem comum que vai permitir a cada homem, a cada grupo, a realização dos seus objetivos particulares, sem prejuízo do objetivo da sociedade. A satisfação dos fins particulares, acatados os interesses da sociedade, deve ser alcançada por todos os seus integrantes.

Um conceito extremamente feliz de bem comum, verdadeiramente universal, diz Dallari, foi formulado pelo Papa João XXIII, na Encíclica II, 58: “o bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”. (DALLARI, 2001, p. 24)

Os objetivos sociais e individuais devem atentar para o bem comum, cuja realização está na raiz da função social da propriedade. A utilização da propriedade, em atendimento a sua função social, não é mera recomendação aos proprietários, mas uma determinação de norma cogente.

O uso da propriedade não pode ser nocivo à sociedade, sob pena de não se cumprir a sua finalidade social. Na utilização da propriedade privada, a coletividade deverá ser levada em

conta, sem se obrigar, contudo, o proprietário a desenvolver sua atividade no interesse exclusivo da sociedade.

Uma dificuldade, porém, é definir o conteúdo do dever fundamental relativo à função social da propriedade e, por conseguinte, o seu efetivo cumprimento. A Constituição de 1988 garante o direito de propriedade e que “atenderá a sua função social” (artigo 5º, XXIII). Isto significa dizer que a propriedade é um direito e não uma função social. Mas, é um direito com uma função social.

Ao tempo em que estabelece a função social, a Constituição coloca a propriedade ao lado da livre iniciativa e da propriedade privada, no artigo 170, caput e incisos II e III16, atribuindo ao Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, o exercício de fiscalização, incentivo e planejamento (determinante, para o setor público e indicativo para o setor privado).

Há uma clara contraposição de normas, quando se dá ao privado a mesma conotação de público, já que a propriedade privada tem a sua utilização condicionada ao cumprimento de sua função social. Percebe-se que o espírito da lei é, reconhecendo a propriedade privada, subordinar o seu exercício ao bem comum, o que é correto, haja vista a finalidade maior da norma, o cidadão e a sua ambiência. Destaca-se a lição de Arendt (2003):

A profunda conexão entre o privado e o público, evidente em seu nível mais elementar na questão da propriedade privada, corre hoje o risco de ser mal interpretada em razão do moderno equacionamento entre a propriedade e a riqueza, de um lado, e a inexistência de propriedade e a “pobreza” de outro. Esta falha de interpretação é tão mais importuna quanto ambas, a propriedade e a riqueza, são historicamente de maior relevância para a esfera pública que qualquer outra questão ou preocupação privada, e desempenharam, pelo menos formalmente, mais ou menos o mesmo papel como principal condição para a admissão do indivíduo à esfera pública e à plena cidadania. (ARENDT, 2003, p. 71)

Se a propriedade é exercida de maneira a ofender o que é público, o seu uso e domínio deverão ser objeto de exame pelo Poder Judiciário, pois o respeito à função social não é uma faculdade, mas, sim, uma obrigação.

A Constituição brasileira, em relação à propriedade rural e à propriedade do solo urbano, explicita como adequada a utilização dos bens em proveito da coletividade. O artigo 182, § 2º,

16 Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:[...] II – propriedade privada;

da Constituição em vigor, dispõe que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor”. Faculta-se ao Poder público municipal, mediante lei específica para áreas incluídas no plano diretor, exigir do proprietário de terreno não-edificado, subutilizado ou não utilizado, o adequado aproveitamento.

As penas sucessivas pelo inadequado aproveitamento da propriedade são o parcelamento do solo ou edificação compulsória, imposto predial progressivo e desapropriação com pagamento por meio de títulos da dívida pública e prazo de resgate de até 10 anos, conforme disposto no § 4º do artigo 182 da Constituição de 1988.

O Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257/2001) regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição vigente, tratando da função social da propriedade e ofertando ao administrador público, um rol de medidas que devem ser tomadas a fim de que a propriedade urbana seja utilizada em prol da coletividade.

A Constituição Federal trata da função social, mas o legislador não definiu o conteúdo da função social da propriedade, o que não dispensa o cumprimento da norma constitucional. A Constituição traz os direitos fundamentais e a eles, por óbvio, se contrapõem os deveres fundamentais. Como os direitos fundamentais prescindem de intervenção legislativa para o seu cumprimento, ou seja, têm aplicação imediata, os deveres fundamentais devem ter o mesmo tratamento, isto é, são de exigibilidade imediata.

Assim, eventual falta de lei municipal específica pode obstar a aplicação das sanções impostas no § 4º do artigo 182 da Constituição vigente, mas não pode impedir que, em processo desapropriatório ou em ação relativa à posse, seja reconhecido que a propriedade não cumpre o seu dever fundamental de dar uma destinação coletiva ao imóvel.

Nesse ponto, é necessária uma análise sistêmica das normas, pois o proprietário não pode ser compelido a desempenhar atividades no interesse exclusivo da sociedade, em prejuízo próprio. “O limite à imposição de exigências sobre a propriedade privada é a viabilidade econômica do empreendimento”. (PINTO, 2005, p. 186).

As atividades deficitárias não podem ser impostas ao setor privado, pois constituem campo de atuação pública, que, no seu cumprimento, poderá adquirir o imóvel pelo valor de mercado ou desapropriá-lo na forma legal. A norma constitucional, ao ligar o direito de propriedade a um dever de atendimento em benefício da coletividade, impõe que a sua

III – função social da propriedade; [...]

utilização não seja nociva, o que significa o uso de acordo com a própria natureza do bem, dentro de sua destinação normal.

A título de exemplo, uma empresa não tem o dever de cumprir sua função social, prestando serviços de benemerência, incompatíveis com a sua natureza, que, no sistema econômico, tem a atividade direcionada, primariamente, para a obtenção de lucros. O proprietário de um terreno não pode ser compelido a construir uma creche para uso público no seu terreno; para tanto, o Poder público deve comprar ou desapropriar a área.

Cabe ao Poder público cumprir seus deveres de oferecer serviços de natureza social, em especial, educação, saúde, previdência e moradia popular, porque, embora possam ser prestados por empresas privadas, não se lhes pode exigir que o façam graciosamente ou em iguais condições em que a administração pública pode, e deve, fazer.