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Artrite Séptica

No documento SOS Plantão (OCR).pdf (páginas 193-196)

Vincenzo Giordano • Rodrigo Simões Eleutério

INTRODUÇÃO

Artrite séptica consiste no processo inflamatório-infeccioso de uma ou mais articulações. Os principais patógenos das articulações são as bactérias, porém os vírus e os fungos não devem ser esquecidos. Segundo esse conceito, a bactéria sempre estará presente na articulação.

FISIOPATOLOGIA

A invasão bacteriana da articulação ocorre por três mecanismos principais: (a) contiguidade: in­ fecção bacteriana em tecidos próximos à articulação e, por disseminação, a bactéria alcança o espaço articular (p. ex., úlceras infectadas, erisipela, celulite e osteomielite [ossos cuja metáfise tem posição intra-articular]); (b) inoculação direta: a bactéria é inoculada diretamente na articulação, devido a um trauma articular penetrante, mordedura de animais, punção articular, artroscopia ou procedi­ mentos cirúrgicos contaminados; (c) via hematogênica: o paciente apresenta bacteriemia e, através da circulação, a bactéria alcança a articulação. A principal via de contaminação das articulações é a hematogênica.

Após invadir o espaço articular, a bactéria rapidamente se multiplica e produz enzimas agres­ sivas para a articulação. O organismo reage por meio de um processo inflamatório agudo e intenso. Na ausência de tratamento adequado, a infecção irá progredir com erosão e destruição dos tecidos articulares. A cartilagem articular, a cápsula, os ligamentos e o tecido ósseo subcondral podem ser parcial ou totalmente destruídos. O paciente pode apresentar subluxações ou luxações de difícil tra­ tamento ou mesmo deformidades articulares permanentes.

Para melhor compreensão do quadro clínico, é necessário conhecer as bactérias mais prevalen- tes conforme cada faixa etária e a atividade sexual:

• De 0 a 30 dias: a bactéria mais comum é o Staphylococcus aureus. Outras: Streptococcus agalactiae e

bactérias entéricas gram-negativas.

• De 30 dias a 5 anos: o principal agente etiológico é o Staphylococcus aureus, porém o Haemophilus

influenzae pode ocupar o primeiro lugar no grupo de crianças não vacinadas. Outras bactérias: Streptococcus pneumoniae (pneumococo) e Streptococcus pyogenes.

• De 5 a 12 anos: Staphylococcus aureus mantém a primeira posição, seguido pelo pneumococo e o

Streptococcus pyogenes. Haemophilus influenzae torna-se incomum.

• De 12 a 35 anos: pacientes sexualmente ativos podem apresentar a Neisseria gonorrhoene (gonoco-

co) como principal agente etiológico. Staphylococcus aureus ocupa o segundo lugar. Outras bacté­ rias: pneumococo e Streptococcus pyogenes.

• Acima de 35 anos e idosos: a incidência da infecção gonocócica cai e o Staphylococcus aureus volta

a ocupar a primeira posição. Outros agentes são: pneumococo, Streptococcus pyogenes, Staphylococ­

cus epidermidis (importante nos pacientes com próteses articulares), gram-negativos entéricos e

anaeróbios.

QUADRO CLÍNICO

O quadro clínico varia conforme a presença do gonococo na articulação. Muitos autores divi­ dem a artrite séptica em "gonocócica" e "não gonocócica":

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• A artrite séptica "não gonocócica" é causada pelo Staphylococcus aureus e outras bactérias, e geralmente é monoarticular. Pode afetar qualquer articulação, mas destacam-se as do joelho, tornozelo, quadril, ombro e punho. A articulação infectada apresenta um quadro inflamatório agudo, com dor (contínua, progressiva e de forte intensidade), aumento de volume, calor, ver­ melhidão (hiperemia) e comprometimento importante do movimento articular (o paciente não consegue movimentar ou o faz com extrema dificuldade). Quando há envolvimento de uma ou mais articulações dos membros inferiores, o paciente geralmente não é capaz de apoiar o pé no solo, principalmente nos casos de infecções do quadril. O aumento de volume da articulação se deve ao edema tecidual e também ao acúmulo de líquido sinovial e/ou material purulento dentro da articulação.

O paciente pode apresentar também sinais e sintomas sistêmicos, como febre alta (> 39°C), calafrios, queda do estado geral, prostração e anorexia.

Atenção: as articulações mais profundas, como as de quadril, ombros e sacroilíacas, podem exibir poucos achados inflamatórios.

• A artrite séptica "gonocócica" (por Neisseria gonorrhoeae) é típica do paciente jovem e sexualmente ativo.

Em até 30% dos casos, o gonococo produz um quadro de monoartrite ou oligoartrite muito semelhante ao da infecção não gonocócica.

Nos demais pacientes, a infecção gonocócica produz um quadro de poliartrite migratória (múltiplas articulações com artrite e artralgia). Esses pacientes podem apresentar lesões cutâ­ neas, que variam de vesículas a pústulas e se formam, principalmente, nas extremidades (mãos). As lesões cutâneas são indolores e apresentam um componente hemorrágico e/ou necrótico no centro. Os achados incluem calafrios, febre alta e múltiplas tenossinovites (inflamação da bainha em torno dos tendões). Em geral, essa fase poliarticular evolui para uma artrite monoarticular ou oligoarticular, semelhante à artrite séptica não gonocócica.

CONSIDERAÇÕES

• Fatores de risco para artrite séptica: próteses articulares, trauma e lesões osteoarticulares pree­

xistentes; pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES), febre reumática, osteoartrose e artrite reumatoide; usuários de substâncias injetáveis, idosos, imunocomprometidos (AIDS) ou imunos- suprimidos (p. ex., corticoides, infliximabe, metotrexato); pacientes que necessitam de hemodiáli­ se regular; atividade sexual sem preservativos, diabetes mellitus, infecções próximas à articulação, punções articulares e outros procedimentos invasivos.

DIAGNÓSTICO

O diagnóstico é, principalmente, clínico, apoiado por exames complementares laboratoriais e de imagem.

Na suspeita de artrite séptica, deve-se sempre realizar punção articular (artrocentese) precoce- mente. O líquido sinovial recolhido será submetido à análise laboratorial. A artrocentese com análise do líquido sinovial é o exame mais importante na conduta diagnostica.

Os principais parâmetros são: contagem de leucócitos totais e diferencial, aspecto do líquido (claro, turvo, supurativo, hemorrágico), glicose, proteína total, LDH, bacterioscopia com coloração

pelo Gram e cultura do líquido sinovial. Estes dois últimos parâmetros compõem o estudo bacte­

riológico do líquido sinovial e são de grande importância para confirmação diagnostica. Lembre-se: líquido sinovial é sempre estéril, por isso exames bacteriológicos positivos identificam a infecção. A presença de pus na punção já confirma a infecção.

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A punção do joelho é de fácil realização, porém articulações mais "profundas", como as de ombro, quadril e sacroilíacas, são de difícil ou arriscada punção; desse modo, deve ser feita por ar- troscopia ou mesmo por procedimento cirúrgico.

• Outros exames laboratoriais que devem ser solicitados: hemograma completo, velocidade de he- mossedimentação (VHS), proteína C reativa (PCR) e hemoculturas.

• Exames de imagem disponíveis: radiografias da articulação em AP e perfil, ultrassonografia (USG), TC, cintilografia e RNM. Esses exames, quando indicados, vão ajudar na suspeita diagnos­ tica ou, então, no diagnóstico diferencial. Além disso, auxiliam o ortopedista na avaliação do grau de lesão articular e no planejamento da intervenção cirúrgica. A USG pode ser útil para detectar líquido na cavidade articular e guiar a punção. As x-adiografias podem revelar aumento do espaço articular, sugerindo aumento do líquido na articulação, ou diagnosticar uma subluxação/luxação. Recomenda-se que os primeiros exames de imagem solicitados sejam as radiografias e a USG. A TC, a RNM e a cintilografia ficam reservadas para casos de dúvida diagnostica, investigação de complicações e planejamento cirúrgico. Quando o paciente é uma criança, a RNM exige sedação/ anestesia para sua realização, o que a torna mais restrita.

Interpretação dos exames laboratoriais

• Na artrite "não gonocócica", a contagem de leucócitos no líquido sinovial fica entre 20 mil e 240 mil células/mm3. Com frequência, o número supera 100 mil células/mm3, com predomínio de neu- trófilos. O LDH e as proteínas totais encontram-se elevados e a glicose está baixa. Essas alterações bioquímicas, apesar de frequentes, não são específicas. As hemoculturas podem positivar em mais de 50% dos pacientes, a bacterioscopia é positiva em até três quartos dos casos e a cultura do líqui­ do sinovial pode identificar a bactéria em até 80% das vezes. Esses exames bacteriológicos são de extrema importância para confirmação diagnostica. O hemograma pode revelar leucocitose, com neutrofilia e desvio à esquerda. A PCR e o VHS estão aumentados desde o início da infecção. A PCR é um bom parâmetro para avaliar o tratamento e a remissão da doença, devendo, portanto, ser solicitada periodicamente.

• Na artrite "gonocócica", a bacterioscopia e as culturas são negativas na maioria dos casos. Desse modo, exames bacteriológicos negativos não excluem a possibilidade de artrite séptica por go- nococo. Hemoculturas coletadas ainda na fase de poliartrite podem ser positivas em até 45% a 50% dos casos. Na fase de monoartrite, as hemoculturas são negativas em quase 90% dos casos. A cultura do líquido sinovial na fase de monoartrite é positiva em 30% a 35% das vezes. A contagem de leucócitos do líquido sinovial está aumentada, porém dificilmente supera 100 mil células/mm3. A glicose encontra-se baixa e o LDH e as proteínas totais, elevados. VHS e PCR estão aumentados. Quando persiste a dúvida diagnostica, alguns autores sugerem que se realize uma cultura de material recolhido em região genital, reto e orofaringe, a fim de isolar o gonococo, com elevadas chances de positividade das culturas.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Artrites reativas e outras espondiloartropatias soronegativas, artrites fúngicas, virais ou por micobactérias, artrite do LES, febre reumática, artrite reumatoide e osteoartrose, traumas articula­ res, fraturas, osteomielites, bursites infecciosas, infecções de tecidos adjacentes à articulação (p. ex., erisipela, celulite, abscessos), gota, pseudogota e artrites associadas à infecção pelo vírus da imuno­ deficiência humana.

COMPLICAÇÕES

D estruição de tecidos articulares, subluxações e luxações de difícil tratamento, infecção de teci­

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metáfise intra-articular, como as de quadril, ombro, cotovelo (cabeça do rádio) e tornozelo (maléolo lateral).

TRATAMENTO

O tratamento da artrite séptica baseia-se na antibioticoterapia adequada ("B"), no controle dos

sinais e sintomas do paciente ("A") e na drenagem da articulação ("C "). O tratamento sempre é feito

em regime de internação hospitalar.

Medidas de suporte

Avalie a necessidade de antitérmicos e analgésicos (p. ex., dipirona e paracetamol), anti-infla-

matórios (p. ex., ibuprofeno) e antieméticos (p. ex., metoclopramida). Realize o controle hidroeletro-

lítico e ofereça suporte nutricional adequado. A escolha dos medicamentos para tratamento sintomá­ tico depende da experiência pessoal do atendente e da disponibilidade do serviço. Imobilização da

articulação está sempre recomendada, sendo bastante útil, principalmente quando existe instabilida­

de, devendo ser preferencialmente realizada com talas gessadas, mantidas por 10 a 30 dias.

Antibioticoterapia empírica

No início do tratamento, opta-se pela antibioticoterapia empírica, com administração EV dos medicamentos, lembrando sempre que o Staphylococcus aureus é o patógeno mais prevalente em qual­ quer faixa etária. Após alguns dias, conforme a melhora clínica, opta-se pela via oral. Os fármacos empíricos podem ser substituídos por antibióticos específicos conforme cheguem os resultados dos exames bacteriológicos.

A escolha dos medicamentos empíricos é influenciada pela idade do paciente e o quadro clínico apresentado:

• De 0 a 30 dias: associação de oxacilina + gentamicina.

• De 30 dias a 5 anos: associação de oxacilina + ceftriaxona (é necessário cobrir S. aureus e H. in-

flueiizae), especialmente em crianças não vacinadas.

• Crianças > 5 anos, adolescentes e adultos: oxacilina sempre, podendo associar-se ceftriaxona para pacientes com risco de gonococo. Diante da incerteza, inicie as duas simultaneamente.

• Presença ou suspeita de MRSA (Staphylococcus aureus resistente à meücilina): a oxacilina deve ser

substituída por vancomicina.

Quadro 35.1 Doses dos antibióticos

Oxacilina - de 0 a 30 dias: 25 a 50mg/kg/dia, EV, de 6/6h; crianças até 40kg: 50 a100mg/kg/dia, EV, em intervalos de 6 /6 h ; crianças > 40kg e adultos: 250 a 1 .OOOmg/dose, EV, de 6/6h

Gentamicina - de 0 a 30 dias: 6,0 a 7,5mg/kg/dia, EV, de 8/8h

Ceftriaxona - crianças até 50kg: 20 a 80mg/kg, EV, 1 x/dia; crianças > 50kg e adultos: 1 a 2g, EV, 1 x/d ia

Vancomicina - adultos: 500mg, EV, de 6/6h, ou 1g, EV, de 12/12h; crianças de 1 mês a 12 anos: 10mg/kg/dose, EV, de 6/6h, ou 20mg/kg/dose, EV, de 12/12h

O tempo de antibioticoterapia varia de 2 a 6 semanas para as infecções "não gonocócicas" e de 7 a 10 dias para as infecções pelo gonococo. Nos casos em que não há melhora clínica do paciente, torna-se necessária a revisão da terapia antibiótica, o que aumenta o período de uso dos medicamen­ tos e o tempo de internação hospitalar.

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