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Dificuldades essenciais: identificação e estimativa

CAPÍTULO IV – INCENTIVOS E RENÚNCIAS FISCAIS: CONTEXTO, LIMITES E

4.3 Renúncia fiscal – primeira aproximação

4.3.1 Dificuldades essenciais: identificação e estimativa

A despeito da importância e da utilidade de se chamar atenção para o custo orçamentário da concessão de incentivos fiscais e para a maneira como se aproximam das despesas públicas, a aplicação do conceito de renúncia fiscal, por meio do respectivo orçamento, traz consigo dificuldades práticas que não podem ser ignoradas. São, na verdade, entraves que acompanham a noção de renúncia fiscal desde sua origem, no final

288 “A classificação de um item como uma renúncia fiscal, por si só, não faz dele uma previsão desejável ou

indesejável; nem indica que a inclusão desse item no sistema tributário seja bom ou ruim para a política fiscal. A classificação de um item como renúncia fiscal é puramente informativa, assim como a presença de um item no orçamento governamental de despesas diretas é também informativa; é simplesmente uma maneira de indicar que aquele item não é parte da estrutura normativa do imposto.” SURREY, Stanley S.; Paul, McDaniel. Tax Expenditures. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985, p. 5.

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FIEKOWSKY, Seymour, Tax Incentives as Viewed by Economists and Lawyers. National Tax Journal, p. 325-40, set.,1991.

da década de 1960. Dizem respeito a dois aspectos fundamentais: (1) à definição de quais medidas tributárias, em concreto, poderiam ser enquadradas na categoria das “renúncias fiscais” e (2) a maneira de quantificar o impacto orçamentário real dessas medidas no orçamento e, grosso modo, nas finanças públicas.

Já dissemos que a noção de “tax expenditure” surge com base na legislação do imposto de renda e é resultado da distinção entre as disposições que compõem a estrutura normal ou padrão da regra tributária e outras que seriam especiais e representariam “desvios” em relação à norma padrão. A verdade é que nem sempre é simples separar o que é da própria estrutura do imposto e constitui a norma padrão daquilo que é excepcional e destina-se a favorecer certos sujeitos, segmentos ou atividades, sobretudo quando se considera que a tributação nunca é exatamente neutra: sempre cria vantagens e desvantagens. A questão não é meramente teórica, afeta a própria operacionalidade do conceito. Como se pode formular listagem com todas as renúncias fiscais sem antes se saber, precisamente, quais elementos uma previsão tributária deve conter para se incluir nessa categoria? É fundamental a prévia definição da regra geral ou padrão ou de referência do tributo para que se possa, depois, verificar o que seja “especial” ou “desviante”.

A dificuldade já existia ao tempo em que Surrey enfrentou pela primeira vez o tema das renúncias fiscais e mantém-se ainda hoje atual. Os limites dependem dos contornos da própria matéria tributável: “o conceito de despesa fiscal é moldado à imagem e semelhança do sistema fiscal em que se insere”, diz Guilherme W. D’Oliveira Martins, aqui já citado.290 É, portanto, variável nos diferentes ordenamentos jurídicos, porque aquilo que num sistema tributário pode ser tomado como elemento indissociável da “norma padrão” de certo tributo, noutro é caracterizado como escolha meramente discricionária.

No Brasil, a Receita Federal publica anualmente o “Demonstrativo dos Gastos Governamentais Indiretos da Natureza Tributária – Gastos Tributários”, em cumprimento ao § 6º do art. 165, da Constituição Federal e ao inciso II do art. 5o da Lei Complementar n. 101, de 2000. No documento, o órgão define gastos tributários, desde 2003, como: “gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema tributário, visando atender objetivos econômicos e sociais.” E explica que são “exceções” ao sistema tributário de

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MARTINS, Guilherme Waldermar D’Oliveira. A Despesa Fiscal e o Orçamento do Estado no

referência, reduzindo a arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte”. Podem ter caráter compensatório, “quando o governo não atende adequadamente a população dos serviços de sua responsabilidade [sic]”, ou caráter incentivador, “quando o governo tem a intenção de desenvolver determinado setor ou região”.291

A segunda dificuldade concernente à determinação dos valores das renúncias efetuadas, ou seja, a quanto efetivamente deixou-se de arrecadar por conta dessas concessões tributárias. O problema aqui diz respeito ao método de cálculo e é também tão antigo quanto à própria ideia de “tax expenditure”. Surrey discutia então a maneira de contabilizar os efeitos orçamentários das renúncias fiscais, ciente das dificuldades decorrentes das alterações provocadas pela concessão ou supressão do incentivo fiscal no comportamento do indivíduo. Dizia ele que a estimativa então empregada media “a receita que seria obtida pela alteração da disposição tributária envolvida sem que nada mais se alterasse”. 292

Mas desconsiderava: o que o contribuinte faria diante da mudança, quais despesas diretas seriam empregadas em substituição e ainda quais outras mudanças relativas às alíquotas, faixas de renda, deduções etc. deveriam seria realizadas. Não havia, destarte, visão geral acerca dos efeitos da supressão do benefício.293

Não vamos aqui discutir as diferentes maneiras hoje empregadas para realizar essa tarefa. Basta-nos assinalar que, pela natureza do cálculo envolvido, o Poder Público vê-se diante da necessidade de escolher entre: (1) métodos estáticos e simples, que não consideram precisamente as alterações de comportamento decorrentes da concessão e supressão dos incentivos fiscais, ou (2) método dinâmico, embora mais complexo, que pretende considerar também o efeito de incentivo que as escolhas de política fiscal geram nas decisões econômicas dos contribuintes. 294

291 BRASIL, Ministério da Fazenda, Receita Federal do Brasil. Demonstrativo de Gastos Governamentais

Indiretos de natureza Tributária – (Gastos Tributários) 2012. Brasília, agosto, 2011. Disponível em:

http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/estudotributario/BensTributarios/2012/DGT2012.pdf. Acesso em: 20 ago. 2012.

292 SURREY, Stanley S. Pathways to tax reform: the concept of tax expenditures. Cambridge, Mass.:

Harvard University Press, 1973, p. 24.

293SURREY, Stanley S. Pathways to tax reform: the concept of tax expenditures. Cambridge, Mass.:

Harvard University Press, 1973, p. 24.

294 São três as maneiras mais conhecidas de se estimar o montante das renúncias fiscais: (1) método da perda

de arrecadação, (2) método do incremento de receita e (3) método da despesa equivalente. O primeiro consiste, em apertada síntese, de estimar a redução de arrecadação decorrente da concessão de certo benefício fiscal pela comparação entre o volume de receitas providas pela legislação tributária com e sem o benefício. O segundo procurar medir o aumento de receitas que seria esperado da extinção de um benefício fiscal

Certamente, desconsiderar o efeito comportamental ou de incentivo que essas medidas trazem é deixar de lado parte considerável daquilo que lhe é mais elementar: são concedidas precisamente para, de alguma forma, afetar o comportamento do contribuinte. Contudo, não se pode negar que existe certo grau de incerteza e imprevisibilidade nesses efeitos, notadamente porque operam no plano da eficácia social, mediante relações de causa e efeito, e interagem com outros fatores e variáveis da ordem econômica, que podem igualmente afetar as decisões dos contribuintes. Eis a contradição essencial que reside na quantificação das renúncias fiscais.

De resto, também não se pode ignorar o efeito interativo entre diferentes tributos, isto é, o modo como a concessão ou a supressão de um incentivo pode também afetar o cálculo de outras exações. A eliminação de incentivos à poupança pode, por exemplo, aumentar as vendas e, por conseguinte, a arrecadação do imposto que sobre elas incide.295 E ainda que internamente, em relação a um mesmo tributo, os benefícios fiscais e as demais exonerações podem também interagir, de maneira a tornar ainda mais complexa a determinação do montante da receita renunciada. “A eliminação de um benefício fiscal, no âmbito de um imposto de renda pessoal e progressivo”, por exemplo, “pode levar o contribuinte a uma faixa de alíquota marginal mais elevada e, assim, fazer com que o valor de outros benefícios que permaneçam seja aumentado”, explica Francisco C. R. Almeida.296

Não cabe aqui enfrentar todas as dificuldades implicadas em cada um dos métodos, já dissemos. Para o que nos interessa, nos limites estreitos deste estudo, é suficiente

anteriormente concedido, sem desconsiderar completamente os efeitos comportamentais que poderia decorrer desse ato. O terceiro estima o custo do benefício fiscal por meio da comparação com volume da despesas diretas que seria necessário para alcançar o mesmo resultado prático. Como é cediço, o método da perda de arrecadação ou receita perdida é o mais usual e prático, tendo sido adotado pela maior parte dos países que incorporaram o conceito de renúncia fiscal aos seus ordenamentos. Sobre os diferentes métodos, suas peculiaridades e seus entraves, ver: SURREY, Stanley S. Pathways to tax reform: the concept of tax expenditures. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1973, p. 24-26; SWIFT, Zhicheng Li; VALENDUC, Christian. Tax Expenditures: General Concept, Measurement, and Overview of Countries Practices. ______. Tax Expenditures – Shedding Light on Government Spending the Tax System: lessons from developed and transition economies. Washington: World Bank, 2004, passin; HENRIQUES, Elcio Fiori. Os Benefícios Fiscais no Direito Financeiro e Orçamentário: o gasto tributário no direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 83-89; ALMEIDA, Francisco, Carlos R. Uma Abordagem Estruturada da Renúncia de Receita Federal. Revista do Tribunal de Contas da União, Brasília, v. 31, n. 84, abr./jun., 2000, p. 19-62.

295 ALMEIDA, Francisco, Carlos R. Uma Abordagem Estruturada da Renúncia de Receita Federal. Revista

do Tribunal de Contas da União, Brasília, v. 31, n. 84, abr./jun., 2000, p.53.

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.ALMEIDA, Francisco, Carlos R. Uma Abordagem Estruturada da Renúncia de Receita Federal. Revista

afirmar que, embora existam, elas não têm o condão de afastar a importância e a utilidade do conceito e do orçamento de renúncias de receita tributária.