Andréa Povedano • Rodrigo Simões Eleutério
INTRODUÇÃO
Os traumatismos abdominais são divididos em: traumatismo penetrante e traumatismo fecha
do (contuso). No penetrante, existe uma comunicação entre a cavidade abdominal e o meio externo.
Por outro lado, no traumatismo contuso, não existe violação da cavidade abdominal, mas a força/ energia do trauma pode produzir hemorragias ou lesões de órgãos intra-abdominais (p. ex., esmaga mentos, compressão, desaceleração súbita).
Atenção: o objetivo da investigação inicial do traumatismo abdominal na sala de emergência não é saber qual órgão foi lesionado especifi camente, mas pesquisar se existe lesão intra-abdominal, quais exames complementares serão necessários para confirmação e se o paciente é candidato ou não a um procedimento cirúrgico (geralmente laparotomia exploradora).
Todo médico deve saber conduzir a investigação inicial, porém é essencial que o paciente tam bém seja avaliado ou acompanhado por um cirurgião geral.
Lembre-se que a hemorragia intra-abdominal é a principal causa de hipotensão/choque no trau ma e esses pacientes precisarão de reposição de volume (Ringer lactato, SF 0,9% ou mesmo hemo transfusão) para permanecerem hemodinamicamente estáveis.
QUANDO SUSPEITAR DE TRAUMATISMO ABDOMINAL
Seguem as principais situações em que vale a pena suspeitar do envolvimento abdominal no trauma:
• O próprio paciente relata história compatível com traumatismo abdominal (agressões, facadas, colisões, lesão por arma de fogo etc.).
• Lesões na pele ou parede do abdome (sinal do cinto de segurança, hematomas e equimoses, san- gramentos, lacerações e perfurações etc.).
• Paciente evoluindo com hipotensão ou choque (principalmente se não há outras causas possíveis, como fratura de pelve e sangramentos externos ou torácicos). A suspeita também é importante nos pacientes instáveis que permanecem respondendo mal à infusão de volume.
• Achados de irritação peritoneal ao exame físico. • Dor abdominal; distensão abdominal.
• Paciente politraumatizado.
• Quando há suspeita de fratura de pelve (bacia instável, equimoses, dor etc.).
• Fraturas dos arcos costais inferiores (aumentam o risco de lesão esplénica ou hepática). • Toque retal ou vaginal com alterações, presença de sangue ao toque e hematúria.
INVESTIGAÇÃO, CONDUTA DIAGNOSTICA E TERAPÊUTICA
A primeira etapa do atendimento sempre é o exame primário do trauma ("ABCDE"), assegu rando a estabilidade respiratória e hemodinâmica do paciente, bem como um exame neurológico direcionado.
Diante da suspeita de traumatismo abdominal, será necessário um exame físico rápido e dire cionado, ainda durante o exame primário do trauma. Realizam-se inspeção, ausculta, percussão e
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palpação do abdome, buscando evidências de lesão intra-abdominal, com destaque para: sinais de irritação peritoneal, perfurações da parede, pneumoperitônio, equimoses, lesões de pele, distensões, retrações, hipotensão, choque, ou mesmo lesões em outros sistemas. Também é importante inspecio nar pelve, períneo e nádegas e avaliar a estabilidade da bacia (suspeita de fratura pélvica).
O toque retal e vaginal faz parte do exame físico do traumatismo abdominal e é indispensável
nos pacientes graves, inconscientes ou com forte suspeita de lesão abdominal e/ou fratura pélvica exposta (radiografia panorâmica de bacia pode ser solicitada durante o exame primário).
Durante o exame físico, o atendente sempre deve classificar como traumatismo penetrante, fe chado ou misto (explosões).
A seguir encontra-se a sugestão de conduta diante de traumatismo abdominal:
Traumatismo abdominal penetrante
Existem diversas causas para um traumatismo abdominal penetrante, principalmente armas de fogo (projétil) e armas brancas (facas, punhal etc.).
Perfuração por arma de fogo
Na ferida abdominal penetrante por arma de fogo, está sempre indicada a laparotomia explo radora (independentemente da situação da clínica do paciente), pois o projétil pode adquirir trajetos variados e, na imensa maioria dos casos, existe lesão de víscera (principalmente intestinos, fígado e grandes vasos).
Perfuração por arma branca
Estima-se que 30% a 40% das lesões abdominais penetrantes por arma branca podem não le sionar os órgãos intra-abdominais apesar da perfuração, por isso é importante investigar se há lesão intra-abdominal. Os órgãos mais lesionados são fígado, intestino delgado, diafragma e colo.
• Paciente sintomático: laparotomia exploradora está indicado sempre que o paciente tem história de traumatismo abdominal penetrante (p. ex., arma branca) e está sintomático, isto é, apresentan do: (1) vísceras visíveis ou se exteriorizando, (2) sinais de irritação peritoneal ou (3) instabilidade hemodinâmica (hipotensão/choque). Nesse grupo de pacientes, basta o exame físico para indica ção do procedimento cirúrgico imediato (laparotomia).
• Paciente assintomático: na ausência de sintomas, a conduta diagnostica vai variar conforme o local da perfuração (parede abdominal anterior ou flancos e dorso):
- Penetração na parede anterior do abdome (paciente assintomático): com anestesia local e uma luva estéril, o médico deve fazer uma exploração digital da ferida e investigar se a pene tração de fato alcança a cavidade abdominal. Se o dedo do examinador alcançar a cavidade abdominal, estará indicada a laparotomia exploradora (se disponível, TC ou a videolapa- roscopia podem ser empregadas para confirmar a lesão dos órgãos intra-abdominais, antes de se recorrer à laparotomia). Se o dedo não alcançar a cavidade abdominal, esse paciente pode ser acompanhado com exames físicos seriados (6/6h) pelas próximas 48 horas e sutura da lesão (principalmente em caso de dúvida). Nos casos duvidosos, podem ser empregados exames de imagem como TC, US, radiografias contrastadas ou videolaparoscopia (de acordo com o protocolo de cada hospital).
- Penetração em flancos ou dorso (paciente assintomático): risco aumentado para lesão de es truturas retroperitoneais (duodeno, rins, cólon ascendente e descendente etc.). Nessa situação, apenas a exploração digital da ferida não é confiável. A melhor conduta diagnostica consiste na TC de triplo contraste (contrastes venoso, oral e retal). Quando existe lesão, o contraste vai extravasar para o retroperitônio. Quando a TC não está disponível, pode-se optar por exames físicos seriados (6/6h, por 48 horas), também com boa sensibilidade. A videolaparoscopia não
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está indicada, pois não é boa para análise do retroperitônio. Em algumas situações podem ser usadas radiografias contrastadas de duodeno ou cólon.
- Penetração na região de transição toracoabdominal: trata-se de uma região situada do quar to espaço intercostal até a região epigástrica. Lesões penetrantes nesse local podem produzir lesão diafragmática importante (irradiação de dor para o ombro pode sugerir lesão diafragmá- tica). Caso o paciente se apresente sintomático (peritonite/evisceração/hipotensão ou choque), a conduta é sempre a laparotomia exploradora. Nos pacientes assintomáticos, a videolaparos- copia é uma boa medida diagnostica e terapêutica para as lesões diafragmáticas e vísceras.
Atenção: o paciente pode apresentar história de traumatismo abdominal penetrante por arma branca e demonstrar sangramento pela sonda nasogástrica, sangramento ao toque retal/vaginal ou hematúria. Em todas essas situações, provavelmente haverá a indica ção de laparotomia exploradora, porém cada situação deverá ser analisada individualmente e métodos diagnósticos como TC e videolapa- roscopia poderão ser empregados.
Traumatismo abdominal fechado (contuso)
Nessa condição, não existe penetração na cavidade abdominal. Trata-se de traumatismo contu so, que pode levar ao rompimento de vísceras ou produzir hemorragias internas importantes. O san gramento intra-abdominal é a principal causa de hipotensão/choque no paciente vítima de trauma. Baço e fígado são os órgãos mais comumente lesionados nesse tipo de trauma.
A conduta a ser adotada depende de diversos fatores, como número de sistemas envolvidos, uso de drogas e álcool ou TCE com rebaixamento do nível de consciência.
Traumatismo abdominal contuso envolvendo apenas a região abdominal
Situação na qual a região abdominal é a única envolvida no traumatismo contuso. O paciente deve estar lúcido e orientado, com Glasgow = 15, e não ter ingerido álcool ou drogas. Nessas condi ções, apenas o exame físico é confiável para a indicação de laparotomia exploradora:
• O paciente não apresenta sinais de irritação peritoneal e não apresenta hipotensão ou choque: não está indicada a laparotomia exploradora. A conduta consiste na observação pelas próximas horas com exames físicos seriados. Caso o paciente evolua com peritonite ou instabilidade hemo- dinâmica, está indicada a laparotomia exploradora.
• O paciente apresenta peritonite: existe a indicação para laparotomia exploradora baseada ape nas no exame físico, mas antes da cirurgia é possível realizar uma TC de abdome para conhecer antecipadamente quais estruturas foram lesionadas e assim tornar o procedimento cirúrgico mais eficiente.
• O paciente apresenta instabilidade hemodinâmica (hipotensão e/ou choque), com ou sem si nais de peritonite: também está indicada a laparotomia exploradora apenas com base no exame físico, porém não existe tempo hábil para uma TC de abdome, sendo o procedimento cirúrgico realizado de imediato.
Traumatismo abdominal contuso no paciente politraumatizado ou de exame físico não confiável
Existem situações em que apenas o exame físico (achados de irritação peritoneal, instabilidade hemodinâmica etc.) não é confiável para indicação de laparotomia exploradora (p. ex., o paciente ingeriu álcool ou drogas, TCE com alteração do nível de consciência, comatosos, pacientes com dois ou mais sistemas envolvidos no trauma [politraumatizados], fraturas de pelve etc.) Em todas essas situações, o médico deve recorrer a exames complementares para confirmar ou descartar a presença de lesão intra-abdominal, uma vez que o exame físico não é confiável.
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Os principais exames complementares a serem empregados são: LPD (Quadro 25.1),
USG-FAST (Focused Assessment Sonography for Trauma) e TC de abdome.
Conduta
1. LPD ou US-FAST: no paciente com suspeita de traumatismo abdominal fechado e de exame físico
não confiável, a primeira etapa da investigação diagnostica consiste em solicitar um LPD ou uma USG-FAST (a tendência atual é dar preferência à USG-FAST).
Atenção: basta apenas um dos exames.
Quadro 25.1 Lavado peritoneal diagnóstico (LPD) e ultrassonografia FAST (USG-FAST)
LPD
Em caso de lesão intra-abdominal no trauma, haverá sangue ou conteúdo visceral escapando para a cavidade abdominal; o LPD tem a função de demonstrar exatamente isso.
Técnica: o examinador passa um cateter de diálise peritoneal através da região infraumbilical (pequena incisão no local). Em seguida, realiza-se aspiração pelo
cateter e, se vier sangue vivo (> 20mL no adulto ou > 10mL na criança), o lavado é considerado positivo e a laparotomia exploradora está indicada. Em caso de aspiração de sangue negativa, continua-se com o exame. Com o cateter já posicionado, infundem-se 1 .OOOmL de Ringer lactato (em crianças, a dose é 10mL/kg). 0 soro tem a função de "lavar" a cavidade peritoneal e coletar o sangue e outros fragmentos. Após alguns minutos, 200mL de líquido (dito "líquido efluente") são aspirados para exame laboratorial.
Obs.: nos casos de fraturas pélvicas ou gestantes, é aconselhada a incisão acima do umbigo, para evitar lesão do útero.
Resultado: o lavado peritoneal é dito positivo se o líquido efluente tiver > 100 mil hemácias/mm3, > 500 leucócitos/mm3, amilase > 175UI/dL, bile positiva,
fibras vegetais ou bactérias presentes. A laparotomia exploradora está então indicada.
Desvantagens: não pode ser repetido, não é capaz de dizer qual órgão foi lesionado, não é capaz de demonstrar lesão do diafragma e podem ocorrer falso-
positivos. Atualmente, o LPD só é feito quando a USG-FAST não está disponível, mas ainda sim é de grande utilidade para o diagnóstico, com sensibilidade bastante elevada para demonstrar hemorragia intra-abdominal.
USG-FAST
Trata-se de uma USG cujo objetivo é apenas demonstrar líquido livre na cavidade peritoneal. É um exame rápido, de ótima sensibilidade, podendo ser feito ainda na sala de trauma e repetido várias vezes. Quando o exame indicar presença de líquido na cavidade abdominal, deve-se interpretar esse volume como sendo sangue ou conteúdo de vísceras ocas:
• 0 procedimento costuma ser feito pelo próprio cirurgião (treinado) e existem algumas localizações principais a se investigar: recesso hepatorrenal, espaço esplenorrenal e fundo de saco de Douglas. 0 exame permite ainda pesquisar derrames pleurais e pericárdicos (importante para pesquisa de tamponamento cardíaco e hemotórax)
• Limitações: é operador-dependente, a sensibilidade reduz quando o volume de líquido é < 400mL, há dificuldade para visualizar retroperitônio e a
presença de gases ou panículo adiposo espesso dificulta a visualização.
2. LPD positivo ou USG-FAST positiva: confirmam a existência de lesão intra-abdominal e o pa ciente é candidato à laparotomia exploradora para tratamento das lesões. No entanto, antes do procedimento cirúrgico, o médico deve avaliar o estado hemodinâmico do paciente:
• Paciente com instabilidade hemodinâmica e responde mal à infusão de volume: este pacien
te deve seguir imediatamente para o procedimento cirúrgico (laparotomia). Não é candidato a uma TC de abdome.
• Paciente com estabilidade hemodinâmica: antes de se submeter ao procedimento cirúrgico,
este paciente pode realizar uma TC de abdome (com contraste oral e venoso).
3. TC de abdome: é o melhor exame para identificar as estruturas lesionadas na cavidade abdominal e ajuda a definir aqueles pacientes que, apesar da lesão, podem receber tratamento clínico sem necessidade de intervenção cirúrgica. Entretanto, como salientado previamente, a TC só pode ser realizada no paciente com estabilidade hemodinâmica (não apresenta hipotensão ou choque). Tem como vantagem fornecer análise detalhada das estruturas lesionadas, facilitando a interven ção cirúrgica, além de ser um ótimo exame para identificar lesões no retroperitônio.
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Obs.: entram nesse grupo pacientes que estavam instáveis mas que responderam bem à reposição de voiume.
CONSIDERAÇÕES
• O paciente deve ser monitorizado adequadamente (PA, FC, FR, temperatura, S a t0 2); especial mente os pacientes graves e/ou em observação. Alguns casos podem necessitar de traçado ECG contínuo.
• Exames laboratoriais podem ser solicitados conforme avaliação do médico (p. ex., hemogra- ma completo, funções renal e hepática, coagulograma, eletrólitos, glicemia, tipagem sanguínea, (3-HCG, lactato, amilase e lipase, urina tipo I), porém a espera pelo resultado desses exames não deve atrasar as condutas citadas anteriormente.
• Sonda nasogástrica/orogástrica: está quase sempre indicada, especialmente nos casos graves e/ou inconscientes. A sonda auxilia a descompressão gástrica e a redução da dor, diminui a probabili dade de refluxo e broncoaspiração e pode demonstrar presença de sangue no estômago.
Obs.: a sonda orogástrica é a primeira opção nos casos de traumas faciais extensos ou de suspeita de fratura da base do crânio (a sonda
nasogástrica não deve ser utilizada nessa condição).
• Sonda vesical: importante para acompanhar a diurese e avaliar a reposição de volume nos pa cientes com sangramento, hipotensão e choque. Promove a descompressão da bexiga e facilita a identificação de hematúria macroscópica. Não se deve passar a sonda na suspeita de lesão da uretra. Nesses casos, será necessária uma uretrografia retrógrada para confirmar a lesão. Anor malidades no toque retal (próstata flutuante), hematúria e hematomas no períneo aumentam a chance de lesão uretral. Na presença de trauma uretral, a cistostomia é uma opção à sonda vesical.
Não existindo contraindicações, as sondas nasogástrica e/ou vesical podem ser empregadas em todos os pacientes graves, desacordados ou candidatos à cirurgia.
• Reavaliação constante do paciente: a condição do paciente pode mudar rapidamente e exigir uma nova conduta.
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