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CAPÍTULO III – INCENTIVOS, FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: OS FINS E OS

3.7 Extrafiscalidade e neutralidade(s)

3.7.3 Potência e aptidão extrafiscal

Afirmar que o conceito de neutralidade é relativo e abrange tantos aspectos quantos

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“Considera-se neutro o sistema tributário que não interfira na otimização da alocação dos meios de produção, que não provoque distorções e, assim, confira segurança jurídica para o livre exercício da atividade empresarial”. ZILVETI, Fernando Aurélio. Variações sobre o Princípio da Neutralidade no Direito Tributário Internacional. Direito Tributário Atual, vol. 19, São Paulo, Dialética, 2005, p. 24-40.

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O inciso II do § 3º do art. 153 e o inciso I do § 2º do art. 155 determinam que os impostos sobre produtos industrializados e o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, respetivamente, serão não cumulativos, compensando-se, nas operações anteriores, os valores pagos nas operações seguintes. A mesma exigência consta também no § 12 do art. 195, incluído pela Emenda Constitucional n. 42, de 2003, no que se refere às contribuições sociais incidentes sobre receita ou faturamento e cobrada do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. O art. 154, por sua vez, condiciona o exercício válido da competência tributária residual da União, relativa a impostos, à observância do requisito da não cumulatividade, entre outros.

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GOUVÊA, Marcus Freitas. A Extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 158.

214 “as distorções são efeitos de incentivo indesejados provocados pelos impostos efeitos que acarretam por si

mesmos um custo social na medida em que obstam certas opções que produziriam benefícios sociais”. MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade privada: os impostos e a justiça. trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2005,p. 128.

possam ser afetados pela incidência fiscal implica reconhecer que a atuação tributária extrafiscal abarca diferentes consequências e objetivos. Sendo assim, cabe perguntar: quais podem ser esses outros objetivos que norteiam a tributação extrafiscal? Quais podem ser os efeitos sociais e econômicos visados pelo uso extrafiscal da norma tributária?

A lista é aberta e alcança todas as searas e condutas que são, direta ou indiretamente, afetadas pelo sistema tributário. Pode-se mesmo dizer que a potência extrafiscal, isto é, a possibilidade de projetar efeitos externos à atividade financeira, tem, quanto à área de abrangência, ao menos, a mesma extensão que os fatos sociais alcançados pela competência tributária. Qualquer conduta ou atividade que se sujeita ao tributo sujeitar-se-á também a sua eficácia extrafiscal.215

A escolha do instrumento tributário adequado será, nesse caso, dependente da aptidão específica, quanto à eficácia, de cada uma das diversas exações e materialidades. Naturalmente, o imposto sobre propriedade predial e territorial urbana poderá influir, diretamente, na ocupação do solo urbano, mas nada está a indicar que essa mesma exação possa surtir efeitos diretamente, por exemplo, sobre o volume de importações ou o consumo. O IPTU é, em princípio, apto para aquela finalidade, e não para estas.

O caso do IPTU216 é especialmente ilustrativo, à vista do que dispõem o art. 156, § 1º, e o art. 182, § 4º, II, da Constituição – que permitem “alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel” e a progressividade no tempo, respectivamente –, bem como das decisões que já proferiu o Supremo Tribunal Federal na matéria, antes e depois da Emenda Constitucional n. 29, de 2000.217 As disposições constitucionais não

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Na obra “Alguns Andaimes da Constituição”, Aliomar Baleeiro relata aspectos de sua experiência como partícipe da Assembleia Nacional Constituinte de 1946 e afirma que chegou a apresentar proposta, juntamente com outros constituintes, a fim de que o primeiro artigo do capítulo pertinente à tributação naquela Carta previsse expressamente os “objetivos extrafiscais” da lei. A proposta estava assim redigida: “Art. A. – O sistema tributário proverá ao custeio dos serviços públicos da União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios, assegurará a pontualidade das obrigações oriundas do crédito público e atenderá também aos objetivos extra-fiscais da lei, repartindo os encargos dentro dos princípios da justiça social”. (BALEEIRO, Aliomar. Alguns Andaimes da Constituição. Rio de Janeiro: Livraria Principal, 1950, p. 52). Para justificar a redação, Baleeiro assevera que “Ficou expresso que o tributo, além da sua função primacial de obter dinheiro para a criação e manutenção dos serviços públicos (e portanto com exclusão das despes que não se vinculam a tais serviços) [...] é, também, um instrumento extra-fiscal do governo e de política, no sentido severo da palavra – poder de polícia e de regulamentação que dever ser exercido sempre sem quebra dos princípios da justiça social e equitativa repartição dos encargos públicos”. BALEEIRO, Aliomar. Alguns Andaimes da Constituição. Rio de Janeiro: Livraria Principal, 1950, p. 41.

216 Sobre o tema, ver: OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Propriedade: função social e tributação. In:

GRUPENMACHER, Betina Treiger. (Org.). Direito tributário e o novo Código Civil. São Paulo: ed. Quartier Latin, 2004, p. 264-288.

deixam dúvida quanto ao reconhecimento do possível efeito ordenador desse imposto em relação à ocupação do solo urbano. As regras constitucionais citadas registram o que se poderia chamar de aptidão específica de eficácia extrafiscal, ou seja, o peculiar campo de intervenção reservado ao uso extrafiscal de uma exação.218

Trata-se de aptidão jurídica, não simplesmente fática. Certamente, não são todos os usos extrafiscais, nem todos os tributos que contam com regras constitucionais expressas e específicas regulando o uso de sua aptidão extrafiscal, como o IPTU. Mas a ausência de disposição constitucional expressa não lhes afasta a possibilidade fática de produzir outros efeitos além da arrecadação, tampouco a importância prática que essa questão muitas vezes assume para o debate jurídico. Aliás, a possibilidade, admitida em tese, de serem concedidos incentivos fiscais em normas que versem sobre quaisquer tributos, ainda que vinculados e com receitas previamente afetadas a finalidades pré-determinadas, é a comprovação do reconhecimento e da aceitação jurídico-constitucional da capacidade de produção de efeitos extrafiscais por parte de qualquer tributo.