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CAPÍTULO III – INCENTIVOS, FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: OS FINS E OS

3.7 Extrafiscalidade e neutralidade(s)

3.7.2 Neutralidade e isonomia

Em parte, a neutralidade fiscal pode ser concebida como “contraponto à intervenção do Estado sobre o processo econômico” 205

e tem relação direta com a aplicação do princípio da isonomia em matéria tributária. Vale dizer:

Para a concepção econômica neoclássica, o sistema tributário não pode romper o equilíbrio do mercado, e os tributos devem obedecer aos princípios da “neutralidade” e da “equidade”. No primeiro caso, os impostos não devem afetar as decisões dos agentes econômicos na alocação dos recursos nas economias, o que afetaria a eficiência. E o princípio das equidade diz que os impostos devem ser distribuídos de forma equitativa entre os membros da sociedade, de forma que não se altera a estrutura da distribuição da renda, pois esta é, no modelo neoclássico, considerada ótima antes de sua incidência; portanto, o

204 O Superior Tribunal de Justiça firmou posição sobre o tema no julgamento do Recurso Especial n.

1.134.665 – SP, com relatoria do Ministro Luiz Fux, submetido ao regime dos recursos repetitivos. Discutia- se, no caso, entre outros aspectos, a possibilidade de utilizaram-se dados da CPMF para apurar crédito tributário relativo a tributos diversos para anos anteriores ao de 2001, quando foi alterada a legislação. A posição acolhida pelo Tribunal foi no sentido de que o sigilo bancário não é direito absoluto, de modo que seria lícita a utilização de informações provenientes da arrecadação da CPMF para a instauração de procedimento administrativo-fiscal objetivando a cobrança de créditos relativos a outros tributos, inclusive quanto a fatos geradores anteriores a 2001. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 1.134.665 – SP, Relator: Ministro Luiz Fux, DJe 18.12.2009.

205 ELALI, André. Incentivos Fiscais, Neutralidade na Tributação e Desenvolvimento Econômico: a questão

das desigualdades regionais e sociais. In: MARTINS, Ives; ELALI, André. Incentivos Fiscais: questões pontuais nas esferas federal, estadual e municipal. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 37-66.

sistema tributário não pode romper o “equilíbrio”.206

Do toda sorte, cabe lembrar que nem sempre o neutro e o isonômico são coincidentes. Não raro, a não interferência pode representar um “intervencionismo às avessas”207

, na medida em que contribui para manter ou agravar as desigualdades preexistentes. Nesses casos, “a fazenda ‘neutral’ protege os favorecidos, deixando ao relento os desfavorecidos”, como salienta Raimundo Bezerra Falcão.208

Por certo, qualquer maneira de utilização do instrumento tributário já representa, por si só, interferência na ordem econômica. Nas hipóteses de extrafiscalidade, altera-setão somente o fim da intervenção e o efeito que deve prevalecer. Como destaca Cristiano Carvalho, “o direito tributário tem por fim preponderante interferir na ordem econômica de forma a gerar receita para o Estado e, por fim secundário, estimular ou desestimular determinadas condutas através da manipulação extrafiscal dos tributos”.209

De uma forma ou de outra, o tributo nunca é plenamente inócuo quanto aos efeitos que produz no plano dos fatos econômicos. A propósito, Murphy e Nagel explicam:

Todo imposto que não é semelhante ao imposto fixo individual, ou seja, que é simplesmente cobrado de todos independentemente do que façam, acaba por ter efeitos específicos de motivação sobre as decisões das pessoas – um ou outro “efeito de distorção”. Um sistema tributário moderno não pode ter a pretensão de ser neutro em seus efeitos de incentivo sobre as decisões economicamente significativas quer as pessoas tomam a respeito do trabalho, do lazer, do consumo, da propriedade e da forma de vida. As exigências de neutralidade são todas especiais e ficam restritas a questões fundamentais como o sexo, a raça e a religião. Um imposto que fosse cobrado do [sic] sorvete de chocolate mas não do de baunilha não teria nada de injusto, embora fosse arbitrário.210

Ao que parece, a questão não está tanto em verificar se a norma tributária produz ou não efeitos econômicos, mas em determinar, em certos casos, se está de acordo com a

206 SALVADOR, Evilásio, A Distribuição da Carga Tributária: quem paga a conta? In: SICSÚ, João

(Org.), Arrecadação (de onde vem?) e gastos públicos (para onde vão?), São Paulo: Boitempo, 2007, p. 79- 92.

207

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 44.

208 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 44. 209 CARVALHO, Cristiano. Tributação e Economia – Uma introdução à análise do Direito Tributário. In:

BARRETO et al. Segurança Jurídica na Tributação e Estado de Direito. São Paulo: Noeses, 2005, p. 56.

210

MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade privada: os impostos e a justiça. trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 235.

Constituição Federal e, em especial, com o princípio da isonomia.211 Há situações e efeitos externos que são expressamente coibidos pela ordem constitucional tributária, como é exemplo a cumulatividade, combatida pela Constituição nos artigos 153, II, § 3º, 155, § 2º, I, 195, § 12, e 154, I.212 Outros são valorizados, como ocorre, por exemplo, na norma do art. 151, I, da Constituição Federal, que permite a “concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País”.

De todo modo, é possível afirmar que “a neutralidade dirige-se a fins específicos e predeterminados”213

. Não é neutralidade absoluta ou cega, é neutralidade desejada e delimitada. Rigorosamente, o exame jurídico da noção não conduz à busca por um sistema fiscal inócuo do ponto de vista econômico, político ou social, isto é, livre de qualquer outro efeito além da arrecadação. Antes recomenda excluir as distorções causadas pela incidência tributária e promover os efeitos positivos que servem à concretização de objetivos constitucionalmente prestigiados e/ou à efetivação do princípio da isonomia, por meio do sistema tributário. Sem deixar de lado, entretanto, que aquilo que se chama “distorção” é simplesmente um efeito indesejado214

ou valorado negativamente pelo direito vigente.