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Atividade financeira, fiscalidade e extrafiscalidade

CAPÍTULO III – INCENTIVOS, FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: OS FINS E OS

3.3 Atividade financeira, fiscalidade e extrafiscalidade

O caráter instrumental e o elemento finalístico do tributo, ressaltados no conceito de extrafiscalidade, são premissas teóricas que, de uma forma ou de outra, afetam todo o Direito Financeiro. A atividade financeira – e, de resto, também a tributária – é, por definição, instrumental: “consiste, em síntese, na criação, obtenção, gestão e dispêndio do dinheiro público para a execução dos serviços afetos ao Estado”.112

A bem da verdade, deve-se reconhecer que a expressão “atividade financeira” tem ao menos dois sentidos: designa tanto a atividade desenvolvida no âmbito das finanças (fato) quanto as regras que sobre ela se aplicam (norma jurídica). Do ponto de vista jurídico, sob a denominação de atividade financeira do Estado, agrupa-se o conjunto de competências constitucionais que abarcam as ações desenvolvidas pelo Poder Público a fim de propiciar os meios, fática e juridicamente, necessários ao exercício das demais competências constitucionais. Afinal, “a só atribuição de competência – encargo – sem a designação dos recursos”, isto é, dos meios para auferi-los, “tornaria impossível a aplicação da norma de competência, em face da impossibilidade jurídica de integração de seu conteúdo por ato de interpretação”.113

A noção de atividade financeira confere unidade

111 Sobre a presença dos tributos no curso da história, ver: ADAMS, Charles. For Good and Evil: the impact

os taxes on the course of civilization. 2a ed. Lanham: Mandison Books, 2001.

112 BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Financeiro. 2a ed. São Paulo: Max Limonad, 1998,

p.39.

a uma estrutura bifronte de competências, que inclui, de um lado, as receitas, ou mais precisamente, o conjunto de competências arrecadatórias, e, de outro, as despesas públicas, ou seja, o conjunto de competências para realização do gasto público. Agrupado, esse plexo de competências reúne os diversos elementos do conceito de atividade financeira do Estado: meios para alcançar, direta ou indiretamente, o atendimento do interesse público e conferir realidade aos objetivos e valores constitucionais. 114

Os tributos não fogem a essa regra. Da mesma forma que os demais elementos da atividade financeira, também apresentam natureza instrumental,115 como meios de que se vale o Estado para fazer frente às atribuições que lhe impõe a ordem constitucional. No que se refere à atividade tributária, é comum afirmar-se que ela se volta à consecução do interesse público de duas maneiras: mediatamente, como meio de geração de receitas públicas, e imediatamente, como meio de intervenção na ordem econômica.116

Na primeira situação, diz-se que a persecução do interesse público não se dá diretamente pela atividade tributária, que apenas subministra recursos necessários à existência e ao funcionamento de instrumentos, instituições e sujeitos da Administração pública, estes, sim, responsáveis pelo atendimento direto do interesse público. Aqui, o caráter medial das exações faz ver a estrita vinculação entre receitas e despesas públicas, os dois lados da atividade financeira. Na segunda situação, o tributo deixa de ser apenas pressuposto do exercício das demais competências constitucionais e passa a ser, ele próprio, instrumento direto da efetivação de interesses, valores e finalidades prestigiadas no ordenamento jurídico, independentemente da realização de despesa pública ou mesmo em lugar dela.

À primeira situação a linguagem jurídica dá o nome de “fiscalidade” e à segunda, de “extrafiscalidade”. “Quando as funções sociais prevalecem sobre as financeiras

São Paulo: Max Limonad, 1997, p.89.

114 “Há a ‘necessidade-fim’, ou seja, o bem jurídico-político, no caso, tutelado, e a imperiosa existência das

‘necessidades-meio’, para que a primeira possa ser prestada”, afirma Regis Fernandes de Oliveira. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 58.

115 “O Direito Tributário não tem objetivo (imperativo econômico-social) próprio; ou melhor, como todo o

Direito Positivo, o Direito Tributário tem natureza instrumental e seu ‘objetivo próprio’ (razão de existir) é ser um instrumento a serviço de uma política. Esta (a Política) é que tem seus próprios e específicos objetivos econômico-sociais”. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3a ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 596.

116 Nesse sentido, ver: BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Financeiro. 2a ed. São Paulo:

Max Limonad, 1998, p. 60, ALABERN, Juan Enrique Varona. Extrafiscalidad y Dogmática Tributaria. Madrid: Marcial Pons, 2009, p.17, entre outros.

(meramente fiscais), estamos diante da finança extrafiscal”, explica José Souto Maior Borges, em obra clássica de introdução do Direito Financeiro.117 Embora isso nem sempre seja posto com clareza, o critério que se leva em conta na oposição “fiscalidade- extrafiscalidade” é fundamentalmente o da finalidade ou eficácia projetada. Em linhas gerais, é possível afirmar que a fiscalidade designa situação em que se usa do tributo para o atendimento de objetivos, estrita ou predominantemente, financeiros, isto é, para arrecadar. E a extrafiscalidade, por sua vez, define-se pela negativa: será extrafiscal toda atividade tributária que se guie, exclusiva ou preponderantemente, por outros critérios, objetivos ou interesses diversos da aquisição de recursos públicos.118 Ali, considera-se o tributo como pressuposto do gasto público, elemento necessário à atividade estatal; aqui, como instrumento de política pública, levando-se em conta as implicações que pode projetar para além da atividade financeira do Estado, na conduta dos particulares.

Na prática, não é de todo simples separar as duas noções. Quanto à forma ou estrutura, não há diferença perceptível: “em nada se distinguem formalmente os tributos fiscais dos extrafiscais”,119

exceto no que se refere, obviamente, às derrogações e

117

BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Financeiro. 2a ed. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 60.

118 A mesma observação serve também para o conceito de parafiscalidade, que, no entanto, não dá a ideia

exceção, mas de similitude. Relatando as origens do termo, Aliomar Baleeiro atribui seu primeiro registro ao “Inventário Schumann”, realizando na França, em 1946, a fim de levantar e classificar os encargos referentes a entidades autônomas e depositárias de poder tributário por delegação. Essas entidades autônomas eram definidas como “parafiscais”. (BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7ª ed. rev. e compl. À luz da Constituição de 1988 até a Emenda Constitucional n.º 10/1996 por Misabel Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.584). Daí o termo “parafiscalidade”, para nomear a condição ou qualidade do que é “parafiscal”: similar ao tributo. A princípio, nesta categoria estaria incluída toda sorte de “contribuições” destinadas ao sustento de instituições que atuariam em paralelo ao Estado, sem compor o quadro da Administração direta, especialmente, entidades previdenciárias e de assistência social. Os recursos assim auferidos não seriam propriamente impostos, não estando, por conseguinte, submetidos às mesmas restrições que eles, nem ao controle orçamentário. Seria este, aliás, o uso inicial do termo “parafiscalidade”: assinalar a existência de cobranças semelhantes a tributos, mas afastadas deste regime jurídico-tributário clássico (legalidade) e do orçamento estatal (FRANCO, António L. de Souza. Finanças Públicas e Direito

Financeiro. 4ª ed. vol II, Coimbra Almedina, 2007, p. 76). No Direito português, Sousa Franco contrapõe

ainda as “parafinanças” às “finanças”, da mesma maneira que se contrapõem “fiscalidade” e “parafiscalidade”. O jurista português explica que, ao lado do sistema financeiro clássico, no século XX, outros sistemas financeiros marginais ou laterais “integraram também a máquina estadual, mas com diversas estruturas, finalidades e natureza, devido à assunção de novas funções econômicas e sociais por parte do Estado.” (FRANCO, António L. de Souza. Finanças Públicas e Direito Financeiro. 4ª ed. vol II, Coimbra Almedina, 2007, p. 73). São institutos públicos ou privados, voltados a finalidades públicas, que teriam por função substituir a atuação direta do Estado. Essas finanças teriam a possibilidade de se esquivar do regime jurídico da fiscalidade, ao menos em parte, uma vez que seriam criadas sem intervenção legislativa, à margem, portanto, da autorização e do controle parlamentares. Vale destacar, entretanto, que não é este o sentido vigente do termo “parafiscalidade”, que, no direito brasileiro, não escapa do regime jurídico aplicável aos tributos.

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ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Direito Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, p. 148.

peculiaridades que são próprias do fenômeno extrafiscal, expressamente previstas no direito positivo. Ademais, quanto à finalidade, também parece conviver em cada norma tributária um tanto de ambas as preocupações – arrecadação e intervenção –, seja no nível da finalidade visada, seja no da eficácia produzida. De certo modo, há, nos tributos voltados à arrecadação, um quê de extrafiscal: outros fins, outros efeitos ou outros interesses.

O convívio entre as duas situações não lhes retira a importância conceitual e prática, antes permite constatar que “no mundo da fiscalidade, existem mais coisas e coisas mais graves do que aquelas que estamos habituados a imaginar”, como afirma Sérgio Vasques120, na frase que serve de epígrafe deste capítulo.