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CAPÍTULO V – INCENTIVOS FISCAIS: FINALIDADE, REGRA E EFICÁCIA JURÍDICA

5.3 Incentivo-renúncia: finalidade, regra e efeito

5.3.3 Incentivo e renúncia fiscal como efeitos externos

5.3.3.4 Eficácia externa relevante

Em geral, as questões relativas à eficácia social das normas jurídicas não compõem o campo de estudo da dogmática jurídica ou “Ciência do Direito”, em sentido estrito. Acredita-se que conhecer o grau de efetividade de uma norma, as diferentes repercussões que provoca no plano social ou as razões pelas quais é mais ou menos seguida não importa ao debate jurídico. Seria uma investigação de caráter histórico-sociológico.427

Sem contradizer de todo essa premissa, é importante notar que a definição do que seja eficácia externa é relativa e dependente da perspectiva da qual se observa. Resta perguntar: externa em relação a quê? De regra, quando se discute sobre a eficácia social, tem-se em mente uma norma individualmente considerada e as consequências fáticas que dela decorrem. Os efeitos sociais seriam, portanto, externos em relação a essa norma ou até

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Veja-se, a título de exemplo, as seguintes passagens do artigo “Uma Abordagem Estruturada da Renúncia de Receita Pública Federal”, da autoria de Francisco Carlos Ribeiro de Almeida, já citado neste estudo. O autor define renúncia de receita deste modo: “Renúncia de receita são disposições especiais à regra tributária geral com objetivo específico de alcançar grupos relativamente restritos de contribuintes, setores econômicos ou regiões geográficas e que, em princípio, poderiam ser substituídos por programas de gastos diretos, ou seja, financiados com recursos do orçamento fiscal”. No entanto, o autor, logo adiante, no mesmo texto afirma: Comecemos pela “renúncia de receita”, que é termo afeto à atribuição de fiscalização dos órgãos de Controle Externo e Interno. Classicamente, esse é um termo consagrado na terminologia orçamentária, servindo para expressar “perda de arrecadação tributária” em decorrência dos diversos tipos de benefícios tributários (isenção, remissão, redução especial de base de cálculo ou de alíquota, etc.) concedidos pelo poder público a contribuintes de determinados setores, regiões ou mesmo pessoas físicas.” ALMEIDA, Francisco Carlos R., Uma Abordagem Estruturada da Renúncia de Receita Federal, Revista do Tribunal de Contas da

União, Brasília, v. 31, n. 84, abr./jun., 2000, p. 23 e 27, respectivamente. (Grifo original).

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BOBBIO, Norberto, Teoria de Norma Jurídica, 2ª ed. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti, Bauru: Edipro, 2003, p. 48.

mesmo ao setor jurídico em que se insere (e.g. Direito Tributário).

Mas a verdade é que nem todas as consequências fáticas e externas em relação à norma que lhes deu causa são, de fato, juridicamente irrelevantes e alheias em relação ao todo do ordenamento jurídico. Há, no que importa ao tema em estudo, pelo menos duas situações que nos permitem falar de (in)eficácia externa relevante: (1) a inadequação entre os resultados concretos que a norma enseja e o princípio ou a finalidade que está subjacente e (2) a existência de outra regra que inclua em sua hipótese de incidência os fatos resultantes da aplicação anterior de outra norma. Ambas as situações são relevantes para o tema dos incentivos fiscais.

A primeira situação permite-nos discutir a importância dos resultados concretamente produzidos pela concessão de benefícios fiscais em face dos princípios que orientam a intervenção no domínio econômico e do escopo que orienta a regra de incentivo. Destacam-se, em especial, dois casos: ineficácia total da providência jurídica adotada e a produção de efeitos perversos. No primeiro caso, a regra de incentivo não chega a produzir qualquer efeito de indução significativo, e a exoneração tributária converte-se em perda de arrecadação tributária injustificada, desperdício de recursos públicos. No segundo caso, o efeito indutor concretamente produzido dá lugar a um estado de coisas absolutamente contraditório em relação àquele visado pela norma. É dizer, a conduta induzida observa-se na prática, todavia o estado de coisas que dela decorre não é o desejado pelo legislador: e.g. institui-se incentivo fiscal para proteção do meio ambiente, mas a conduta fomentada, por razões outras, acaba por agravar a emissão de poluentes na atmosfera.

Não nos parece que uma ou outra situação sejam verdadeiramente irrelevantes para o sistema jurídico vigente, embora sua constatação não deva conduzir necessariamente à invalidade da regra de incentivo. Decerto é dado ao legislador o direito de “errar” em seu prognóstico legislativo, seja porque o efeito concreto pretendido não sobrevém em face da alteração das condições fáticas vigentes ao tempo da aplicação, seja porque se produziram consequências sociais imprevisíveis aprioristicamente, ao tempo da edição da lei. Ainda assim, a informação relativa aos efeitos externos produzidos não é despicienda e não pode ser suprimida do discurso jurídico.

aplicação de uma norma são tomados como hipótese de incidência de outra, 428 como se observa nos casos de renúncia fiscal. Não é incomum que uma segunda regra jurídica (R2) venha a incidir sobre as relações fáticas produzidas por uma primeira (R1) , inserindo-os assim no interior do ordenamento jurídico. Tais fatos seriam, dessa forma, externos em relação à primeira norma (R1) que os causa, mas tomados como elemento do suporte fático ou hipótese de outra (R2).429 É exatamente o que se passa em relação às renúncias fiscais. Embora o efeito de renúncia possa ser concebido como estado de coisas que decorre da ação de não cobrar o tributo ou de fazê-lo a menor, existem outras regras, no ordenamento jurídico brasileiro, que tomam esse mesmo efeito concreto como elemento de sua hipótese de incidência e imputam-lhe o condão de fazer surgir, no plano jurídico, novos efeitos jurídicos.

É o caso da regra do art. 14 da Lei Complementar n. 101, de 2000, que dispõe sobre perda de arrecadação decorrente da concessão de benefícios fiscais. A disposição prescreve, entre outros aspectos, que, “se concessão ou ampliação de incentivo de natureza tributária implicar renúncia de receita, então deve ser realizada estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes [...]”. Logo, embora se possa dizer que o impacto financeiro-orçamentário que as regras de incentivo implicam, em termos de perda de arrecadação (renúncia), seja questão alheia aos domínios tributários, que têm no pagamento seu limite último, essa circunstância é expressamente disciplinada pela regra do art. 14 da Lei Complementar 101, de 2000.

Sendo assim, a bem da verdade, deve-se reconhecer que incentivo e renúncia não são consequências de todo “externas” em relação ao ordenamento jurídico, tampouco são desimportantes para o debate jurídico dos incentivos fiscais. Afiguram-se, sim, como efeitos externos quanto à regra e à relação tributária, não ao todo do sistema jurídico, especialmente ao Direito Financeiro. A atenção à finalidade jurídica, no caso do efeito de

428 A propósito, explica Lourival Vilanova: “A relação jurídica que, num ponto da série, é efeito de um fato

jurídico, passa ao tópico funcional de um fato jurídico em face de novas relações eficaciais. O suporte fático pode ingressar na hipótese fáctica contendo, em sua composição interna, fatos naturais e fatos já jurisdicizados, meros fatos e relações jurídicas: no seu todo funciona como fato jurídico produtor de efeitos”. VILANORA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 165.

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Um exemplo de efeito externo importante do tributo, embora não diga respeito necessariamente ao tema da extrafiscalidade, é a repercussão tributária, ou seja, a transferência do ônus econômico do tributo a outrem – contribuinte de fato –, que não participa da relação jurídica tributária. Como é cediço, o fenômeno é expressamente mencionado pelo Código Tributário Nacional, no art. 166, ao regular a restituição de tributos pagos indevidamente. Trata-se claramente de situação em que um efeito externo é levado em conta em matéria tributária.

incentivo, oferece parâmetro para que se possam avaliar os resultados concretamente produzidos e aferir o maior ou menor êxito do benefício fiscal em questão. O efeito de renúncia, por sua vez, é regulado expressamente por normas de Direito Financeiro, quer no âmbito da Constituição Federal (e.g. art. 150, § 6º), quer no âmbito infraconstitucional (e.g. art. 14 da Lei Complementar 101, de 2000).