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Disciplina jurídica do tributo, incentivos e renúncias

CAPÍTULO II – A DISCIPLINA JURÍDICA DO TRIBUTO

2.8 Disciplina jurídica do tributo, incentivos e renúncias

A análise dos contornos internos e externos da disciplina jurídica do tributo não se fez a título didático, apenas para situar o leitor no objeto deste estudo. Acreditamos que as fronteiras que definem o que está dentro e o que está fora da análise jurídica e, especialmente, da análise financeiro-tributária, trazem efeitos importantes para a análise dos incentivos e das renúncias fiscais. Queremos destacar aqui três efeitos: (a) a exclusão de certos elementos; (b) a repercussão que a divisão de disciplinas projeta na definição dos conceitos; e (c) a exclusão da dimensão coletiva do tributo, na relação tributária.

O primeiro implica acentuar ausências, destacar aspectos cuja falta, a nosso ver, afeta a compreensão dos incentivos e das renúncias fiscais. Pelo que até aqui já se disse, tem-se claro que cada recorte, cada divisão, cada separação, traçada para dar os contornos da disciplina jurídica do tributo, implica deixar de lado determinada sorte de elementos ou aspectos, seja porque não têm pertinência jurídica, seja porque não têm pertinência jurídico-tributária.

Os elementos excluídos são de duas ordens, como os recortes que lhe dão causa. Primeiro, no que concerne aos recortes externos, nota-se a tendência, prima facie, de afastar do exame jurídico do tributo argumentos relativos à finalidade e à eficácia das exações. Seriam esses aspectos relegados à política e à economia (ciência das finanças), respectivamente, e, portanto, não deveriam ser levados em conta no debate jurídico- tributário. Segundo, quanto aos recortes internos, especialmente à separação entre Direito

104 CORTI, Horacio G. Derecho Constitucional Presupuestario. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina,

2007, p. XXVII.

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CORTI. Horacio G. Derecho Constitucional Presupuestario. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2007, p. XXVI.

Tributário e Financeiro, afasta-se o tributo do contexto geral da atividade financeira e deixa-se de lado a destinação das receitas tributárias. Dessa forma, o ponto de vista jurídico do tributo é limitado às relações que se estabelecem entre fisco e contribuinte, seja em potência, na competência tributária, seja em abstrato, na regra-matriz de incidência tributária, seja em concreto, relação jurídica constituída pelo lançamento. Os efeitos, a finalidade e a destinação dos recursos são relegados à análise marginal, senão de todo excluídos.

No caso dos incentivos e das renúncias fiscais, tais ausências se fazem sentir. Os parâmetros tradicionais de abordagem da tributação que concentram atenção em competência, regras-matriz e fato gerador não parecem de todo adequados ao estudo do tema. O exame das exonerações fiscais não prescinde dos que são ordinariamente deixados de lado pelas exclusões que conformam a disciplina do Direito Tributário.

Este ponto já fora assinalado no capítulo precedente. De fato, não nos parece producente a análise dos incentivos fiscais que não leve em consideração elementos relativos à eficácia, finalidade e destinação de recursos. A desconsideração dos elementos de finalidade e eficácia elimina aspectos fundamentais do conceito de incentivo fiscal e, provavelmente, os parâmetros mais significativos de seu controle judicial. Da mesma forma, também não se afigura produtivo exame da noção de renúncia fiscal, senão considerando-se que é instrumento de direcionamento de recursos por meio do sistema tributário. Aliás, é esta a função do conceito cunhado por Stanley Surrey, na década de 1960, e incorporado pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Complementar n. 101, de 2000.

O segundo aspecto que aqui levamos em conta diz respeito à separação entre Direito Tributário e Direito Financeiro e à maneira como a divisão repercute de forma particularmente significativa no exame das exonerações fiscais. A divisão das disciplinas projeta-se na distinção e na definição dos conceitos de incentivo fiscal e renúncia de receita. O tema da desoneração também se mostra dividido. Na perspectiva do Direito Tributário, encontram-se institutos fiscais – e.g., isenção, remissão, anistia, redução de base de cálculo – que se prestam à finalidade de indução de comportamentos por meio do sistema fiscal e as normas que compõem o regime jurídico aplicável. Na perspectiva do Direito Financeiro, o interesse volta-se à repercussão que podem ter essas medidas tributárias nas finanças e nos orçamentos públicos. O primeiro ponto de vista remete ao

conceito de incentivo ou benefício fiscal; o segundo, ao de renúncia de receita, gasto tributário ou despesa fiscal. De ambos os lados, fala-se sobre o mesmo objeto, mas fala-se de forma diferente.

O mesmo fenômeno está dividido entre duas partes ou pontos de vista; dois sentidos para idêntico referente106: o fenômeno da desoneração fiscal. Aqui está o último aspecto que pretendemos explorar neste capítulo. Mais do que uma divisão de conceitos entre duas disciplinas, há certa contrariedade entre ambas as noções, como se uma denotasse a face positiva (do incentivo) e outra a face negativa (da renúncia) do mesmo objeto, como o lado côncavo e o lado convexo da mesma superfície.

Ao explorar a temática da autonomia do Direito Tributário, sustentamos que, ao fim, o que se obtém é um ponto de vista sobre o tributo, deslocado da atividade financeira e focado primordialmente na relação entre fisco e contribuinte, em seus diferentes aspectos: competência, regra-matriz e lançamento. Daí decorreria o antagonismo que marca o discurso do Direito Tributário, construído a partir de dois sujeitos ou posições opostas. Diante disso, não nos parece despropositado supor que a carga valorativa dos conceitos “incentivo” e “renúncia” seja também produto desta oposição e que, por conseguinte, remeta às duas posições antagônicas da relação jurídica tributária. Em outras palavras, a oposição “incentivo-renúncia” reporta-se ao antagonismo “contribuinte-fisco”.

A percepção das diferentes cargas valorativas que subjazem aos conceitos aqui

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A distinção entre sentido (ou significado) e referente remete-nos às Ciências da Linguagem, em especial, às obras de Saussure e Frege. Com as noções, pretende-se separar o objeto que se designa (referente) e a maneira de o fazer (sentido). Por quê? Em geral, se dois sentidos remetem-se ao mesmo referente, é possível intercambiá-los sem prejuízo para a compreensão do que se fala (por exemplo, as palavras “cão” e “cachorro”). No entanto, isso nem sempre é verdade. “As línguas naturais têm com efeito o poder de construir o universo ao qual se referem; podem pois obter um UNIVERSO DE DISCURSO imaginário” (DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico das Ciências de Linguagem. trad. Alice K. Miyahsiro, et alii. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 229). Esse é um dado importante porque, em certos contextos, como neste estudo, a maneira diferente (sentido) de falar do mesmo objeto revela os distintos pontos de vista a partir do quais é enxergado. O discurso nunca é neutro: “as palavras, expressões e proposições mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam”. (PÊUCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Unicamp, 1988, p. 160). Freda Indursky dá um bom exemplo, ao analisar os diferentes efeitos de sentido que se constroem em torno do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil. Aquilo que, no discurso dos proprietários rurais, dá-se o nome de “invasão” para destacar o sentido de violação à propriedade privada e à lei, no discurso dos militantes do movimento, chama-se “ocupação”, o que sugere a ação legítima e pacífica de adentrar em terras abandonadas. As duas palavras – “invasão” e “ocupação” – nomeiam a mesma prática, mas produzem significados diferentes, ou melhor, opostos. Um delas é correta e a outra não? Não. Há um sentido correto, exato e neutro? Não, cada qual imprime uma direção de sentido, revela a fala de uma posição-sujeito. INDURSKY, Freda. De Ocupação a Invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST. In: INDURSKY, Freda et al. Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.

referidos não é constatação exclusivamente nossa. Misabel de Abreu Machado Derzi, ao tratar dos princípios reitores da renúncia de receita tributária, apresenta semelhante observação:

Se certas expressões como benefícios fiscais, favores, incentivos e

subsídios trazem uma conotação de vantagem, ganho ou proveito em

favor do contribuinte, outras como renúncia de receita, despesas

tributárias ou fiscais denunciam a preocupação contemporânea com a

necessidade de controle financeiro e orçamentário dos gastos que as regras exonerativas de exceção acarretam. 107

Na verdade, esta oposição ou disputa de sentido que marca a relação das duas definições aqui mencionadas é efeito que produzem as relações de poder no jogo de sentidos. “Todo dizer apaga necessariamente outras palavras, produzindo um silêncio sobre os outros sentidos”, explica Eni Orlandi.108

E, neste caso, não é diferente. No que nos interessa, cabe destacar que o antagonismo fisco-contribuinte e o estranhamento da relação tributária em face dos demais elementos da atividade financeira não deixa espaço para um terceiro ponto de vista fundamental ao exame dos incentivos fiscais – a dimensão coletiva dos tributos. Trata-se de ponto de vista daquele que está fora da relação jurídica, não atua em nome do Fisco, nem é contribuinte. No entanto, mesmo não sendo credor ou devedor, enxerga naquela situação algo que lhe diz respeito, algo que transcende a esfera jurídica do indivíduo tributado.

Aliomar Baleeiro, ao analisar as diretrizes que devem presidir o sistema tributário, apontava a “necessidade de acomodar três interesses ou pontos de vista, não dizemos antagônicos, mas nem sempre coincidentes: o ponto de vista do Estado, vale dizer, dos poderes públicos, o do contribuinte e o da comunidade social.”109

O terceiro ponto de vista nos parece essencial para o exame dos incentivos fiscais e perdeu-se com o afastamento entre o Direito Tributário e os demais elementos ou aspectos da atividade financeira. Dizemos que é essencial porque, nas exonerações, ao contrário das relações tributárias de débito, não é a propriedade privada que precisa ser protegida. São os interesses coletivos que justificam a concessão do benefício fiscal.

107

DERZI, Misabel de Abreu Machado. Princípios constitucionais que regem a renúncia da receita tributária.

Revista Internacional de Direito Tributário. Belo Horizonte, v.1, n.1, jan./jun., 2004, p.335. (Grifo

original).

108 ORLANDI, Eni. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. 3ª ed. Campinhas: Pontes, 2008,

p. 128.

Sendo assim, a abordagem dos incentivos (e das renúncias) fiscais demanda visão unitária do fenômeno fiscal, que leve em conta a finalidade, o efeito e a destinação dos recursos, bem como considere a dimensão coletiva dos tributos. É isso, ou não se logrará êxito em seu exame: ter-se-á sempre análise pela metade, unilateral e essencialmente incompleta. Um estudo que acentue ausências, considere os elementos faltantes e reposicione os benefícios fiscais no contexto da atividade financeira é a tarefa que se pretende empreender nas páginas que seguem.

CAPÍTULO

III

INCENTIVOS,

FISCALIDADE

E