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CAPÍTULO III – INCENTIVOS, FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: OS FINS E OS

3.6 Extrafiscalidade: efeitos e finalidades

3.6.1 Extrafiscalidade: análise do conceito

A partir da observação dos textos jurídicos nacionais, percebe-se que as expressões “extrafiscalidade” e “extrafiscal” são empregadas, no direito brasileiro, em contextos e com significados diferentes, embora próximos e conectados.

Procuraremos discernir quatro situações em que se manifesta o fenômeno da extrafiscalidade: (1) o objetivo ou fundamento não financeiro que justifica o uso de certos tributos ou a conformação diferenciada de seu regime jurídico; (2) o regime jurídico especial que caracteriza exercício de competência tributária relativa a determinados tributos; (3) o uso de expedientes tributários com propósito predominantemente alheio à captação de recursos para o Estado e (4) os efeitos externos – sociais e econômicos –, diversos da geração de receitas públicas, que podem ser produzidos pela norma177 tributária em sentido amplo.

Diante dessas quatro situações, podemos mencionar aqui extrafiscalidade como: (1) finalidade ou justificação, (2) regime jurídico, (3) norma jurídica tributária e (4) efeito social. As quatro situações são etapas do mesmo fenômeno, que tem como nota típica a capacidade de servir de porta entrada, no discurso jurídico do tributo, para elementos que a priori ser-lhe-iam estranhos, porque alheios à aquisição de recursos públicos.178

Como finalidade, a primeira acepção que destacamos, a noção de extrafiscalidade designa as razões ou os fundamentos que justificam a utilização do tributo com vistas à produção de efeitos diversos da mera aquisição de recursos públicos. Tais objetivos podem operar no nível da norma impositiva, para justificar a criação diferenciada de certa exação pelo legislador ou, no plano constitucional, na norma de competência, para qualificar a

177 Norma tributária em sentido restrito é aquela que veicula a regra-matriz de incidência tributária; em

sentido amplo, é qualquer norma que verse sobre matéria tributária, de acordo com os limites tradicionais dessa disciplina.

178 A propósito da variedade de sentidos que do termo extrafiscalidade, afirma Sacha C. N. Coêlho: “Todo

tributo presta-se a ambas as finalidades, por isso que a extrafiscalidade é uma intenção e uma arte que se realizam através deste, qualquer que seja, inclusive o ICM”. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. ICM – Competência Exonerativa: convênios de estados, imunidades, isenções, reduções e diferimentos. São Paulo:

peculiar conformação do regime jurídico de determinado tributo. Numa e noutra situação, a noção de extrafiscalidade indica que outros motivos, diversos dos estritamente financeiros, foram levados em consideração pelo legislador ou pelo constituinte na formulação da norma jurídica em análise.179

O exemplo dos impostos aduaneiros revela-se particularmente ilustrativo da aplicação do conceito de extrafiscalidade no plano das normas constitucionais. É comum afirmar-se que objetivos extrafiscais justificam a não aplicação do princípio da anterioridade e a atenuação da incidência do princípio da legalidade em relação aos impostos de importação e exportação, tendo em vista a condição que lhes é própria de instrumentos de política econômica e cambial. Afirmação desse tipo encontra-se, por exemplo, na obra de Aliomar Baleeiro, a propósito do imposto de importação:

Imposto dos mais antigos do mundo, o de importação evolveu de receita puramente fiscal para instrumento extrafiscal destinado à proteção dos produtores nacionais e, mais tarde, também do câmbio e do balanço de pagamentos. Perdeu, assim, sua importância como fonte de receita – a maior no tempo da monarquia brasileira – e ganhou relevo como arma de política econômica e fiscal.

Por isso mesmo, goza de regime especial. Não depende de decretação antes do início do exercício (art.153, § 29 da C.F.), e suas alíquotas são flexíveis, podem o Executivo fixá-las dentro do mínimo e do máximo estabelecido em lei.180

Nesse caso, a influência do fenômeno extrafiscal integra a conformação peculiar da competência tributária atinente a tais impostos.181 Diz-se, assim, que o tributo “y” é “extrafiscal” para explicar o porquê das diferenças existentes entre seu regime jurídico e o aplicável à generalidade dos tributos. A extrafiscalidade é, no caso dos tributos aduaneiros, razão que justifica a norma constitucional de competência tributária.

A segunda situação a que nos referimos é a de extrafiscalidade como regime

179 A título de exemplo, veja-se a definição proposta por Luiz Mélega: “A extrafiscalidade é o finalismo que

informa qualquer tributo; quando se germana à fiscalidade, enfrenta os mesmos limites constitucionais impostos a esta. O tributo, ainda que de motivação extrafiscal, há que se conformar a todas as garantias da liberdade e da propriedade.” MÉLEGA, Luiz, O Poder de Tributar e o Poder de Regular. Direito Tributário

Atual, vol. 7/8, São Paulo: IBDT, Resenha Tributária, 1987/1988, p. 1771-1813.

180 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 9a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p.124. 181

Referindo-se ao imposto sobre operações financeiras (IOF) e à faculdade do Executivo de alterar as respectivas alíquotas, Hugo de Britto Machado aponta a necessária vinculação do exercício da competência ao motivo constitucional que o justifica. Por isso, “no caso do aumento de alíquotas do IOF, essa motivação para o ato seja válido, deve indicar qual é o objetivo da política monetária ao qual o imposto está sendo com ele ajustado.” MACHADO, Hugo de Brito. Inconstitucionalidade do aumento de IOF com desvio de finalidade. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, v.2, n. 8., p. 131-156, jul. 2008.

jurídico, que se caracteriza pelo acolhimento de função diversa da arrecadatória e pela imposição de derrogações em relação ao regime padrão aplicável à generalidade dos tributos de mesma espécie. Nos casos em que o fenômeno extrafiscal opera no plano da Constituição, a “finalidade extrafiscal” acolhida pelo constituinte dá ensejo a um regime jurídico tributário – regime tributário extrafiscal – com alguma(s) peculiaridade(s) em relação ao que se aplica aos demais impostos e tributos em geral.

Em rigor, não há exatamente apenas “um regime”, mas tantas quantas forem as conformações peculiares que o constituinte dê à competência tributária. Ademais, ao se mencionar que é regime jurídico peculiar, certamente não se está a afirmar que as exações marcadas pela nota de extrafiscalidade não se sujeitem ao regime jurídico dos tributos. “Não é admissível invocar razões extrafiscais para, com isto, amesquinhar quantos óbices e restrições colocou o poder constituinte ao poder de tributar”,182

já reconhece a doutrina de longa data. Trata-se do mesmo regime jurídico que se aplica aos demais tributos, excepcionado somente pelas derrogações que, expressamente previstas no texto constitucional, servem ao objetivo extrafiscal acolhido.

Situação diversa é aquela na qual se emprega o termo em análise para designar simplesmente o “emprego dos instrumentos tributários – evidentemente por quem os tem à disposição – com objetivos não fiscais, mas ordinatórios”, como consta na definição de Geraldo Ataliba.183 Aqui, a justificação extrafiscal opera no plano legislativo, isto é, na própria norma tributária ou no uso que dela se faz. E não há, em tese, qualquer alteração no que se refere à norma de competência ou ao regime aplicável. Na situação estão incluídas, grosso modo, as normas tributárias que veiculam incentivos fiscais nos mais diferentes tributos.

É este o emprego da expressão que se observa, por exemplo, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n. 1.276-2/SP, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, proposta contra lei de incentivo fiscal paulistana. Consta daquele julgamento:

Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a Assembleia Legislativa Paulista usou o caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta

182 ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Direito Tributário. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, p. 149.

183

ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Direito Tributário. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1969, p. 137.

por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia.

O mesmo pode se dizer do seguinte julgado também do Supremo Tribunal Federal:

CONCESSÃO DE ISENÇÃO TRIBUTÁRIA E UTILIZAÇÃO EXTRAFISCAL DO IPI. - A concessão de isenção em matéria

tributária traduz ato discricionário, que, fundado em juízo de

conveniência e oportunidade do Poder Público (RE 157.228/SP), destina-

se - a partir de critérios racionais, lógicos e impessoais estabelecidos de

modo legítimo em norma legal - a implementar objetivos estatais

nitidamente qualificados pela nota da extrafiscalidade. A isenção

tributária que a União Federal concedeu, em matéria de IPI, sobre o açúcar de cana (Lei n. 8.393/91, art. 2º) objetiva conferir efetividade ao art. 3º, incisos II e III, da Constituição da República. Essa pessoa

política, ao assim proceder, pôs em relevo a função extrafiscal desse

tributo, utilizando-o como instrumento de promoção do

desenvolvimento nacional e de superação das desigualdades sociais e regionais.184 (Grifo nosso).

Em ambas as decisões, nota-se que a referência à atividade extrafiscal está situada no plano legislativo. Trata-se de caracterizar a construção ou aplicação da regra-matriz tributária por parte do legislador tributário, de modo a, propositalmente, mirar outros efeitos que não a mera arrecadação. A função extrafiscal serve aqui, portanto, para justificar a maneira como foi posta a norma impositiva, e não a norma de competência.

A quarta situação a que nos referimos é a de extrafiscalidade como eficácia. O termo é usado, nessa acepção para designar as consequências externas, no plano social e econômico, que sejam efetivamente produzidas pela norma tributária. É nesse sentido que Souto Maior Borges define extrafiscalidade como “os efeitos da intervenção governamental na sociedade através das finanças públicas.”185

No plano dos efeitos, estão os comportamentos estimulados ou desestimulados, a renda efetivamente distribuída e a agregação de complexidade produzida no plano fático – toda sorte de repercussão fática que se possa imputar à norma tributária.186 Em sentido

184 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 360.461-7/ MG,

relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 6.12.2005.

185 BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Financeiro. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1998,

p.39

186 Também se encontram exemplos do uso em decisões do Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, quando

se afirma que “Os efeitos extrafiscais ou a calibração do valor do tributo de acordo com a capacidade contributiva não são obtidos apenas pela modulação da alíquota”, como consta da ementa do julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 583.636/MS, Relator Ministro Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgamento em 6.4.2010.

amplo, podem ser enquadradas entre os efeitos extrafiscais quaisquer repercussões externas imputadas à incidência tributária, desejadas ou não pelo legislador, desde que diversas da mera obtenção de recursos públicos. Em sentido restrito, a expressão compreende apenas os efeitos propositalmente visados pela legislação. Numa e noutra abrangência, incluem-se as diferentes funções eficaciais possíveis de toda norma tributária, aqui já mencionadas – indutora, simplificadora e distributiva – como também as distintas aptidões específicas que afetam os diferentes tributos, como veremos nos itens seguintes.