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CAPÍTULO V – INCENTIVOS FISCAIS: FINALIDADE, REGRA E EFICÁCIA JURÍDICA

5.3 Incentivo-renúncia: finalidade, regra e efeito

5.3.2 Incentivo fiscal como regra jurídica

5.3.2.1 Estruturas: heterogeneidade formal

O primeiro aspecto a considerar diz respeito à forma que assumem essas providências jurídicas. A “forma” ou “estrutura” a que nos referimos é a estratégia ou formulação normativa que o legislador manipula para construir o efeito jurídico desejado, que é a remoção ou redução de um dever fiscal, em sentido amplo, e o estímulo a certo comportamento. É “como” o regramento jurídico foi ou pode ser construído para alcançar esses efeitos internos.

Do ponto de vista estrutural, cabe assinalar que os incentivos fiscais não se reduzem todos à mesma estrutura normativa, nem podem ser tomados exatamente como “normas jurídicas em sentido completo”, de acordo com a acepção que lhe confere parte considerável da doutrina.373 O instrumento de incentivo não tem sentido algum

373 A referência ao “sentido deôntico completo” é suscitada por parte considerável da doutrina de Direito

Tributário, com o objetivo de destacar os elementos que são fundamentais à caracterização da norma jurídica em sua integridade constitutiva e, por conseguinte, também à determinação da regra jurídica tributária. Explica Paulo de Barros Carvalho: “ ‘Norma jurídica’ é expressão mínima e irredutível (com perdão do pleonasmo) de manifestação do deôntico, com sentido completo. Dá-se porque os comandos jurídicos, para serem compreendidos no contexto da comunicação bem-sucedida, devem revestir um quantum de estrutura formal. Certamente ninguém entenderia uma ordem, em todo seu alcance, apenas com a indicação, por exemplo, da conduta desejada: ‘pague a quantia de x reais’. Adviriam desde logo algumas perguntas e, no segmento das respectivas respostas, chegaríamos à formula que tem o condão de oferecer o sentido completo da mensagem, isto é, a identificação da pessoa titular do direito, do sujeito obrigado e, ainda, como, quando, onde e por que deve fazê-lo. Somente então estaríamos diante daquela unidade de sentido que as prescrições jurídicas necessitam para serem adequadamente cumpridas.” (CARVALHO, Paulo de Barros, Direito

Tributário Linguagem e Método, São Paulo: Noeses, 2008, p. 531). A tese, do ponto de vista teórico, parte

de, pelo menos, duas premissas claras: (1) a homogeneidade sintática ou formal e (2) a distinção entre texto e norma. A primeira quer dizer que todas as normas jurídicas, inclusive as tributárias, têm a mesma estrutura lógica: trazem um antecedente e um consequente ligados por vínculo de imputação. A segunda indica que aquilo a que nos referimos quando falamos de norma jurídica não se confunde com a mera formulação

isoladamente, refere-se sempre a uma situação jurídica posta, a título de modificá-la para proteger, favorecer ou estimular certo fato ou comportamento.

Dizemos “situação” e não norma, porque nem sempre o instrumento empregado à maneira de incentivo fiscal altera a regra tributária em sentido estrito. É o caso, por exemplo, da remissão e da anistia, que modificam os efeitos de incidência anterior já configurada. Em geral, aquilo que se costuma tomar como incentivo fiscal não reúne todos os elementos necessários para regular, por si só, uma conduta a que se refere, depende da existência de outras normas para que seu significado integral se constitua. Seriam mais propriamente identificadas “partes” ou “fragmentos de normas”, pois só adquirem sentido impositivo em relação a uma conduta quando combinados com outras disposições jurídicas. Por exemplo, o enunciado jurídico que determina redução de alíquota de imposto em benefício do setor automotivo não tem sentido, em termos de regulação de conduta, sem que exista a norma do tributo a que se refere.

O aspecto da “incompletude”, relativo aos benefícios fiscais ou a algumas de suas formas, é destacado na doutrina por diferentes autores. Horacio Corti rotula os benefícios fiscais, do ponto de vista da estrutura, como “acidentes” que afetam alguns dos componentes das normas jurídicas de Direito Financeiro.374 Podem complementar, ressalvar ou determinar uma exclusão em relação a algum aspecto do “esqueleto normativo mínimo” do tributo, diz o autor. “Os benefícios fiscais não dão lugar a outro tipo de normas

textual. A norma jurídica seria, na verdade, o resultado do ato de interpretação a partir dos textos legais e estaria sempre estruturada na fórmula: “se, então”. Em matéria de tributos, a questão tem um fundo prático diante da necessidade de fixar os elementos ou critérios essenciais que o legislador deve determinar em lei para que a norma tributária, em sentido estrito exista, possa incidir sobre o fato gerador e dar ensejo à relação jurídica que obriga o pagamento de certa quantia ao Estado. O esquema lógico é obra do intérprete com base nos textos legais, não existe pronto e acabado no texto da lei, mas todos os seus elementos (critérios) carecem de ser de antemão fornecidos pelo trabalho legislativo, sob pena de não se instaurar o liame tributário. Vale dizer, o “mínimo irredutível do deôntico”, em matéria tributária, demarcaria os critérios essenciais que o legislador deve determinar para que o tributo esteja apto a ser, efetiva e validamente, cobrado. Sem que se delimite, por exemplo, a materialidade a que se refere (e.g. auferir renda) ou critérios para sua quantificação (e.g. alíquota e base de cálculo), o tributo não pode ser cobrado. Sobre o tema uniformidade sintática das normas jurídicas, na perspectiva da Teoria (Geral) do Direito, ver: VILANOVA, Lourival. Estruturas

Lógicas e Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 105 e ss.; ECHAVE, Delia Teresa;

URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo A. Lógica, Proposición y Norma. Buenos Aires: Ástrea, 2002, p.123; GUASTINI, Ricardo. Distinguiendo: estudios de teoría e metateoría del derecho. Trad. Jordi Ferrer Beltran. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 92-109. Sobre a questão dos elementos essenciais à configuração da regra tributária com sentido completo, ver: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário

Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008; SANTI, Eurico Marco Diniz de. Curso de Especialização em Direito Tributário: estudos em homenagem a paulo de barros carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2009,

entre outros.

funcionalmente diferentes.”375

A mesma regra, afetada em algum dos seus componentes, passaria a desempenhar duas funções: arrecadação e incentivo. 376 A primeira diz respeito aos fatos e sujeitos não abarcados pelo benefício fiscal, e a segunda, àqueles incluídos no programa de incentivo.

No mesmo diapasão, embora se referindo especificamente às isenções, Pedro Manuel Herrera Molina explica que “Em sentido estrito, não se pode falar de norma de isenção. Os preceitos que estabelecem essas medidas de desagravamento não expressam um mandamento individualizado, mas se integram à regra tributária”.377

A exoneração, no caso da isenção, seria resultado da modificação de algum dos elementos ou critérios da regra do tributo, e não o efeito jurídico – obrigação, permissão ou proibição – de uma regra em si mesma. A tese não é muito diferente da que propõe Paulo de Barros Carvalho, ao asseverar que “a regra de isenção investe contra um ou mais dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os, parcialmente”, muito embora o autor ressalve que as isenções guardam sua “autonomia normativa”.378

Já Roque Antônio Carrazza explica que “não há uma norma jurídica tributária (anterior) e uma norma jurídica isentiva (posterior)” 379. Na verdade, as duas “convivem harmonicamente, formando uma só norma jurídica tributária (diferente da que existia antes de a isenção ser criada)”.380

A isenção participa da composição da regra tributária, dá-lhe nova feição, ao delimitar-lhe o âmbito de validade. Em linhas gerais, a tese se aproxima também do posicionamento de Sacha Calmon Navarro Coêlho, ao explicar que: os “dispositivos isencionais, assim como os imunizantes, ‘entram’ na composição das hipóteses de incidência das normas de tributação, delimitando o perfil impositivo do ‘fato jurígeno’ eleito pelo legislador”. 381

Não importa discutir aqui exaustivamente, do ponto de vista teórico, a completude ou incompletude da regra de incentivo, em suas várias formas. Já dissemos que o elemento que permite reunir diversos instrumentos sob esse conceito diz respeito à finalidade e não à

375

CORTI, Horacio Guillermo, Derecho Financiero, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 367.

376 CORTI, Horacio Guillermo. Derecho Financiero. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997,p. 367-8. 377 MOLINA, Pedro Manuel Herrera. La Exención Tributaria. Madrid: Colex, 1990, p. 87.

378 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 16a ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 486. 379

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 855.

380 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2008, p. 856.

381

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo, da Interpretação e da Exoneração

estrutura. De toda sorte, a discussão é útil para acentuar o caráter “excepcional” e “desviante” da regra de incentivo em relação ao padrão de carga fiscal existente, na medida em que sua concessão representa, até certo ponto, medida de tratamento diferenciado de alguns sujeitos em relação à generalidade dos demais contribuintes não favorecidos.