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4 – Centros Históricos

4.2. Cidade existente e transformações

Até ao século XIX, o estudo e a preocupação em preservar a cidade então existente era manifestada principalmente com os monumentos. Mas, na transformação do espaço urbano consecutivo à revolução industrial, “por contraste, a cidade antiga se torna objecto de investigação” (CHOAY, 2000:158). A noção de urbanismo tem suas raízes na década de 60 do século XIX, quando Haussmann, prefeito de Paris, pretendeu transformar a cidade numa capital mundial símbolo do poder da industrialização e não hesitou em expulsar os operários para a periferia. Solidifica-se nos anos 20 do século XX, com Le Corbusier, defensor da fachada livre e da planta livre. Nas suas múltiplas vertentes, “transporta uma solução científica para o desencantamento resultante do crescimento urbano que a industrialização fomentou” (PEIXOTO, 2003:221). A exclusão social inicialmente criada e o insucesso do urbanismo moderno, mais apostado na planificação de novos espaços, levaram, depois de 1980, a uma nova filosofia de planeamento, já com preocupações ambientais, patrimoniais e

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de espaço público, dominadas pela ideia de reabilitação e de requalificação da “cidade histórica e tradicional”. A partir de então, passou a haver a preocupação de “refazer a cidade a partir da cidade e não a partir do nada.” (PEIXOTO, 2003:221)

Para efeitos urbanísticos, toda a cidade pré-industrial, incluindo a parte construída em períodos mais recentes, passou a ser entendida por muitos como “centro histórico”, por considerarem que só tem sentido falar do centro histórico em presença de um tecido urbano mais vasto e de recente formação, o que, por outro lado, poderá contribuir para “uma certa confusão entre centro histórico e centro antigo”. (ANTUNES, 1997:75). Quando se fala de centro histórico, geralmente referimo-nos a uma parte da cidade que documenta um estádio estético e civilizacional diferente do actual, sem interessar muito o seu valor monumental e artístico e, menos ainda, uma dimensão ambiental e paisagística digna de relevo. Daí, optarem outros pela expressão de centro antigo, por considerarem que melhor exprime a continuidade de valores arquitectónicos do passado e do presente, em contraste com o conceito de centro histórico que dará a ideia de um ciclo da história já terminado. Neste, esperaríamos encontrar algo raro, excepcional, belo, perfeito, emocionante, longe das urgências do quotidiano, enquanto, para ser antigo, lhe bastaria “preservar a sua memória e identidade” (ANTUNES, 1997:78).

Esta noção de cidade já existente, consolidada e em parte construída também

neste século, sem olhar ao muito ou pouco valor histórico ou monumental que possa ter, foi a razão da escolha de cada área do território das sedes de município aqui estudadas. São hoje o reflexo das várias concepções que prevaleceram principalmente no último quartel do século XX: ora de “conservação” e de “restauro”, na tentativa de manter a cidade como era antes; ora de “renovação”, com a consequente devastação de áreas antigas, demolição de edifícios baixos para darem lugar a edifícios luxuosos de habitação ou de escritórios, aparcamentos, vias e viadutos (PORTAS, 2005:155). A pequena dimensão das cidades e vilas algarvias evitou esta faceta de renovação urbana destinada a garantir maior fluidez no trânsito. Pelo contrário, muitas artérias foram reservadas à circulação pedonal. Com poucos monumentos a realçar de forma cenográfica, por aí também não foi necessário demolir muitos quarteirões de prédios

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modestos. Mesmo assim, nada resta das fábricas e das casas no exterior das muralhas, na zona da ribeira, em Lagos; nem das casas, fábricas e estaleiros da zona de S. José, em Portimão; ou das instalações fabris e armazéns do extremo poente da zona ribeirinha de Silves.

Não foi somente nas três últimas décadas do século XX que se modificou a sociedade portuguesa e, no Algarve, a grande dependência da pesca e da indústria conserveira: crescente nas segunda e terceira décadas e perdida nos anos sessenta, terá sido um dos principais factores de transformação das vilas e cidades do Litoral. Nesta altura, a procura turística deu os primeiros passos e teve o seu apogeu até aos anos noventa, o que, a par de um poder local que se fortaleceu até depois do virar do século, possibilitou o grande crescimento dos centros urbanos, em perímetro e volumetria, e o aumento do número de cidades, de cinco para onze. Importa então entender em que medida as cidades em que vivemos e seus centros históricos são “culturalmente sustentáveis ou simbólica e funcionalmente congruentes com o seu passado recente”: nas novas imagens, nos fluxos turísticos e dinâmicas do mercado urbano de lazeres e no significado social das intervenções urbanísticas (PEIXOTO, 2003:212).

À medida que avança a urbanização de novas zonas e se intervém nas mais antigas, sentimos estar a perder o espaço público, a qualidade de vida, as referências identitárias e a cidade à escala humana em que crescemos ou que nos acolhera. E, afinal, nem os teria assim tanto como hoje os recordamos. Por isso, o que vemos nos núcleos urbanos antigos pode ser mais um reflexo do nosso presente e do nosso futuro e menos do nosso passado (Ashworth e Tunbridge, 2000 cit. PEIXOTO, 2003:213). Temos também dificuldade em individualizar na cidade o seu centro histórico, até porque há cidades policêntricas e, nelas, os “vários centros antigos devem caber na noção jurídico-cultural de centro histórico e serem respectivamente tutelados” (ANTUNES, 1997:76).

De modo algum se pode confundir a situação actual da população residente nos centros históricos com a chamada haussmanização ocorrida no século XIX. Todavia, por razões diversas, a degradação dos imóveis cria condições para a expulsão das

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“camadas sociais mais débeis, favorecendo simultaneamente a especulação imobiliária” (F. Lucarelli cit. ANTUNES, 1997:80). A população tradicional, envelhecida, é cada vez mais diminuta, ficam muitas casas devolutas e dá-se mesmo o abandono de partes importantes dos quarteirões e bairros. Os elevados custos do restauro e conservação dos imóveis existentes, da sua transacção ou do seu arrendamento só são acessíveis a uma classe média-alta, que começa a ser o tipo de utente dos centros históricos (ANTUNES, 1997:80). Também as actividades tradicionais são transferidas para a periferia e tendem a desaparecer. Resta pouco mais, e nem sempre, que a venda de produtos típicos de artesanato apresentado como sendo local. Quer pela concorrência das grandes superfícies comerciais, quer pela diminuição da população residente, até os negócios alimentares, as mercearias e lugares de fruta, de primeira necessidade, deixam de ter lugar nos centros históricos.

Da mesma forma que, tempos atrás, alguns edifícios eram reconstruídos com diferente estrutura e finalidade no seu interior, também hoje, nas intervenções ocorridas nos centros históricos, começa a haver um certo fachadismo, no sentido em que, depois do restauro desses edifícios, a habitação e a actividade económica que davam vida ao bairro, são agora substituídas por comércio de luxo, actividades terciárias e moradias voltadas para o turismo. Quase sem residentes permanentes, o consequente abandono nocturno, e até diurno, mesmo nas ruas centrais, tem reflexo na segurança das pessoas e dos seus bens. Daí que muitos defendam dever, na reabilitação urbana, ser garantida a manutenção dos residentes nos centros históricos, através da melhoria das condições socio-habitacionais e da criação de uma maior articulação das actividades tradicionais com as necessidades contemporâneas e os desejos dos visitantes (MENEZES, 1999:1).

O crescimento das cidades e vilas fez-se para os arrabaldes de outrora, através da sobreposição de linhas delimitadoras do espaço edificado em diferentes épocas. O seu confronto com a topografia pode revelar o modo de expansão de cada aglomerado, a direcção para onde mais cresceu e a relação com o meio. Pode mostrar se as construções terão partido de um ponto alto e, qual lava de um vulcão, desceram livremente, sem olhar a meios ou consequências, até às cotas mais baixas, perto do

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mar ou de linhas de água; ou mostrar ainda se treparam pelas encostas, com igual liberdade. Ou, pelo contrário, se foi constante a repressão no seu avanço, nalguns casos por imposição administrativa e mais vezes por rigidez topográfica, adversidades sempre vencidas com muito esforço e algum engenho dos seus habitantes, de que o centro histórico de Aljezur se apresenta como exemplo.

Para a definição de um centro histórico importa saber se a sua delimitação está definida pelos poderes municipais e foi dada a conhecer, e se coincide com as muralhas ou outros elementos rígidos da localidade. Para uma leitura comparativa, interessa ainda se o centro histórico convencionado ocupa mais do que o núcleo tido por inicial e, quando interior a muralhas, se estas se mantêm e são visíveis. Depois, se é possível isolar – ainda que só para estudar, qual experiência de laboratório – um centro histórico daquilo que o envolve. Como uma ilha, rodeado por periferias também elas já degradadas e a necessitar de acções de recuperação, questionamos se fará sentido separar uma coisa da outra.

No presente trabalho não se estudam essas áreas exteriores ao que considerámos centros históricos. Não obstante, tornar-se-ia útil abordá-las porque, ao estabelecer separação, conviria referir o que separa. Na verdade, centros e periferias são tema que estará sempre em discussão, mas a nossa selecção não partiu de uma separação entre ambos, mas sim das áreas que a cartografia disponível assinala como correspondentes ao período a partir do qual se alterou substancialmente o modo de crescimento das sedes de concelho.