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Fratura-Luxação do Anel Pélvico

No documento SOS Plantão (OCR).pdf (páginas 180-185)

Vincenzo Giordano • Rodrigo Simões Eleutério

INTRODUÇÃO

Fraturas-luxações do anel pélvico estão relacionadas com traumas de grande energia, como acidentes automobilísticos e quedas de grandes alturas. Trata-se de uma situação de elevada morbi- mortalidade, sendo por isso tão importantes o diagnóstico e a intervenção precoces.

Além da lesão do anel pélvico, é importante pesquisar a presença de outros órgãos e sistemas comprometidos, como traumatismo cranioencefálico (TCE) e traumatismos torácico e abdominal. Na maioria dos casos de fratura instável, o paciente é um politraumatizado, e os óbitos geralmente ocorrem por sangramento direto de dentro da pelve. Em geral, mais de 90% dos casos sofrem sangra- mento de grande monta por lesão direta dos plexos venosos lombossacro e pré-vesical.

A fratura pélvica instável pode gerar uma hemorragia interna muito intensa, que pode exsan- guinar a vítima por completo, produzindo um quadro de instabilidade hemodinâmica grave. O paciente evolui com hipotensão grave, choque e parada cardiorrespiratória.

No paciente com instabilidade hemodinâmica, será essencial a reposição rápida de cristalóides (recomenda-se o Ringer com lactato) e também de plasma e hemácias, em determinados casos. O uso de agentes vasoativos pode ser necessário na hipotensão refratária à reposição de volume.

Entretanto, a etapa mais importante do tratamento será a estabilização da pelve por proce­

dimento cirúrgico ortopédico. A redução e a fixação do anel pélvico reduzem a mobilidade local,

possibilitando o tamponamento dos vasos lesionados e a diminuição da hemorragia que está produ­ zindo a instabilidade hemodinâmica.

Como citado anteriormente, a hemorragia geralmente tem origem nos plexos venosos lombos­ sacro e pré-vesical, mas também ocorre pelas bordas da fratura e, em menos de 10% dos casos, por lesão arterial.

Nos casos mais complicados, refratários às medidas de estabilização hemodinâmica iniciais, pode ser necessário praticar uma embolização arterial, o tamponamento pré-peritoneal ou, até mes­ mo, uma hemipelvectomia para salvar a vida do paciente.

Os pacientes que sobrevivem ao trauma agudo podem vir a relatar queixas como anormalida­ des de marcha, dor pélvica crônica e comprometimento da função sexual.

FISI0PAT0L0GIA

A pelve é composta por um conjunto de ossos (anel pélvico), ligamentos, músculos, vasos, ner­ vos e órgãos dos sistemas geniturinário e gastrointestinal.

A pelve óssea é formada por três ossos - o ílio, o ísquio e o púbis - que se fundem em dois blocos ósseos (as hemipelves), os quais se articulam posteriormente ao osso sacro (resultante da fusão de cinco vértebras). Anteriormente, encontra-se a sínfise púbica. Todas as articulações do anel pélvico são mantidas por diversos complexos capsuloligamentares, que impedem a instabilidade mecânica.

No paciente com trauma da pelve óssea, além de fraturas, pode ser encontrada lesão/rotura

de ligamentos, e com isso surge a instabilidade mecânica da pelve, promovendo desvios ósseos e

articulares.

O "anel pélvico" abriga e protege a maioria dos tecidos e órgãos da pelve. Todas essas estrutu­ ras podem ser lesionadas no traumatismo pélvico, inclusive com lacerações e perfurações, especial­ mente na fratura pélvica exposta.

A instabilidade mecânica das fraturas pélvicas origina-se a partir de três mecanismos traumá­ ticos principais:

• Rotação externa da pelve: relacionada com o mecanismo de compressão anteroposterior do anel

pélvico, com abertura da sínfise púbica e lesão de estruturas ligamentares posteriores, levando à rotação da asa do ílio para fora. Trata-se de uma instabilidade rotacional da pelve (p. ex., fratura em "livro aberto" ou "open-book"). Um afastamento da sínfise púbica > 2,5cm torna essa fratura bastante instável e de elevado risco de hemorragia grave.

• Rotação interna da pelve: relacionada com o mecanismo de compressão lateral do anel pélvico,

podendo ser observadas fraturas de ramos do púbis e fraturas do sacro, por compressão. As hemi- pelves envolvidas tendem a rodar de fora para dentro, gerando também instabilidade rotacional

da pelve. A maioria dos casos não cursa com hemorragias pélvicas graves, porém existe elevada

chance de lesão de órgãos dentro do anel pélvico (p. ex., bexiga e uretra).

• Cisalhamento vertical: trata-se de uma condição de elevada instabilidade pélvica, acompanhada

de lesão grave do anel anterior e posterior. Ocorrem diversas roturas ligamentares, inclusive a perda total da estabilidade articular sacroilíaca. O mecanismo envolve forças axiais sobre a pelve e os membros inferiores, produzindo deslocamentos cranial e posterior da hemipelve. Observa-se

instabilidade vertical da pelve. Esse tipo de fratura produz aumento do volume pélvico, favorece

hemorragias graves e eleva o risco de instabilidade hemodinâmica.

QUADRO CLÍNICO

Nos adultos e jovens, a fratura pélvica normalmente é acompanhada de trauma de grande ener­ gia, como queda de grande altura ou acidente automobilístico. No idoso, o mecanismo de trauma pode envolver menor energia, como a queda ao solo.

O paciente relata dor intensa na região do quadril e coxas, além de limitação ou incapacidade de movimentar o quadril e os membros inferiores. Assimetrias e deformidades do quadril podem ser observadas à inspeção, e é possível encontrar encurtamento de um ou ambos os membros in­ feriores.

O exame físico pode revelar áreas de escoriações, hematomas, equimoses e hemorragias exter­ nas. Fique atento aos sangramentos encontrados pelos toques retal e vaginal, pois podem significar uma fratura exposta oculta da pelve. Por isso, os toques retal e vaginal são partes importantes do exame clínico.

A palpação do quadril (descrita no diagnóstico) pode revelar instabilidade mecânica da pelve.

DIAGNÓSTICO

Na prática clínica, o principal exame por imagem inicial para identificar a fratura-Iuxação pélvica é a radiografia panorâmica da pelve (incidência AP). Esse exame deve ser solicitado ainda durante o exame primário do trauma ("ABCDE"), existindo ou não a suspeita de lesão do anel pélvico. Deve-se analisar a radiografia sempre de maneira padronizada: sínfise púbica, ramos do púbis, região do acetábulo, asa do ílio, articulação sacroilíaca e osso sacro; sempre bilateralmente.

Nos pacientes hemodinamicamente estáveis, após o atendimento primário do trauma, radio­ grafias em outras incidências podem ser solicitadas para melhor análise das linhas de fratura e des­ vios rotacionais e verticais. Destaque para as radiografias oblíquas de Pennal do estreito superior

(in let) e do estreito inferior (ou tlet).

Na maioria dos casos, a TC da pelve deve ser solicitada (TC do anel pélvico com cortes de 3

a 5mm). Esse exame é excelente para análise das fraturas de difícil visualização, principalmente na

região posterior do anel pélvico (articulação sacroilíaca e sacro). No entanto, só deve ser realizado no paciente hemodinamicamente estável.

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A instabilidade pélvica deve ser clinicamente investigada: a presença de equimoses, sangra-

mentos, hematomas, escoriações, deformidades e assimetrias na pelve aumenta as chances de existir uma fratura. A queixa de dor intensa no quadril também é um sintoma de alerta. Pacientes apresen­ tando hipotensão e choque após trauma sempre devem ser investigados para fraturas pélvicas.

A palpação do quadril torna possível sentir a instabilidade pélvica: o médico atendente, com

as palmas das mãos, pressiona as espinhas ilíacas anteriores em sentido anteroposterior; em seguida, realizará uma compressão lateral do quadril. Essas duas manobras tornam possível avaliar as insta- bilidades rotacionais da pelve.

Cuidado: o ideal é que os testes de compressão sejam feitos uma única vez e pelo profissional mais experiente do serviço no plantão.

Fratura exposta oculta: como parte do exame físico, devem ser realizados os toques retal e va­ ginal nos pacientes com fratura pélvica. Esses exames vão ajudar na investigação de fratura exposta

da pelve com lesão para órgãos intra-abdominais, como vagina, reto, bexiga etc. O examinador deve ficar atento à presença de sangue durante o toque. A fratura exposta mascarada da pelve nunca deve ser ignorada.

Classificação (Quadro 32.1)

Quadro 32.1 Classificação da fratura-luxação do anel pélvico Classificação de Letoumel (1978)

(baseada na posição anatômica da fratura)

Classificação de Tile (1996)

(leva em consideração o mecanismo traum ático e a instabilidade da fratu ra) Anel pélvico anterior: A. Lesão estável:

Sínfise púbica aberta A.1 Fratura pélvica por avulsão Fratura púbica do corpo A.2 Fratura marginal da asa do ílio Fratura púbica dos ramos A.3 Fratura sacral transversa Fratura acetabular. (inferior a S2)

Anel pélvico posterior: B. Lesão com instabilidade rotacional:

Fratura da asa ilíaca B.1 Compressão AP Luxação e fratura sacroilíaca B.2 Compressão lateral Luxação isolada da sacroilíaca B.3 Bilateral

Fraturado sacro (SI e /ou S2) C. Lesão com instabilidade vertical:

C.1 Unilateral

C.2 Bilateral, um lado B e o outro C C.3 Bilateral, ambas C

TRATAMENTO Considerações

O paciente com fratura pélvica é vítima de trauma e, portanto, a conduta inicial consiste em salvar sua vida (exame primário do trauma - "ABCDE do trauma"). Deve-se assegurar a via aérea e a ventilação adequadas nas fases "A" e "B ". A condição hemodinâmica deve ser investigada e tratada na fase "C ". Na fase "D ", realiza-se um exame neurológico direcionado e rápido, e na fase "E " são efetuados a exposição do doente e o controle da hipotermia (maiores detalhes no Capítulo 23, Abor­

dagem Inicial ao Trauma).

A mais importante complicação imediata da fratura pélvica é a hemorragia interna, que, de tão intensa, pode produzir hipotensão e choque hipovolêmico. Essa instabilidade deve ser identificada ainda na fase "C " do exame primário e corrigida mediante reposição volêmica controlada e estabi­

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Atendimento na sala de trauma/emergência

• Atendimento inicial ao trauma ("ABCDE"): solicite radiografia panorâmica de pelve em AP e também de tórax e coluna cervical.

• Para os pacientes com hipotensão ou choque hipovolêmico, a medida inicial consiste em ofere­ cer cristalóides rapidamente. Obtenha, preferencialmente, dois acessos venosos periféricos cali- brosos ou um acesso venoso central, como segunda opção. Em seguida, pratica-se a infusão rápi­ da de cristalóide, preferencialmente o Ringer com lactato (RL) aquecido a 39°C. O volume inicial administrado pode ser de 2.000mL em adultos ou 20mL/kg em crianças. O objetivo é manter uma pressão arterial sistólica próxima a lOOmmHg.

O débito urinário deve ser acompanhado (0,5mL/kg/hora em adultos e lmL/kg/h em crianças). Conforme a condição hemodinâmica, mais RL pode ser oferecido; além disso, alguns pacientes graves vão precisar da reposição de plasma e de hemácias (hemotransfusão) para melhora da saturação arterial de Or

Pacientes refratários ao volume podem necessitar de aminas vasoativas para manter a pressão arterial, como noradrenalina.

• Algumas atitudes podem ser praticadas ainda na sala do trauma e vão ajudar a conter a hemorra­ gia e produzir um pouco de estabilidade pélvica:

- Colocação de vestimenta pneumática antichoque (ou "calça militar"): bastante útil no trans­ porte até o hospital.

- Colocação de clam ppe p élv ico, que auxilia a redução e estabilização da fratura pélvica e, por­ tanto, diminui o sangramento e o risco de choque.

• Compressão da pelve por faixa ou lençol: uma alternativa consiste em amarrar a pelve do pa­ ciente, na altura dos trocanteres, com um lençol ou faixa bem apertada, diminuindo o tamanho da pelve e proporcionando alguma estabilidade ao anel. Os joelhos e tornozelos devem também ser amarrados juntos. Nas fraturas pélvicas tipo rotação externa e cisalhamento, essa técnica é bem empregada e favorece a redução do volume pélvico. No entanto, nas fraturas com rotação interna (compressão lateral), a compressão mecânica pode ser desfavorável, pois a fratura já tem as carac­ terísticas de reduzir o volume pélvico, podendo inclusive favorecer a compressão inadequada de vísceras.

• Investigação da origem do sangramento: os exames radiológicos ajudam a identificar a fratura pélvica, que sabidamente apresenta grande potencial para produzir hipotensão e choque.

Observa-se que, em mais de 60% das fraturas pélvicas, existe relato de traumatismo abdominal associado, inclusive com necessidade de laparotomia exploradora em parte significativa dos casos. Para a investigação da presença de sangramento intra-abdominal, o médico atendente pode realizar um FAST (Focused Abdominal Sonography fo r Trauma) ou um lavado peritoneal diagnóstico (LPD).

Nos pacientes hemodinamicamente estáveis, pode ser solicitada TC de abdome e pelve para um estudo mais aprofundado das lesões existentes.

Apesar de todas as medidas citadas anteriormente, a principal conduta a ser adotada para ga­ rantir estabilidade hemodinâmica definitiva consiste na redução e estabilização cirúrgica da fratura (procedimento cirúrgico-ortopédico).

Tratamento ortopédico-cirúrgico

Diante de uma fratura pélvica causadora de instabilidade hemodinâmica, a conduta de eleição consiste, o quanto antes, na redução e estabilização cirúrgica da fratura. Essa atitude, na maioria dos casos, leva ao tamponamento dos vasos lesionados e à contenção do sangramento, por promover a formação de coágulos, especialmente nas fraturas instáveis por rotação externa e por cisalhamento. Opta-se, preferencialmente, pelo controle de danos local, em geral recorrendo-se à redução fechada

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e à colocação de fixadores externos (grande parte dos casos) e, em menor proporção, à colocação de placas e parafusos, o que varia conforme a localização e a gravidade da fratura.

Quando a estabilização cirúrgica, apesar de adequada, falha na contenção do sangramento e da instabilidade hemodinâmica, o próximo caminho consiste na realização de uma angiografia com em- bolização arterial ou do tamponamento pré-peritoneal. O primeiro procedimento obstrui os vasos arteriais que estão sangrando. Entretanto, em uma pequena parcela dos casos, mesmo a embolização não terá sucesso em conter o sangramento. Já o tamponamento pré-peritoneal visa a comprimir os vasos dos plexos venosos lombossacro e pré-vesical.

• Fraturas expostas da pelve são reconhecidas como urgência cirúrgica e sempre precisam de inter­ venção rápida, com a participação do ortopedista.

• Algumas vezes será muito difícil diferenciar hemorragia por origem abdominal daquela causada pela fratura pélvica instável; nesses casos, a laparotomia exploradora pode ser necessária. Entre­ tanto, é muito importante realizar a fixação adequada do anel pélvico instável antes da laparoto­ mia. A laparotomia, quando realizada às pressas e sem a devida fixação pélvica, pode provocar descompressão do foco hemorrágico e agravar o sangramento.

• A fratura do anel pélvico pode não ser a única lesão regional. Bexiga, reto, uretra, vagina e tantos outros tecidos e órgãos intrapélvicos podem ter sido lesionados e vão precisar de avaliação e in­ tervenção do cirurgião geral, urologista, ginecologista etc.

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