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CAPÍTULO III – INCENTIVOS, FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: OS FINS E OS

3.4 O Tributo na Constituição e a noção de Estado fiscal

3.4.1 O Tributo e a ordem econômica

A decisão política fundamental de tornar o Estado dependente de tributos não diz respeito apenas ao sistema fiscal. Afeta também a ordem econômica e a maneira como o Poder Público deve postar-se perante a atividade econômica e os particulares, inclusive por meio da tributação. A primazia do tributo na aquisição das receitas públicas não faz dele corpo estranho na ordem econômica,133 antes o torna estrutura elementar do próprio modelo acolhido na ordem constitucional. No caso da Constituição de 1988, pode-se dizer que a noção de Estado Fiscal participa da definição dos pilares normativos “Da Ordem Econômica e Financeira”, tanto quanto da construção do “Sistema Tributário Nacional”.

Detrás da função constitucional do tributo, como fonte primeira de recursos públicos, está a separação entre Estado e sociedade (mercado) com “a consequente sustentação financeira daquele através da sua participação nas receitas da economia produtiva pela via do imposto”.134

A distinção é indissociável do conceito de Estado moderno, porque garante o processo econômico, tanto quanto possível, despolitizado e livre à ação dos particulares. “O Estado moderno”, explica José Eduardo Faria, “é o resultado da diferenciação de um sistema econômico que regulamenta o processo produtivo através do mercado, de modo descentralizado e apolítico”. 135

Na exploração da atividade econômica, a ação estatal é subsidiária. Ao fixar a

132 O quadro de receitas do orçamento fiscal separa em grupos diferentes as “receitas tributárias” e as

“receitas de contribuições”. A separação é resultante da classificação prevista no art.11 , § 4º, da Lei n. 4320, de 1964, modificado pelo Decreto Lei n. 1.939, de 20.5.1982, e remonta a momento no qual ainda remanesciam dúvidas quanto à natureza tributária das contribuições. Daí classificarem-se, no grupo das despesas correntes, a “receita tributária”, subgrupo que compreende impostos, taxas e contribuições de melhoria, e o subgrupo das “receitas de contribuições”, o que sugere a diferença de natureza jurídica entre estas e aqueles.

133

SCHOUERI, Luís Eduardo. Tributação e Liberdade. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário - Estudos em Homenagem ao Professor

Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, v. 1, p. 431-471.

134 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 2004, p. 196. 135

FARIA, José Eduardo. Eficácia Jurídica e Violência Simbólica: o Direito como Instrumento de Transformação Social. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1988, p.62.

precedência do tributo como ferramenta de financiamento da máquina pública, a ordem constitucional limita, em contrapartida, a ação do Estado no campo econômico e exclui a exploração do patrimônio público e a atividade empresarial como instrumentos de captação de recursos. Assegura-se, dessa maneira, que qualquer interferência estatal no processo econômico apenas será justificada por finalidades diversas da mera aquisição de receitas, seja para prestação de serviços públicos, nos casos previstos na Constituição, seja para controle e correção do mercado.

Ainda quando explore atividade empresarial, como prevê o art. 173 da Constituição Federal, o sentido da ação estatal não deverá ser, primordialmente, a promoção do lucro, nem a geração de recursos públicos. A atuação do Estado volta-se à condução do processo econômico na direção dos objetivos ou princípios positivados na ordem jurídica constitucional. É nesse sentido que a ação do Estado, no campo econômico, adquire o sentido de “intervenção”, expressão que sugere excepcionalidade, “atuação em área de outrem”136

ou, mais precisamente, “atuação em campo que originariamente não compete ao Estado”.137

Tradicionalmente, os juristas se servem da expressão “intervenção no domínio econômico” para nomear o gênero formado pelas diversas estratégias de ação do Estado diante do processo produtivo. Usa-se o verbo “intervir”, para designar a ação do Estado, seguido da expressão “no domínio econômico”, que indica o objeto dessa ação. A escolha desse verbo expressa uma tomada de posição quanto à participação e ao papel do Estado no mercado. Dá ideia de interferência, de excepcionalidade, de presença não desejada. Traduz , assim, o que seria elemento ideológico de preconceito liberal138, que preconiza a abstenção do Estado, em termos de ação econômica, como regra, admitindo que o Estado atue (intervenha) apenas em certas circunstâncias excepcionais.139

Rigorosamente, em termos jurídico-constitucionais, a ação pública na economia não passa do exercício de uma competência constitucional, entre tantas outras de que

136

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 84.

137 SCHOUERI, Luís Eduardo. Algumas Considerações sobre a Contribuição de Intervenção no Domínio

Econômico no Sistema Constitucional Brasileiro, A Contribuição ao Programa Universidade-Empresa. In: GRECO, Marco Aurélio (Org.). Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico e Figuras Afins. São Paulo: Dialética, 2001, p. 357-373.

138 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 4ª ed, São Paulo: LTr,

1999, p.319.

139

SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico, 4ª ed, São Paulo: LTr, 1999, p. 321.

dispõe o Estado. O que qualifica e diferencia a ação estatal no campo econômico é a finalidade que a justifica. Por isso, a “intervenção” não significa, necessariamente, que o Estado aja em campo que simplesmente está reservado aos particulares, como sugere o étimo da palavra, mas que, agindo na mesma seara, o faz com objetivo e meios diversos daqueles. A distinção leva em conta essencialmente a finalidade ou o motivo da ação intentada. A intervenção diz-se excepcional, porque é feita com finalidade não arrecadatória: justifica-se para corrigir ou transformar o mercado, não para captar receitas simplesmente. “Os objetivos financeiros só podem ser perseguidos pelos tributos”140

, não pela exploração do patrimônio público, nem pela atividade empresarial, ainda que ambas possam certamente oferecer receitas ao Poder Público de forma subalterna.

Aqui se vê um ponto de interseção entre a ordem econômica e o princípio do Estado fiscal: o mesmo sistema que confere ao Estado o instrumento tributário, com o fim de prover-lhe o cofre, também o priva de usar da atividade econômica com esse objetivo. Embora não se possa estabelecer relação de causa e consequência entre as duas inferências, é possível reconhecer que ambas são elementos do mesmo quadro, peças do mesmo mosaico normativo, que dá forma à Constituição tributária (e Financeira) e também à Constituição Econômica.