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5 – O Espaço Público 5.1 Dimensão morfológica

5.3. Os cheios e os vazios

São cada vez mais os aglomerados ou parte deles, cuja utilização do espaço público está devidamente regulamentada. Desde logo pelos diplomas legais aprovados para todo o território nacional, mas também pelas normas de planos de urbanização e de pormenor que lhes são directamente destinados, ainda que, no geral, idênticas às contidas nos planos de outros municípios. Mesmo sem impondo uma conduta única a todos os proprietários dos edifícios, são pelo menos estabelecidas certas balizas, que não permitem que a criatividade de cada um extravase os limites que o poder central ou a autarquia pretendem que sejam mantidos. Nos anos sessenta do século XX, foi convencionado que o “Algarve é branco” e muitos municípios proibiram que, na pintura das fachadas, fosse utilizada outra cor, quebrando uma tradição de uso

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generalizado do azul e do amarelo, principalmente em molduras e socos, que já estava enraizada. Nessa altura, Albufeira ostentou a divisa “vila branca em mar azul” (forumalbufeira www), como forma de atrair visitantes para um bucolismo que não mais teve.

A volumetria, os tons usados nas fachadas e o modo de relacionamento entre o espaço público e o privado, estão cada vez mais padronizados, o que quase transpõe para o urbanismo a mesma normalização que a tecnologia recomenda e a lei impõe para os novos equipamentos que passaram a fazer parte do nosso quotidiano. Seja como for, quer nasça e evolua ao sabor do uso que lhe é dado, quer siga normas a exigir comportamentos que, com o tempo, também se tornam hábitos, o espaço público não é, nem será totalmente igual e, pela nossa natureza e por essas diferenças, tem recebido e continuará a receber diferentes designações.

Não raro falamos em “espaço urbano”, se o casario se apresenta de forma ordenada e, principalmente, se de uma cidade se trata. Na nossa legislação, urbano surge enquanto diferente de rústico e refere-se mais a prédios do que a aglomerados habitacionais, embora a antiga classificação administrativa também distinguisse os concelhos entre urbanos e rurais e até os classificasse por categorias: primeiro, os rurais, em “perfeitos” e “imperfeitos”, pelo Código Administrativo de 1895 e 1896; depois, no de 1940, em urbanos de 1ª, 2ª ou 3ª ordem, sempre com critério no número de habitantes e nas suas possibilidades financeiras (SILVA, Henrique, 2012:77). Em termos práticos, no meio rural, o aglomerado é mais disperso, por vezes as construções nem formam ruas, mas uma sequência de largos logo a seguir à estrada. No entanto, “sem casas não haveria ruas” (BELO, 2001) e, sem ruas, parece difícil começar a tecer uma cidade. Com efeito, no meio urbano “os espaços públicos não podem construir-se senão em forma de ruas (espaços lineares) e de praças (espaços de ligação)” (KRIER, Léon,1999:143), a menos que se trate de cidade planeada e, aí, são as ruas interiores que ligam entre si as praças, grandes espaços de concentração, contemplação e convívio.

Vista em planta, com o espaço público realçado no seu todo e os quarteirões, privados ou não, apresentados como vazios, a malha que daí resulta poderá dar uma

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primeira ideia dos vários tipos de relações susceptíveis de se estabelecerem entre os moradores de um aglomerado urbano e da sua capacidade para receber visitantes. Mas essa ideia poderá corresponder pouco à realidade. Pareceria que, como visão de conjunto, seria mais real do que a observação directa, rua a rua, largo a largo, sempre com o horizonte limitado pela presença de construções vizinhas. No entanto, a relação cheios-vazios assim obtida não tem em conta a topografia do terreno, as diferentes cotas por que o aglomerado se distribuiu, se os quarteirões estão preenchidos por edifícios altos e em banda ou por casas térreas recuadas e com jardim fronteiro, se muitos desses quarteirões são templos, museus e centros de comércio e diversão. Em resumo, se o espaço urbano se limita ao traçado assim realçado, ou se, no dia-a-dia, se expande por edifícios públicos e outros privados, com acessibilidade a todos, pelo que, deste modo, o espaço de circulação e convívio fica significativamente ampliado.

O espaço urbano não se resume ao traçado das ruas e das praças, resulta também das relações que entre os seus moradores proporciona. Tal como o monumento e o grande edifício público são catalisadores do meio urbano, também a habitação – por vezes pequena e anónima, mas persistente na sua presença –, embora possa parecer elemento estranho ao espaço público, contribui, talvez mais ainda, para moldá-lo. Poderemos considerar uma posição mais artística (Guedes, Howard, Sitte) associada a pessoas, culturas e contextos; ou uma outra, mais tecnocrata (Haussmann, Le Corbusier), associada a funções, nomeadamente infra-estruturais. Mas, para o conceito de “espaço-rua”, sempre contribuem as “relações diversificadas e sistémicas, entre edifícios, seus usos, utentes, sinais, significados e comunicações no espaço e no tempo” (MACHADO, António, 1993:27).

O rossio, o passeio público e o jardim perderam a hegemonia para os novos espaços urbanos, construídos em áreas periféricas, onde se instalam as grandes superfícies comerciais, ou pela reestruturação de áreas consolidadas, e coloca-se hoje a questão do “espaço colectivo” na reconfiguração física e social da cidade (GONÇALVES, 2006:68). A rua, sem perder a sua função inicial, de acesso à habitação e à intimidade dos moradores, trá-los também para os espaços do “visível”, onde uma certa encenação e cenografia têm lugar. Os lugares mais abertos estariam outrora

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preparados para o teatro clássico, e hoje, com o “movimento do automóvel, estão mais identificados com o cinema”; nas ruas, equiparadas aos corredores dos alojamentos, o espaço transforma-se também, e surgem avenidas, passeios, galerias e passagens cobertas, “para distribuir e permitir acesso de uma nova forma às actividades comerciais e aos serviços públicos e para organizar os diferentes usos dos arruamentos” (ASCHER, 1998:173).