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Cerzindo o corte epistemológico: pontos de contato

CAPÍTULO II – A DISCIPLINA JURÍDICA DO TRIBUTO

2.7 Cerzindo o corte epistemológico: pontos de contato

A ruptura entre Direito Tributário e Financeiro trouxe consequências práticas e teóricas relevantes no tocante à disciplina dos tributos. O momento atual, no entanto, é de revisão dos limites e rigorismos. Há casos em que o exame de questões tributárias não parecer poder prescindir completamente de outros elementos da atividade financeira do Estado e não seria, desse modo, conveniente manter-se sempre a separação radical entre ambos.

Paulo Ayres Barreto critica duramente a tese que confere autonomia “científica” ao Direito Tributário. Tal postura justificava-se ao tempo em que era preciso “dar relevo à novel disciplina jurídica que então surgia, afastando-a do Direito Financeiro”. Hoje se mostra exagerado o esforço de depuração pelo qual passou o Direito Tributário, seja no que

Tomo II, (art. 8o – 31), 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 368.

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GAMA, Tácio Lacerda. Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 225.

92 FAVACHO, Fernando Gomes. Definição do Conceito de Tributo. São Paulo: Quartir Latin, 2011, p. 168. 93 AMATUCCI, Andrea; D’AMATI, Nicola. Historia del Derecho de la Hacienda Pública y del Derecho

Tributario en Italia: el aporte del pensamiente jurídico financier de la Italia Meridional. Bogotá: Editorial

concerne à separação em relação aos demais elementos da disciplina jurídica da atividade financeira do Estado, seja no que concerne aos dados oriundos da Economia e da Ciência das Finanças. Se, a princípio, conceitos jurídicos e econômicos foram combinados sem o necessário recorte, atualmente, a proibição da inserção das realidades econômica e financeira no campo fiscal levou ao extremo oposto. “Vale dizer, desconsideram-se dados econômicos e financeiros efetivamente jurisdicizados, sob a alegação infundada de tratar- se de realidade econômica não pertencente ao mundo do direito”.94 A crítica de Ayres Barreto projeta-se nos recortes internos e externos da disciplina jurídica do tributo. O autor propõe uma correção de rota, a retificação dos exageros, sem, contudo, prejudicar os limites já estabelecidos para as disciplinas.

Com efeito, alguns temas parecem não estar confortavelmente ajustados aos limites traçados entre as disciplinas. São tópicos que deixam antever o teor de arbitrariedade e a insuficiência prática do corte epistemológico da disciplina jurídica do tributo, porquanto reclamam elementos dos dois âmbitos de análise para adquirir seu sentido usual.

Um dos casos mais emblemáticos é o das contribuições, que põem em xeque o conceito tradicional de tributo e a divisão de espécies tributárias que considera apenas o fato gerador, a hipótese de incidência ou mesmo o binômio “hipótese de incidência e base de cálculo”. Ao contrário do que dispõe o art. 4º, II, do Código Tributário Nacional, a destinação é precisamente o critério escolhido para distinguir as contribuições das demais espécies tributárias. Decerto não se pode afirmar que a alusão à destinação dos recursos arrecadados seja uma exclusividade da análise das contribuições. Em alguma medida, o problema da destinação das receitas tributárias nunca deixou de ser ao menos tangenciado na análise do Direito Tributário. A relação receita-despesa faz parte do estudo das taxas e das contribuições de melhoria, ainda que não seja este o critério para definição dessas espécies tributárias. O caso das contribuições, todavia, é especialmente significativo por duas razões: (1) por tomar a destinação legal das receitas como critério distintivo das demais espécies tributárias, elemento até recentemente proscrito na definição do tributo, e (2) pela importância assumida por esse tributo na década de 1990.95

94 BARRETO, Paulo Ayres. Elisão Tributária: limites normativos. São Paulo (Tese de Livre-docência), USP,

2008, p.45.

95 As controvérsias jurídicas acerca do conceito, da natureza e dos parâmetros de controle judicial das

contribuições (sociais, de intervenção e de interesse de categorias profissionais) são um dos pontos centrais da tributação no correr dos anos 1990. A propósito do tema, conferir as seguintes decisões do Supremo

De modo mais amplo, Eurico Marco Diniz de Santi questiona a própria possibilidade da existência de autonomia entre Direito Tributário e Direito Financeiro. A discussão sobre a carga tributária crescente no correr nas últimas décadas pode ser feita sem referência ao tema do gasto público? É correto desarticularem-se ambos os problemas? A resposta do autor é negativa. Para Eurico de Santi, é preciso propor novo enfoque para o exame dos tributos e dos gastos públicos, de modo a incluí-los conjuntamente “no contínuo processo de causalidade jurídica, favorecendo o desenvolvimento de formas de controle das despesas do Estado”.96

A proposta é mais ampla e radical do que a de Paulo Ayres Barreto. Já não se trata de retificar excessos ou de discutir casos pontuais, mas de rever a possibilidade de autonomia em si, que é peremptoriamente negada pelo autor. “A chamada ‘autonomia didática’ é auto-limitação que não encontra justificativa no nível do objeto (direito positivo)”, afirma Eurico de Santi. Reaproximar Direito Financeiro e Tributário, por outro lado, não implica acolher fatos financeiros sem relevância jurídica, nem misturar searas distintas e inconciliáveis97: “O direito é uno e contínuo no processo de causalidade jurídica. Cingi-lo implica mutilar sua inerente complexidade, causando prejuízo na análise de novos fenômenos e novas perspectivas do direito tributário”.98

Não é apenas do ponto de vista tributário que a separação repercute. No que toca ao Direito Financeiro, também não se fez sem consequências práticas. A relação entre este e o Direito Tributário tem sido marcada por uma significativa “assimetria conceitual” entre os dois saberes jurídicos. Tomamos aqui a expressão empregada pelo jurista argentino Horacio Corti99 para referir-se à forte tendência a excluir do debate jurídico aspectos da atividade financeira que não digam respeito à tributação e remetê-los ao plano das questões

Tribunal Federal: RE 100.790, de 1984, e ADC 8, de 1999, ambas sobre a natureza tributária das contribuições; ADC 3, de 1999, sobre a desnecessidade de lei complementar; RE 138284, de 1992, classifica as diferentes espécies de contribuições; RE 148331, 1992, distingue contribuições e impostos, entre outras. Sobre o tema, ver: BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: regime jurídico, destinação e controle. São Paulo: Noeses, 2006, p.22, 23 et passim.

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SANTI, Eurico de Marco Diniz de; CANADO, Vanessa Rahal. Direito Tributário e Direito Financeiro: reconstruindo o conceito de tributo e resgatando o controle da destinação. In: VASCONCELLOS, Roberto França. (Coord.). Direito Tributário: política fiscal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 258.

97 IVO, Gabriel. Direito Tributário e Orçamento. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (Org.). Direito Tributário:

homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 871-889.

98 SANTI, Eurico de Marco Diniz de; CANADO, Vanessa Rahal. Direito Tributário e Direito Financeiro:

reconstruindo o conceito de tributo e resgatando o controle da destinação. In: VASCONCELLOS, Roberto França. (Coord.). Direito Tributário: política fiscal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 273-4.

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Ver deste autor: CORTI, Horacio G. Derecho Constitucional Presupouestario. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2007; CORTI, Horacio G. Derecho Financeiro. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997.

políticas ou dos estudos econômicos.100 Sutilmente, aquilo que deveria ficar de fora apenas da análise tributária (recorte interno) é também excluído do controle judicial (recorte externo). Como exemplo, o professor argentino cita a obra clássica de Dino Jarach, intitulada “Finanzas Públicas y Derecho Tributario”. O título do livro já estaria a indicar que o tributo é objeto de análise jurídica, enquanto o gasto público estaria relegado à abordagem de outra natureza. Os dois objetos são vistos de pontos de vista diversos, e só o dos tributos é estritamente jurídico.101

O alerta do jurista portenho parece aplicar-se igualmente à realidade brasileira. Aqui também foram silenciosamente excluídas do conhecimento jurídico sistemático questões relativas à atividade financeira do Estado e, especialmente, ao orçamento público.102 O problema, certamente, vai além dos títulos e mesmo dos conteúdos de obras doutrinárias. A exclusão da abordagem jurídica traz consequências institucionais relevantes, que vão desde a estruturação curricular dos cursos de Direito ao tratamento jurídico dado à matéria pelos tribunais. A título de exemplo, basta lembrar a forte tendência que havia na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, até 2008103, de afastar o cabimento de ações diretas de inconstitucionalidade em matéria orçamentária. Na prática, a negativa do controle abstrato de constitucionalidade tinha por efeito a exclusão das normas orçamentárias – lei orçamentária anual, lei de diretrizes orçamentárias e plano plurianual –

100 Afirma Horacio Corti: “Admite-se, de forma implícita, a existência de uma distinção conceitual básica (a

diferença entre o tributo e o restante dos institutos financeiros), que, por sua vez, conduz a certa organização do saber: a separação do direito tributário do direito financeiro. Ou a cisão do direito financeiro em duas partes: o direito tributário e o direito financeiro não tributário. Ademais, tem-se também, quase naturalmente, uma decorrência teórica e prática um tanto curiosa: que todo (ou a maior parte) do interesse cognoscitivo recaiu, nas últimas décadas, sobre o direito tributário.” CORTI, Horacio G. Derecho Constitucional

Presupouestario. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2007, p. XXVII.

101 CORTI, Horacio G. Derecho Constitucional Presupuestario. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina,

2007, p. XXIV e ss.

102

É interessante observar a existência de exemplo igualmente ilustrativo na doutrina nacional, a obra de Eurico Marcos Diniz de Santi “Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas”. O livro propõe metodologia inovadora para o ensino do Direito Tributário, mas não escapa da mesma assimetria conceitual de que nos fala Horácio Corti, como, aliás, observa-se no título da obra. Ver: SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Curso de

Direito Tributário e Finanças Públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo:

Editora Saraiva, 2007.

103 Em 2008, no julgamento de medida cautelar requerida no âmbito da ADI 4.048, proposta contra medida

provisória que determinava a abertura de créditos extraordinários fora das hipóteses constitucionais, o Supremo Tribunal Federal rediscutiu a orientação tradicional. Por maioria, o Tribunal concedeu a ação e deferiu a cautelar. No mesmo ano, o STF julgou a ADI 3.949, também sobre matéria orçamentária. Neste caso, todavia, o Tribunal conheceu a ação, mas indeferiu a cautelar. A partir de tais julgamentos, é possível afirmar que a Corte Constitucional deu claros sinais de rever sua orientação tradicional. CORREIA NETO, Celso de Barros, O Orçamento Público e o Supremo Tribunal Federal. In: SCAFF, Fernando Facury; CONTI, José Maurício. (Org.). Orçamentos Públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 111-126.

de qualquer forma de controle judicial.

Na verdade, não se trata de decisão formal ou censura explícita, mas “uma maneira histórica de conformar-se o conhecimento do direito”.104 A assimetria conduz à irrelevância jurídica do fenômeno financeiro, por meio de tripla exclusão: do controle judicial, do mundo jurídico e do âmbito do conhecimento.105 Três dimensões entrelaçadas, segundo a visão de Corti, da qual compartilhamos.