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Primeira distinção: desonerações necessárias

CAPÍTULO IV – INCENTIVOS E RENÚNCIAS FISCAIS: CONTEXTO, LIMITES E

4.2 Incentivo fiscal como instrumento de intervenção pública

4.2.3 Primeira distinção: desonerações necessárias

Essa primeira aproximação já nos permite ressaltar característica que doutrina e jurisprudência apontam como essencial à noção de incentivo fiscal – a discricionariedade da sua concessão. É o elemento que permite afastar do conceito outras formas de exoneração fiscal não discricionárias, as ditas desonerações “estruturais” ou “necessárias”, isto é, atreladas à própria configuração da norma tributária, aos limites impostos pelo mínimo existencial ou à capacidade contributiva.

Se, como já afirmamos, as leis que concedem incentivos fiscais operam como instrumentos de intervenção na conduta do contribuinte e pressupõem a existência de competência tributária, então parece correto supor que os limites impostos pelo constituinte à imposição de tributos são também limites que se aplicam à competência para concessão de incentivos fiscais. Por conseguinte, os casos de incompetência para tributar são também casos de incompetência para conceder incentivos por meio de leis tributárias. Por essa razão, as chamadas “exonerações” ou “desonerações” ,“estruturais” ou “necessárias”, não

se confundem com incentivos fiscais. Nelas, a redução ou eliminação da imposição fiscal aplicável a certas situações é decorrência, direta ou indireta, da própria configuração da competência tributária prevista no texto constitucional. Falta-lhes o elemento de discricionariedade legislativa, já que são, em alguma medida, hipóteses de “incompetência tributária”.

Misabel Derzi explica que tais desonerações ditas “necessárias” ou (1) “formam parte da estrutura do próprio imposto”, como no caso do princípio da não cumulatividade, aplicável ao IPI e ao ICMS, ou (2) são inerentes a valores prestigiados na Constituição”, como no caso dos princípios da equidade e da progressividade, ou (3) “corporificam linhas gerais de desenvolvimento econômico nacional”, de que seriam exemplos as hipóteses de imunidade à exportação.260 Em qualquer dessas situações, resta afastada a discricionariedade do legislador, que, grosso modo, ou não pode instituir tributo sobre certo fato ou sujeito, protegido, por imunidade, ou não pode cobrá-lo além de certo ponto, fixado por alguma das chamadas limitações ao poder de tributar, seja esta uma regra, seja um princípio jurídico.

O exemplo das imunidades é especialmente ilustrativo. Em princípio, doutrina e jurisprudência não aceitam a imunidade como forma de incentivo fiscal. Ainda que, em termos econômicos ou de eficácia externa, haja semelhanças consideráveis, as diferenças jurídicas expressivas. As imunidades, visto que constam da Constituição, no plano das competências, não atuam derrogando normas de tributação. Impedem que sejam editadas, ao estabelecer a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para tributar certos fatos ou sujeitos.261 Já os incentivos, por sua vez, operam no plano legislativo. Criam certa “exceção” ao tributo com vistas a favorecer certos segmentos econômicos ou certas atividades. A diferença é explicada de maneira especialmente elucidativa por Pontes de Miranda, em comentário à Carta de 1967:

Na isenção, o débito de imposto não surge, somente porque a lei competente abriu exceção às próprias regras jurídicas de imposição; na

imunidade, a lei de imposição seria contrária à Constituição se não

abrisse tal exceção: abrindo-a, apenas explicita o que teria de entender,

260 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Princípios Constitucionais que Regem a Renúncia de Receita

Tributária. Revista Internacional de Direito tributário, Belo Horizonte, v. 1., n.1, jan./jun., 2004, . 333- 362.

com ela, ou sem ela.262 (Grifo original).

É verdade que a passagem refere-se especificamente às isenções e não ao gênero dos benefícios fiscais, mesmo assim, parece-nos que, mutatis mutandis, a referência às exceções criadas no plano legislativo vem no mesmo sentido do que acima dissemos. Na imunidade, não há norma genérica de tributação a ser excepcionada, existe antes mesmo de qualquer norma tributária e afasta a possibilidade de sua imposição. A imunidade é, em primeiro lugar, caso de não sujeição à competência impositiva do Estado. Por essa razão, é que as situações beneficiadas por desonerações decorrentes de imunidade estariam entre aquelas ditas “necessárias” ou “estruturais”, excluídas, portanto, do gênero dos incentivos fiscais, que pressupõem a possibilidade de tributação para se configurar.263

Decerto nem todas as situações compreendidas na noção de desoneração necessária são facilmente identificáveis como as imunidades, que se encontram expressa e taxativamente previstas no texto constitucional. As despesas realizadas com educação e saúde no cálculo do imposto de renda pessoa física, por exemplo, devem ser integral e ilimitadamente dedutíveis mesmo sem faltar previsão legal expressa? Sua exclusão da base de cálculo desse imposto é medida que se impõe em decorrência da própria estrutura constitucional desse tributo?264

Aqui entram em questão também os limites imprecisos fixados pelo princípio da capacidade contributiva, especialmente no que se refere à esfera do mínimo existencial. Nesse caso, é comum que a exoneração tributária seja concretizada por meio da legislação infraconstitucional, quer na forma de isenção, quer na forma de redução da base de cálculo, mas não como uma opção do legislador, como algo que se lhe impõe. A disposição legal,

262 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda

n. I, de 1969. Tomo II (Art. 8o – 31), 2a ed. São Paulo: RT, 1973, p. 407.

263

Em rigor, levando-se em conta que a norma de imunidade é logicamente anterior à norma tributária, seria inclusive possível questionar a utilização das expressões “exoneração” e “desoneração” para os casos de imunidade. Afinal, se, do ponto de vista interno ao ordenamento jurídico, quando há imunidade, não há tributo possível, então nesses mesmos casos inexiste ônus tributário a ser afastado. Em outras palavras, a situação não foi “des-onerada”, porque rigorosamente nunca esteve “onerada”. Em sentido contrário e a propósito da possibilidade de incluírem-se as imunidades entre as exonerações, vale conferir: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária. 3a ed. São Paulo: Dialética, 2003, p. 201 e 205.

264

No que se refere ao imposto de renda pessoa física, a Receita Federal do Brasil afasta as deduções de despesas médicas e com educação (Lei n. 9.250/95, art. 8o) da categoria das exonerações necessárias e as inclui no rol do Demonstrativo de Gastos Tributários. BRASIL, Ministério da Fazenda, Receita Federal do Brasil, Demonstrativo de Gastos Governamentais Indiretos de natureza Tributária – (Gastos

Tributários) 2012. Brasília, agosto, 2011. Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/estudotr

no caso, faz as vezes de concretizador legislativo da diretriz imposta na Constituição Federal. O tributo incide apenas onde exista capacidade contributiva, que “só pode se reputar existente quando se aferir alguma riqueza acima do ‘mínimo vital’”, explica Regina Helena Costa.265

Somente no interior da matéria tributável é que se podem estabelecer exonerações e, por conseguinte, incentivos fiscais. Esse é um aspecto particularmente importante no contraste entre as noções de incentivo fiscal e exonerações necessárias. “Ao atribuir competência tributária, a Constituição circunscreve o âmbito de validade das normas tributárias, de modo que não podem alcançar as áreas imunes”.266 E, se estas últimas demarcam as margens do que seja tributável, traçam também os limites da definição positiva de incentivo fiscal, que poderá variar, nos diferentes ordenamentos jurídicos, de acordo com os limites da competência tributária. Serão, por conseguinte, tanto mais amplos ou mais estreitos quanto forem os limites desta.

Referindo-se à noção de despesa fiscal, Guilherme W. D’Oliveira Martins explica que o conceito “é moldado à imagem e semelhança do sistema fiscal em que se insere”, na medida em que “a previsão dos aspectos estruturais (objetivos e subjetivos) da estrutura fiscal necessários ao estabelecimento da tributação-regra” trançaria os contornos possíveis.267 A assertiva é igualmente válida em relação aos benefícios fiscais, por conta de sua conexão essencial com a natureza das despesas fiscais, como veremos a seguir, neste capítulo.268

Não há elemento estrutural comum que permita afirmar que certa exoneração é discricionária, concedida a título de fomento, ou necessária, aplicada em decorrência da insuficiência de capacidade contributiva. O mesmo instrumento tributário – por exemplo, a isenção – que serve ao legislador como estratégia normativa de encorajamento, noutro contexto também opera como estrutura de efetivação do princípio constitucional. A diferença está simplesmente na justificação: “isenções extrafiscais ou incentivos fiscais

265 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva, 3a ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.

68.

266 BARRETO, Aires F.; BARRETO, Paulo Ayres. Imunidades Tributárias: limitações constitucionais ao

poder de tributar. 2a ed. São Paulo: Dialética, 2001, p. 54.

267 MARTINS, Guilherme Waldermar D’Oliveira. A Despesa Fiscal e o Orçamento do Estado no

Ordenamento Jurídico Português. Coimbra: Almedina, 2004, p. 47.

fogem da uniformidade tributária por razões diferentes da capacidade contributiva”, sintetiza Aurélio Pitanga Seixas Filho.269 Sempre que a desoneração fundamentar-se na ausência de capacidade contributiva ou na observância de limite imposto pelo mínimo existencial não pode ser incluída na definição de incentivo fiscal, tal como ordinariamente é acolhida pela legislação brasileira.

Mais uma vez, assevera-se a importância do elemento pragmático no campo fiscal. Em última análise, é a justificação ou finalidade – não a estrutura – que subjaz à regra tributária o elemento que permitirá demarcar e apartar as noções de incentivo fiscal e exoneração necessária.