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Eficácia jurídica interna: indução e efeito de incentivo

CAPÍTULO V – INCENTIVOS FISCAIS: FINALIDADE, REGRA E EFICÁCIA JURÍDICA

5.3 Incentivo-renúncia: finalidade, regra e efeito

5.3.2 Incentivo fiscal como regra jurídica

5.3.2.4 Eficácia jurídica interna: indução e efeito de incentivo

É certo que a regra de incentivo fiscal não apenas reduz a carga fiscal, tem também outro sentido e efeito jurídico, o de induzir positivamente condutas. Parece-nos que a análise jurídica da eficácia interna dos incentivos fiscais deve ocupar-se de duas classes de ações abarcadas pela incidência normativa – conduta imposta e conduta incentivada –, bem como da diferença dos mecanismos de controle jurídico que sobre ela recaem: obrigação e indução.

A conduta ou ação a que nos referimos, neste nível de análise, não se situa ainda no plano social e concreto: “não é simplesmente um movimento físico ou psíquico-físico, não

394 Vide infra, Capítulo IV. 395

O raciocínio é inspirado na ideia de relação jurídica de incidência proposta em: LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. Isenções Tributária. São Paulo: Dialética, 1999, p. 94 e 95.

é um acontecimento meramente fático, mas um significado, um sentido”.396 Trata-se de uma criação jurídico-normativa, que se forma de segmentos da realidade recortados, reconstruídos pelo legislador e alojados na hipótese ou no consequente da regra jurídica.397 A conduta imposta não é exterior à regra impositiva, é parte dela, assim como a conduta incentivada não está fora do ordenamento jurídico, é parte dele, embora nem sempre faça parte da norma impositiva. Exatamente por essa razão, a discussão das condutas implicadas na concessão de incentivos fiscais está mais bem situada neste ponto da exposição do que no seguinte, que cuida da eficácia social.

Já vimos que, no caso da regra tributária, o principal efeito jurídico (interno) é fazer surgir, no plano deôntico, a obrigação do contribuinte de pagar o tributo e, em contrapartida, o direito do fisco de exigi-lo. A conduta imposta, por assim dizer, é entrega de certo numerário ao Estado, e a maneira de motivá-la, ameaça da aplicação de uma sanção, sob a forma de pena (multa) ou execução. Assim, o Poder Público determina que o contribuinte transfira certo montante de recursos ao Erário, se não o fizer: (1) fará algo contra si, no caso, aplicará uma multa e (2) fará essa transferência em seu lugar, por meio da execução fiscal, se persistir o descumprimento.

O mecanismo jurídico descrito é o que se observa nas obrigações jurídicas em geral e também nas hipóteses de intervenção no domínio econômico por direção398: a conduta

396 MORCHÓN, Gregorio Robles. El Derecho como Texto (Cuatro Estudios de Teoría Comunicacional

del Derecho). 2a ed. Navarra: Aranzadi, 2006, p. 81. Vale destacar que este autor distingue “ação” de “conduta”. O primeiro conceito seria mais amplo que o segundo, o qual seria “uma ação contemplada do ponto de vista do dever”. MORCHÓN, Gregorio Robles. El Derecho como Texto (Cuatro Estudios de

Teoría Comunicacional del Derecho). 2a ed. Navarra: Aranzadi, 2006, p. 44.

397 Cf. GUIBOURG, Ricardo A., El Fenómeno normativo. Acción, Norma y Sistema. La Revolución

Informática. Niveles del Análises Jurídico. Buenos Aires: Astrea, 1987, p. 33-58

398 As diferentes formas que a intervenção estatal assume podem ser representadas como estratégias

empregadas pelo Poder Público para relacionar-se com os agentes econômicos privados e, assim, guiar o processo produtivo na direção das metas e dos valores positivados. Há, na doutrina nacional, diferentes classificações para o tema. Na classificação de Eros Roberto Grau, a intervenção propriamente dita, que não se confunde com a prestação de serviços públicos, faz-se (a) diretamente, (a.1) por participação ou (a.2) por absorção, ou (b) diretamente, por (b.1) direção e (b.2) indução. Às formas diretas de intervenção Eros R. Grau convencionou chamar de intervenção no domínio econômico, em oposição às indiretas, que se processariam sobre o domínio econômico. O critério de distinção estaria na posição assumida pelo Estado em relação ao mercado e aos demais agentes econômicos. Nas formas diretas, o Poder Público atua como agente no mercado, postando-se, no mesmo nível que os demais sujeitos, seja em regime de monopólio (intervenção “por absorção”), seja em regime de competição (intervenção “por participação”). Nas formas indiretas, o Estado permanece um nível acima dos competidores no mercado e exercendo competência normativa, como normatizador da economia, de duas formas: por direção, quando determina comportamentos compulsórios, ou por indução, “quando o Estado manipula os instrumentos de intervenção em consonância e na conformidade das leis que regem o funcionamento dos mercados”. A direção se caracterizaria por dispositivos imperativos, cogentes, que fixam comportamentos a serem cumpridos pelos agentes econômicos. Na indução, diferentemente, “defrontamo-nos com preceitos que, embora prescritivos (deônticos), não são

visada pelo legislador é precisamente aquela cuja omissão deflagra o dever de aplicar a sanção por parte do órgão encarregado. O motivo ou estímulo jurídico para que se realize a conduta imposta é evitar a sanção. Vale dizer: “se realizo o fato gerador, então devo pagar o tributo”; “se não pago, então deve ser aplicada sanção (por parte do agente público encarregado)”. A sanção na linguagem normativa é ameaça e tem, em última análise, sempre um quê de substituição: é sempre um fazer contra quem descumpre o dever, no caso da pena, ou fazer em lugar dele, no caso da execução.399

No caso dos incentivos fiscais, a construção jurídica é diversa. O objetivo da norma de incentivo não é arrecadar, e conduta projetada não é rigorosamente apenas a que evita a sanção (o pagamento). Não se trata de dizer: “faça isto, se não será punido”, como na regra que impõe o pagamento do tributo, tampouco “faça isto, e será recompensado”. A estratégia jurídica adotada não opera assim, de forma linear, atua obliquamente: dissocia, no nível jurídico, a conduta visada da conduta imposta e, não raro, também envolve outro sujeito, além do fisco e do contribuinte, e uma prestação diversa do pagamento e do não pagamento do tributo.

As regras de incentivo operam à maneira de mecanismos jurídicos de indução400: facilitam a ação que se propõem a encorajar pela criação de vantagem e pela remoção de obstáculos à sua realização, particularmente o obstáculo que os deveres fiscais representam à atividade privada. Dessa forma, “O agente econômico não se vê sem alternativas; ao contrário, recebe ele estímulos e desestímulos que, atuando no campo de formação de sua vontade, levam-no a se decidir pelo caminho proposto pelo legislador.”401 O contribuinte

dotados da mesma carga de cogência que afeta as normas de intervenção por direção”, explica o autor. O critério distintivo estaria na existência ou não de sanção, ausente nas hipóteses de indução, visto que o comando seria substituído pelo convite. (GRAU, Eros Roberto, A Ordem Econômica na Constituição de

1988, 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.134). Mutatis mutandis, as categorias de direção e indução

propostas por Eros Grau encontram paralelo nos conceitos de “poder de polícia” e “incentivo”, propostos por Bandeira de Mello, e “disciplina” e “fomento”, por Luís Roberto Barroso. Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 631 e ss.; BARROSO, Luís Roberto. Modalidades de Intervenção do Estado na Ordem Econômica – Regime Jurídico das Sociedade de Economia Mista – Inocorrência de Abuso de Poder Econômico. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 94, n.343, p.293-312, jul./set, 1998.

399 SANTOS, Maria Celeste C. Leite dos. Poder Jurídico e Violência Simbólica. São Paulo: Cultural

Paulista, 1985, p. 152.

400

A respeito do conceito jurídico “indução”, vale destacar na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3512/ES, relator Ministro Eros Grau, julgamento em 12.2.2006, em que se discutia a validade da garantia de meia entrada para doadores de sangue em locais públicos de cultura, esporte e lazer.

401

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 43-44.

não fica obrigado a realizar a conduta induzida, pode omitir-se sem incorrer na prática de ato ilícito, nem sofre o risco de ser punido.402 Ainda assim, essa conduta não é menos jurídica do que a imposta: foi também colhida pela incidência normativa e alojada no interior da norma e do ordenamento jurídico.

Não se elimina, por certo, a existência do dever jurídico e da sanção. A lei que veicula benefício fiscal não revoga a regra tributária, antes a complementa. Mesmo nos casos em que a exoneração tributária é total, a regra impositiva permanece válida e deverá ser aplicada a todos os outros sujeitos não alcançados pelo benefício. A ameaça da sanção deixa apenas de ser o motivo jurídico da conduta (induzida), uma vez que a coação não se volta contra ela, senão contra a omissão do pagamento. A sanção não perde, todavia, seu posto de elemento estrutural do fenômeno normativo, como parte fundamental da sequência de imputações sucessivas que caracteriza o Direito como sistema. 403

Nas regras de incentivo fiscal, a eficácia de incentivo é predominante, a arrecadação, secundária. Persistem, em abstrato, a obrigação tributária e a conduta imposta (prestação), que é o pagamento do tributo, ou seja, a entrega de certa quantia ao Poder Público. Mas há também outra conduta prevista, diferente desta, que não é obrigatória, senão incentivada, induzida. Pode ser, por exemplo: instalar ou manter fábrica em certo local do território nacional ou estadual, como se dá frequentemente nos benefícios fiscais vinculados ao ICMS; conceder bolsas de estudos a alunos de baixa renda, como previsto no âmbito do Programa Universidade para Todos (PROUNI) – Lei n. 11.096, de 2005 –; ou ceder o uso de bens móveis ou equipamentos a entidades beneficentes de assistência social,

402 Sobre o conceito jurídico de indução, ver também: ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica:

um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 105.

403 Em rigor, o que está em questão ao se qualificar uma norma como “indutora” ou como “diretiva”, é a

eficácia predominante do ponto de vista pragmático. Não há “normas indutoras” estruturadas de maneira diferente das demais normas jurídicas, mas finalidade ou eficácia indutora. Todas as normas são diretivas, em alguma medida, todas elas prescrevem condutas. Do contrário, não seriam normas jurídicas. Haveria, destarte, funções diretivas e indutoras, não normas diretivas ou indutoras. Cite-se, como exemplo, a utilização de agravamentos tributários por meio de elevação de alíquota para atividades que impliquem emissão de poluentes, por exemplo. Não há dúvidas de que haja coação prevista para os casos de descumprimento da regra, isto é, de não pagamento. Entretanto, ainda que multa e execução sejam sanções aplicáveis, esta não deixaria de ser uma hipótese clara de norma indutora. Por que motivo? Certamente, porque a conduta que se deseja provocar não é aquela cuja omissão é sancionada, ou seja, não é o pagamento do tributo. A finalidade é a não realização da conduta tipificada como fato gerador. Em outras palavras, desestimula-se o comportamento indesejado com a criação ou o agravamento de um dever, e o descumprimento deste dever por meio de uma sanção. Logo, ainda que de forma indireta, não há como negar que a sanção desempenhe um papel fundamental nesse esquema. Acaso seja eliminada, retirando-se a multa tributária e a possibilidade de execução forçada, toda a estrutura perderia o sentido. E não haveria, por consequência, o efeito indutor.

na forma da lei, que realizem pesquisas clínicas, voltadas para a prevenção e o combate ao câncer, como prevê a Lei n. 12.715, de 2012 – Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (PRONON).

Não é incomum que a conduta incentivada esteja compreendida no próprio âmbito daquela que desencadeia o surgimento da obrigação tributária. Excepciona-se do gênero das atividades sujeitas à exação alguma espécie que fará jus à vantagem tributária.404 Nesse caso, para sermos exatos, não é que a conduta incentivada seja exatamente coincidente com aquela descrita na hipótese de incidência da norma impositiva. É, grosso modo, mais restrita e estava (e.g. remissão), ou estaria (e.g. isenção), compreendida a priori naquele âmbito, não fosse a existência da regra de incentivo a excepcioná-la.

É o que se observa nos benefícios fiscais que se estruturam por meio de diminuição ou eliminação da carga fiscal incidente sobre o consumo ou a produção de bem ou mercadoria, sem pressupor qualquer outra conduta paralela, mas apenas especificando ou restringindo o fato tributado. Nesse caso, a conduta incentivada é exatamente a produção ou a circulação do bem ou mercadoria objeto da exoneração, seja pelo propósito de estimular certa atividade ou certo segmento econômico (e.g. indústria sucroalcooleira405), seja para ampliar o consumo ou a fabricação de algum bem meritório (e.g. medicamentos e gêneros alimentícios de primeira necessidade). Dizendo de outro modo, reduz-se o IPI sobre a fabricação de geladeiras para mais geladeiras sejam fabricadas.