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CAPÍTULO III – INCENTIVOS, FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: OS FINS E OS

3.4 O Tributo na Constituição e a noção de Estado fiscal

3.4.2 Tributo, liberdade e propriedade

Do ponto de vista do cidadão, a escolha das exações como meio de financiamento e a consequente cisão entre Estado e mercado vêm juntamente com o reconhecimento dos direitos econômicos e da garantia ao particular do livre exercício das atividades produtivas.

A tributação apresenta-se, em certo sentido, como mecanismo de legitimação dos comportamentos sociais orientados à acumulação de riqueza141 e relaciona-se com a própria noção de cidadania, na medida em que se tome o pagamento de tributos como colaboração para o financiamento do aparelho estatal e “uma contrapartida pela participação no espaço público”.142

O tributo é preço que se paga pela liberdade no Estado

140 ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La Función del Tributo em el Estado Social e Democrático de

Derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002,p. 39.

141 PALMEIRA, Marcos Rogério. Direito Tributário versus Mercado: o liberalismo na reforma do Estado

brasileiro nos anos 90. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 87.

moderno, uma vez que “o indivíduo se distancia do Estado na medida em que a prestação fiscal substitui os deveres pessoais e alivia as proibições jurídicas”, afirma Ricardo Lobo Torres.143 “As relações entre liberdade e tributo no Estado de Direito são de absoluta essencialidade. Não existe tributo sem liberdade, e a liberdade desaparece quando não a garante o tributo. A própria definição de tributo se inicia na noção de liberdade”, explica o autor.144

No Estado Fiscal, o pagamento do tributo revela-se como garantia de que o Poder Público permitirá a propriedade privada145 – já que dela derivam também as receitas que o alimentam – e a liberdade de iniciativa, não interferindo na economia senão para dirigir e regular.146 Destarte, longe de consistir numa agressão ao direito de propriedade, a tributação mantém com ela íntima relação. São codependentes, conclui-se. Só há tributo porque existe propriedade privada sobre a qual ele incide e só existe propriedade porque existe o Estado (e o direito) para resguardá-la.

No mesmo sentido, o sistema fiscal participa da construção do mercado como instituição jurídica. Estado e mercado147 implicam-se reciprocamente: “não existe mercado sem governo e não existe governo sem impostos”.148

Levado ao extremo o argumento, pode-se mesmo afirmar, com Liam Murphy e Thomas Nagel, que “a propriedade é uma convenção jurídica definida em parte pelo sistema tributário”.149 Ou, pelo menos, que “os direitos de propriedade são produtos de um conjunto de leis e convenções do qual o

2005, p. 25.

143 TORRES, Ricardo Lobo. A Ideia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de

Janeiro: Renovar, 1991, p. 37.

144

TORRES, Ricardo Lobo. A Ideia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 109.

145 Sobre a relação entre a função social da propriedade e a tributação, ver: OLIVEIRA, Regis Fernandes de.

Propriedade: Função Social e Tributação. In: GRUPENMACHER, Betina Treiger (Cooord.), Direito

Tributário e o Novo Código Civil, São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 265-288.

146 PALMEIRA, Marcos Rogério. Direito Tributário versus Mercado: o liberalismo na reforma do Estado

brasileiro nos anos 90. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 88.

147 A propósito da relação entre Estado e mercado, Natalino Irti destaca que serão “tantos os modelos e tipos

de mercado quantas forem as leis que os regulem”. O autor também não desconsidera a relação entre os tributos e o mercado, na medida em que reconhece um dever geral de pagar tributos com fundamento no art.53 da Constituição italiana, que prevê o dever de todos concorrerem para as despesas públicas na medida de sua capacidade contributiva. Nos tributos estaria representado o dever de solidariedade do indivíduo para com a sociedade de que faz parte. IRTI, Natalino. L’Ordine Giuridico del Mercato. 3a ed. Bari: Gius, Laterza & Figli, 1998, p. 83.

148 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade privada: os impostos e a justiça. trad.

Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 46

149

MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade privada: os impostos e a justiça. trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 11.

sistema tributário faz parte”.150

Ainda que não se possa postular que as normas do sistema fiscal efetivamente participem da definição da propriedade, como direito subjetivo individual, deve-se reconhecer que, em certa medida, do ponto de vista jurídico, os tributos e a propriedade privada formam partes do mesmo todo – a ordem econômica.151

Noutra perspectiva, o dever geral de pagar impostos – ou, grosso modo, tributos – significa também o comprometimento do indivíduo com a comunidade que o acolhe e a repartição dos custos de instalação, manutenção e aperfeiçoamento do Estado Social e Democrático de Direito.152 A obrigação tributária configura, nesse sentido, dever para com a própria comunidade, baseado nos valores de responsabilidade e de solidariedade, manifestados no imperativo de justa repartição dos gastos públicos.153 Trata-se da interface positiva que se estabelece entre os tributos e os direitos fundamentais,154 na qual se enxergam as normas tributárias não apenas como limitadas pelos direitos fundamentais, mas também sua fonte de financiamento e, nessa medida, como condicionante de sua concretização.

A relação entre tributos e direitos fundamentais constrói-se, no âmbito da fiscalidade, diante da constatação de que todos os direitos fundamentais, qualquer que seja sua dimensão, geração ou natureza, demandam, em maior ou menor medida, dispêndio de recursos públicos. “Um direito subjetivo existe, na realidade, apenas quando e se tem custos orçamentários”;155

do contrário, o que há é mera aspiração, obrigação moral, que não dá ensejo a qualquer prestação juridicamente exigível.156 Sendo assim, pode-se

150 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade privada: os impostos e a justiça. trad.

Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p.98

151

“Não podemos conceber a propriedade privada como algo que é distribuído ou simplesmente abocanhado pelo sistema tributário, mas sim como algo que é criado por esse mesmo sistema”. MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade privada: os impostos e a justiça. trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p.240.

152

SIDOU, J. M. Othon. A Natureza Social do Tributo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p.11 et passim.

153 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade privada: os impostos e a justiça. trad.

Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 31.

154 Em rigor, as relações entre direitos fundamentais e tributação não se esgota na constatação de que esta é a

fonte de financiamento daquela. Há, pelo menos, três interfaces possíveis entre normas tributárias e direitos fundamentais: (1) os direitos como limitadores da competência tributária, (2) os recursos tributários como financiadores dos direitos e (3) as normas tributárias como instrumentos de concretização dos direitos fundamentais, mormente os que demandam, em maior medida, prestações positivas. Sobre o tema, vale conferir: BRANCO, Paulo; MEIRA, Liziane; CORREIA NETO, Celso. Tributação e Direitos

Fundamentais – Estudos sobre a Jurisprudência do STF e do STJ. São Paulo: Saraiva, 2012; FISCHER,

Octavio Campos. (Coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004.

155 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN Cass R. The Cost of Rights: why liberty depends on taxes. New York:

Norton &Co., 1999, p. 19.

reconhecer, na obrigação tributária, também o compromisso com a concretização desses mesmos direitos que financia,157 o que fica particularmente evidente nos tributos de destinação vinculada ao seguimento social (e.g. as contribuições sociais a que se refere o art. 195 da Constituição Federal).158

3.5 Fiscalidade e extrafiscalidade: o tributo como instrumento de arrecadação e