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CAPÍTULO IV – INCENTIVOS E RENÚNCIAS FISCAIS: CONTEXTO, LIMITES E

4.3 Renúncia fiscal – primeira aproximação

4.3.3 Renúncias, não despesas

O termo “tax expenditure” é, de certo modo, metafórico, assim como também suas traduções para o português: “despesa fiscal”, “gasto tributário” e “renúncia de receita”. Como já se viu, o conceito traz para a linguagem do orçamento o que antes se dizia apenas em termos tributários e concernia somente à política fiscal. Estabelece, dessa forma, relação de conexão e semelhança entre aspectos diferentes e até mesmo opostos das finanças públicas, as receitas e as despesas. Faz ver duas coisas em uma só, como é próprio da linguagem das metáforas.303

As expressões “gasto tributário” e “despesa fiscal” são contraditórias nos próprios termos. Rigorosamente, não há despesa alguma. Ainda que receita e despesa sejam duas partes de um todo, o orçamento público, isso não quer dizer que sejam uma só e mesma realidade. São conceitos jurídicos diferentes. “O orçamento não dá destinação aos impostos, dá destinação à receita”, destaca Pontes de Miranda.304

O gasto público é emprego de receita previamente arrecadada. É “a aplicação de certa quantia, em dinheiro, por parte da autoridade ou agente público competente, dentro duma autorização, para execução de fim a cargo do governo”, explica Aliomar Baleeiro, em sua clássica definição de despesa pública.305 Nas ditas despesas fiscais, o que existe, de fato, é uma não

303 “Se, formalmente, a metáfora é uma desvio em relação ao uso corrente das palavras, de um ponto de vista

dinâmico ela procede de uma aproximação entre a coisa a nomear e a coisa estranha à qual ela empresta o nome. A comparação explicita essa aproximação subjacente ao empréstimo e ao desvio.” RICCOEUR, Paul.

A Metáfora Viva. 2a ed. trad. Dion Davi Macedo, São Paulo: Loyola, 2000, p. 43.

304 MIRANDA, Francisco C. Pontes de, Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n.1, de 1969,

Tomo II, (art. 8o – 31). 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 368.

arrecadação e, por conseguinte, uma não despesa. Não se tem o ato jurídico do dispêndio, que é elemento essencial do conceito.

O mesmo pode-se dizer das expressões “renúncia de receita” e “renúncia fiscal”, embora nestas o contrassenso não seja tão evidente quanto nas anteriores. De fato, também não há estritamente renúncia alguma, nem de competência, nem de receita. Coerentemente com o que afirmamos no tocante à concessão de incentivos fiscais, devemos agora também reconhecer que não se tem, nas situações descritas como renúncia fiscal, qualquer sorte de abdicação à competência impositiva. A renúncia é antes (resultado de) seu exercício, ainda que para afastar total ou parcialmente a cobrança de certa exação. Só quem pode cobrar o tributo pode renunciá-lo. Quando concede isenção tributária, por exemplo, o legislador não abdica de seu posto, nem de seu poder de impor tributo. O ato legislativo de renúncia fiscal, em suas várias formas, configura, tanto quanto a imposição do tributo, exercício da competência legislativa tributária.

Da mesma maneira, não há também renúncia à receita tributária propriamente dita. A renúncia, como ato jurídico, é praticada pelo titular de um direito no sentido de extinguir relação jurídica pré-estabelecida e desobrigar o sujeito passivo da relação de crédito. Define-a Vicente Ráo como ato “por via do qual a parte se desposa, por sua exclusiva declaração de vontade, de direito ou vantagem que lhe pertence”.306

Em outras palavras, renunciando, o credor perdoa graciosamente a dívida, abre mão de seu direito e põe fim à obrigação antes instalada. Embora o Código Tributário Nacional e o Código Civil de 2002 não incluam a renúncia entre as modalidades de extinção das obrigações, ambos preveem a remissão, como modalidade graciosa de extinção da obrigação,307 nos arts. 172 e 385, respectivamente.308 Na essência, renúncia e remissão têm o mesmo conteúdo: há uma relação jurídica obrigacional preexistente que se extingue, por decisão do credor, sem que a

Janeiro: Forense, 1964, p.61.

306 RÁO, Vicente. Ato Jurídico. Noção. Pressupostos. Elementos essenciais e acidentais. O problema do

conflito entre os elementos volitivos e a declaração. São Paulo: Max Limonad, s/d, p 425.

307 “Remissão (de remitir) é a renúncia, perdão ou desistência do crédito pelo credor, com efeito de liberar o

devedor. Sua natureza é de negócio jurídico unilateral, porque supõe a manifestação de vontade, tácita ou expressa, de remitir”. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito das Obrigações. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 74.

308 No Direito Civil, há quem tome a remissão como uma espécie de renúncia que tem por objeto um direito

creditório, ou a renúncia cujos efeitos dependem de aceitação de terceiro. Explica Eduardo Espínola: “Remissão é a dispensa de pagamento que faz o credor com o consentimento, ou sem a oposição do devedor”. ESPÍNOLA, Eduardo. Garantia e Extinção das Obrigações Solidárias e Indivisíveis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1954, p. 156.

prestação efetive-se.309

O fato é que essa relação jurídica preexistente não costuma se observar nos casos de renúncia fiscal. Na maior parte das situações acolhidas pelo ordenamento jurídico como de renúncia de receita tributária, notadamente as mencionadas no art. 14 da Lei Complementar n. 101 de 2000, não se verifica exatamente uma prévia relação de crédito tributário de que abra mão o legislador. Como ato legislativo, a renúncia, não raro, precede inclusive a ocorrência do fato gerador e, portanto, a relação jurídica que dá ensejo ao surgimento do crédito tributário. Para sermos exatos, apenas nos casos de remissão e anistia é que o débito precede a renúncia, mas certamente nenhuma interpretação que se conhece pretende que a noção em exame fique restrita a esses dois institutos. Com efeito, o que o ato de renúncia fiscal pressupõe é apenas a competência tributária e a relação jurídica de sujeição que dela decorre. Mas a competência, já vimos, não é renunciada, antes exercida.

Daí afirmarmos que as noções em exame têm sentido metafórico. Não significam literalmente o que dizem. Não vai nisso, é claro, qualquer crítica ao conceito de despesa fiscal, nem na origem, muito menos em seus usos atuais. Aliás, por mais de uma vez já ressaltamos aqui seus méritos. Pretende-se apenas destacar que o que está subjacente à noção de “gasto tributário” e “renúncia fiscal” é a possibilidade de servir de ponte ou elo entre estas duas realidades distintas, embora ligadas – receitas e despesas. Em outras palavras, por meio do conceito de renúncia fiscal, deseja-se tratar as desonerações tributárias “como se fossem gastos [diretos]”, ou seja, como um “equivalente conceitual” 310

, a fim de permitir a comparação entre aquelas e estas, seja no tocante aos custos, seja no tocante à efetividade com que atentem ao interesse público. E, ao dizer “como se fossem gastos”, já se está implicitamente reconhecendo que não são deveras gastos.