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Importância da finalidade e da eficácia no pensamento jurídico e na análise dos

CAPÍTULO V – INCENTIVOS FISCAIS: FINALIDADE, REGRA E EFICÁCIA JURÍDICA

5.2 Importância da finalidade e da eficácia no pensamento jurídico e na análise dos

No pensamento jurídico, os problemas relativos à eficácia das normas costumam receber muito menos atenção do que os concernentes à validade. “Para cada frase escrita a respeito das considerações que condicionam a eficácia das normas jurídicas”, afirma Harry W. Jones, “há ao menos uma centena dedicada, de um modo ou de outro, às formas e aos meios para determinar se certa norma deve ou não ser considerada uma norma válida do sistema jurídico”.329

De fato, é o conceito de validade (ou vigência) – e não o de eficácia – que demarca o campo do debate jurídico. A validade, numa de suas acepções mais difundidas330, denota não uma qualidade, mas a própria existência jurídica específica das normas,331 em face da relação de pertinência que se estabelece entre elas e o ordenamento de que fazem parte.332 Seria precisamente essa relação, esse pertencer a um dado conjunto que lhes confere o atributo de juridicidade e, por conseguinte, o estatuto de norma jurídica.333

Apesar de não ocupar usualmente posição destacada no pensamento jurídico, a

329 JONES, Harry, J. The Efficacy of Law. Evanston: Northwestern University Press, 1969, p. 9-10.

330 O termo “validade” admite vários significados no discurso jurídico: um peculiar modo de existência de

uma norma ou um fato jurídico, uma qualidade positiva de uma norma que se tenha produzido em consonância com as demais normas de competência do sistema de que é parte, a aptidão para ser aplicada pelos juízes, a capacidade de efetivamente disciplinar a conduta dos seus destinatários, a compatibilidade com postulados de direito natural, entre outros, a depender do ponto de vista que se leve em conta. Cf. GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 301-302.

331 Tácio Lacerda Gama propõe que as diferentes maneiras de conceber a questão da validade, como

existência ou como atributo da norma jurídica, seriam simplesmente resultado de pontos de vista distintos lançados sobre o sistema jurídico. Um deles, o que equipara validade e existência, é prescritivo e interno: o juízo é por quem assume a perspectiva de partícipe (órgão) do sistema e tem competência para decidir. O outro, que vê na validade uma qualidade da norma produzida de acordo com a regra de competência, é descritivo e externo: representa o ponto de vista de quem vê o sistema jurídico de fora e não se preocupa em decidir, senão apenas em conhecer. GAMA, Tácio Lacerda, Competência Tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo: Noeses, 2009,p. 304, 305 e ss.

332 A norma torna-se jurídica por fazer parte de um dado ordenamento jurídico, e não o contrario: “não

existem ordenamentos jurídicos, mas existem normas jurídicas porque há ordenamentos jurídicos distintos dos ordenamentos não-jurídicos”, explica Bobbio. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. trad. Maria Celeste Cordeiro dos Santos. 10a ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 30-31.

333 A relação entre validade e existência não é isenta de controvérsias no debate jurídico. Há diferentes formas

de concebê-la, de acordo com diferentes vieses teóricos. Mesmo entre autores de viés positivista e que acolham, nesse particular, o modelo de pensamento kelseniano, há os que distinguem entre “pertinência”, que seria uma forma de existência no interior do sistema jurídico, e “validade”, como a perfeita conformação da norma (ou ato jurídico) ao ordenamento de que faz parte, atendidos os critérios internos para sua produção, notadamente no que concerne à autoridade e à forma. Assim, as normas jurídicas podem pertencer ao sistema jurídico, embora invalidamente, porque viciadas, produzidas defeituosamente. Sobre o tema, ver: NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 39-48.

eficácia também guarda relação intrínseca com o Direito em pelo menos dois sentidos. Primeiro, porque todo o sistema jurídico requer um mínimo de acatamento para que possa vigorar. Segundo, porque qualquer prescrição jurídica está voltada a uma conduta – exterior – que pretende regular, para resguardar sua prática (permissão), proibi-la ou obrigá-la.

Certo grau de eficácia está na base de qualquer sistema jurídico e é pressuposto da própria existência do direito enquanto tal. Ainda que não se possa conceber que a validade ou a existência específica de cada norma jurídica, individualmente considerada, seja dependente de sua eficácia, admite-se, em geral, que algum nível de acatamento e reconhecimento global é, sim, pressuposto do próprio funcionamento do sistema jurídico. Hans Kelsen, referindo-se ao que chama de “princípio da efetividade”, afirma que “Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são observadas e aplicadas”.334 A efetividade seria, portanto, “um caráter constitutivo do Direito”, desde que “com a expressão ‘Direito’ for entendido que estamos nos referindo não à norma em particular, mas ao ordenamento”, sintetiza Norberto Bobbio.335

Além disso, também existe certa pretensão de eficácia que faz parte do sentido e da vocação prática de qualquer norma jurídica, na medida em que sempre remete, em última análise, à conduta concreta que regula e ao bem que pretende tutelar. “É evidente que qualquer norma, jurídica ou de outra categoria, [...] implica, por seu próprio sentido, a vocação de ser cumprida por seu destinatário, é dizer, a pretensão de ser – ao menos neste primeiro sentido – eficaz”, explica Liborio Hierro em obra em que explora as diferentes dimensões e sentidos da eficácia social das normas jurídicas.336

A aduzir que a “pretensão de eficácia” compõe o sentido de qualquer prescrição jurídica permite-nos também dar conta de outro aspecto fundamental ao estudo dos benefícios fiscais, que é a finalidade ou função das normas jurídicas. Ao disciplinar condutas, o Direito incorpora e determina também objetivos: é “instrumento para obtenção de finalidades e objetivos que só podem ser alcançados mediante comportamentos

334 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003,

p.237.

335 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro dos Santos. 10a ed.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p.29.

humanos”, como destaca Geraldo Ataliba.337

A relação entre finalidade e eficácia é, portanto, intrínseca. Não parece exagero afirmar que a finalidade jurídica não passa da projeção do efeito externo da regra. Vale dizer: os fins são os efeitos projetados ou visados pela norma jurídica, seja em termos da conduta que deve ser praticada, seja em relação ao estado de coisas que se pretende alcançar.

Este é um dado relevante para a presente exposição. Nas leis que veiculam políticas públicas338 e concretizam uma intervenção do Estado no domínio econômico, como as que concedem benefícios fiscais, a característica de instrumentalidade das regras jurídicas assume contornos especialmente concretos. Nesses casos, a ação legislativa estatal configura claramente “um meio para atingir determinado fim de caráter material”.339

Afora a natural valoração que se encontra subjacente a qualquer comando jurídico,340 nas leis de incentivo fiscal, confere-se particular relevo e densidade aos objetivos da norma, que deverão traduzir-se em providências concretas e resultados práticos empiricamente verificáveis.

Quando cria um benefício fiscal, o legislador “quer que exista algo que não existe hoje, por exemplo, montar um polo industrial em determinada região, melhorar o volume de exportações, gerar empregos, ampliar os investimentos estrangeiros no País etc.”, salienta Marco Aurélio Grecco.341 O Poder Público considera, então, que a remoção do encargo fiscal, num dado contexto normativo, poderá, em alguma medida, interferir na realidade social exterior e alterar o curso dos acontecimentos sociais e econômicos, de sorte a produzir o resultado desejado.342

A regra de incentivo justifica-se precisamente neste ponto: na capacidade de induzir condutas concretas que o contribuinte beneficiado não adotaria, se não houvesse a vantagem tributária criada. Daí a necessidade de procedermos, no tocante aos incentivos fiscais, à análise funcional e ao exame do papel que desempenham no direito vigente, além

337 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 27. 338

A propósito, afirma Eros Roberto Grau: “A afirmação de que o direito funciona como instrumento de implementação de políticas públicas tem o condão de evidenciar a necessidade de o tomarmos como objeto de análise funcional”. GRAU, Eros, Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 3a ed. São Paulo:

Malheiros, 2000, p.23.

339

GRECCO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 3a ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 41.

340 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. trad. J. Baptista Machado, 9a ed. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 47.

341 GRECCO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 3a ed. São Paulo: Dialética, 2011, p.103. 342

Sobre a relação entre incentivos fiscais e políticas públicas, ver: DOMINGUES, José Marcos. (Coord.)

da forma como se estruturam essas providências jurídicas.