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4 – Centros Históricos

4.1. Do conceito e das medidas de salvaguarda

A designação “centro histórico”, hoje vulgarizada e inserida pelos municípios em diversa regulamentação relativa ao seu território, refere-se a uma realidade que existe desde o momento da fundação do aglomerado, mas de que só recentemente dela tomámos consciência. Tudo tem um começo, um embrião, uma centralidade inicial e é aí que começa a sua história. Esse primeiro momento torna-se imediatamente passado, um passado tão próximo que continuamos a chamar-lhe presente. E assim permanece enquanto cresce, enquanto ganha a forma inicialmente imaginada, ou que gradualmente acontece, com uma ou outra paragem, mas sem qualquer recuo. Até à primeira alteração, tudo acontece como um contínuo presente e talvez ninguém se preocupe em anotar cada etapa desse crescimento. Só quando ocorre a primeira vicissitude, quando se dá a primeira transformação, ao reparar na diferença, se sente que houve um passado. Como se passado não fossem todos os momentos já vividos.

A história de um lugar começa com a colocação da primeira pedra. Esse seria o centro, daí irradiaria tudo o resto, aí começaria a sua história. No entanto, já antes terão sido muitas as transformações e há quem queira hoje descobri-las e relatá-las, ir até onde for possível recuar no tempo. Mas, para a história do aglomerado, aquele seria o momento. De pedra a pedra se constrói a primeira casa, de casa a casa cresce o caminho, de casas, caminhos e quem as habite e os percorra, com o passar do tempo, se chega à cidade. A cidade cresce, vive, acompanha as mudanças e muda com elas. A pedra inicial por certo ainda existe, estará talvez ainda lá, mas o tempo passou e a

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história que foi contada de geração em geração, ou que nunca o foi, raramente desce a esse pormenor.

Nos aglomerados mais antigos, mesmo quando não é necessário reconstruir depois da conquista e dos estragos que quase sempre provoca, há um antes e um depois, um adaptar das construções e dos espaços a novas realidades. A transformação para melhorar e tornar mais adaptados aos objectivos do novo proprietário sempre foi considerada legítima e normal e só porque a propriedade se foi repartindo e cada um apenas podia mexer no que era seu, muitas estruturas iniciais ou, pelo menos, muito antigas, conseguiram manter-se. O que resta desse passado quase foi necessário perdê-lo totalmente, para ser dada a importância que actualmente se lhe reconhece. Entre nós, é só a partir dos anos sessenta do século XX que a questão dos centros históricos entra nas preocupações urbanísticas (LAMAS, 1993:421). Mesmo pela Europa fora, o conceito de “centro histórico” surgiu depois de 1962, quando a Lei Malraux, em França, codificou a preservação de áreas urbanas em termos legais, e generalizou-se quando, em 1964 as resoluções tomadas pelo II Congresso Internacional de Arquitectos e Técnicos dos Monumentos Históricos, organizado com o apoio da UNESCO, do Conselho da Europa, do ICCROM e do ICOM inspiraram a Carta de Veneza sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios”. Às conclusões do congresso foi anexado um documento intitulado Protecção e Reabilitação de Centros Históricos, no qual se “solicitava às entidades nacionais e internacionais com competências na matéria o desenvolvimento de esforços no sentido de enquadrar a salvaguarda do património urbano em legislação apropriada” (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:15)

Antes disso, as áreas antigas eram protegidas somente com vista à preservação dos monumentos históricos contidos no seu perímetro. Em 1951, o tema do VIII CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) foi o centro urbano, então definido como “coração da cidade” e reconhecido como elemento caracterizador de uma comunidade, algo voltado aos seus habitantes, que é repositório da memória da colectividade e local que possibilitava entender o aspecto comunitário da vida humana (MENEGUELLO, 2005:2). “Na Europa a ideia de que a cidade possuía um centro, por

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força da sugestiva ideia de comparar a estrutura urbana ao corpo humano, é assaz antiga” (ANTUNES, 1997:74), mas, com o crescimento e a dispersão político- administrativa e religiosa, deixou o centro da cidade de coincidir com a praça principal e passou a abranger uma área muito mais vasta em que se desenrola grande parte da vida local.

Nos anos sessenta, Kevin Lynch, Gordon Cullen, Christopher Alexander, Françoise Choay, A. Mitscherlich e Jane Jacobs começam a abordar a cidade contemporânea já como um “organismo global”, em que homem, instituições e ambiente se relacionam no tempo, criando um “sedimento memorial” (FLORES, 2003:1-2). A partir daí, os problemas urbanos passaram a ser estudados também por sociólogos, geógrafos e historiadores. A civilização industrial havia entrado em crise e nos países ocidentais dá- se até uma involução demográfica. As preocupações ecológicas e ambientais tomam uma maior proporção e começa a anunciar-se a nova era da “pós-modernidade” (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:17).

À declaração de 1975 como o Ano Europeu do Património Arquitectónico e à aprovação da Carta Europeia do Património Arquitectónico, cujo conteúdo reverteu na Declaração hoje conhecida como Carta de Amesterdão sobre a Conservação Integrada (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:19), seguiu-se, em 1976 e no âmbito Unesco, a Recomendação de Nairóbi sobre a preservação de “conjuntos”. Este conceito inclui também os centros históricos e a necessidade de “compatibilizar a preservação e as exigências contemporâneas, com apoio da administração local e municipal, das associações de moradores e de bairros, dos órgãos técnicos.” (MENEGUELLO, 2005:2)

Em 1981, com as primeiras campanhas de defesa do património, lançadas por organismos internacionais, foi iniciado o “renascimento” das cidades como um todo não só de ambiente físico mas também social e cultural (PORTAS, 2005:156). Só em 1987, porém, com a publicação da Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas, ratificada pela Assembleia Geral do ICOMOS, se respondeu finalmente àquele apelo (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:16). Por toda a Europa e até final do século XX, com o reinvestimento no centro das cidades consolidadas, ressurgiu a ideia de serem os seus centros históricos um local excelente para de novo residir e trabalhar

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e para actividades de cultura, de encontro e convívio nos tempos livres. (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:19)

O anterior conceito de “renovação urbana”, que consistia na alteração do traçado e da morfologia e na demolição dos edifícios que lhes pertenciam, substituindo-os por novas tipologias e diferente desenho do espaço urbano, de acordo com novas teses arquitectónicas, deu lugar a operações de “reabilitação urbana” e de “restauro urbano” nos tecidos considerados históricos. Foi também nessa altura que eclodiu o chamado “fachadismo”. Mantidas as paredes exteriores, o interior dos edifícios antigos era demolido e reconstruído com diferentes tipologia, volumetria, estrutura e técnicas construtivas, “num processo de mistificação patrimonial, enquanto paliativo para um público que deseja atenuar a dor da perda da cidade histórica e dos lugares urbanos aos quais pertenceu e dos quais está a ser expulso” (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:20). Esta sensação de perda é tanto maior quanto mais rápidas e acentuadas são as mudanças; somos então tentados a imaginar um passado harmonioso que, supostamente, se teria desenrolado nos centros históricos (PEIXOTO, 2003:212).

Em Portugal, a reabilitação de centros históricos seguiu as linhas de intervenção normativa e operativa, e a posterior “doutrina da conservação integrada” (FLORES, 2003:1). Começou em 1961 com o Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, publicado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, que tinha subjacente uma valorização do vernacular, do regional e do património “menor”, e a valorização dos conceitos de identidade, autenticidade e património (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:37). Em 1969, no Colóquio de Urbanismo, realizado no Funchal, Cabeça Padrão, técnico da DGSU, criticou a cidade moderna, “apelando ao retomar da escala humana no tecido urbano, ao retorno do homem-máquina ao homem-cultural, e à salvaguarda do património urbano das áreas mais qualificadas das cidades, não de uma forma museológica, mas através do seu ordenamento, uso e integração na cidade alargada.” (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:39). Uma equipa por si chefiada iniciou então um notável e pioneiro Estudo de prospecção e defesa da paisagem urbana do Algarve, que

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consistia na classificação e na regulamentação dos aglomerados urbanos de interesse no Algarve, num total de 47 povoações (PADRÃO, 1966:6-Regulamento):

BARLAVENTO: Abicada, Albufeira, Alcantarilha, Aljezur, Almádena, Alvor, Armação de Pêra, Bensafrim, Budens, Burgau, Carvoeiro, Espiche, Estômbar, Ferragudo, Lagoa, Lagos, Monchique, Odeceixe, Pêra, Porches, Portimão, Praia da Luz, Praia da Rocha, Raposeira, Salema, Sagres, São João, São Miguel, Silves e Vila do Bispo e ainda Mexilhoeira Grande, que não estava indicada no artigo 2.º do Regulamento, mas cujo estudo foi efectuado.

SOTAVENTO: Alte, Azinhal, Cabanas, Cacela Velha, Castro Marim, Estoi, Faro, Fuseta, Loulé, Luz de Tavira, Olhão, Quarteira, Santa Luzia, São Brás de Alportel, Tavira e Vila Real de Santo António.

No início dos anos 60 do século XX, com a crescente procura do Algarve e a descoberta do “turismo do Sol”, a construção civil começou a crescer, principalmente no Litoral. Pela forma pouco preocupada como se desenvolveu, aceite na altura como necessária e urgente, mas desde logo caótica e comprometedora do futuro desta região, havia que tomar medidas preventivas de salvaguarda, enquanto não fosse aprovado o Plano Regional do Algarve, entretanto encomendado ao Arq. Dodi. O estudo de Cabeça Padrão (influenciado pelas teorias que Gordon Cullen divulgou na sua tese Townscape) foi precursor pelo valor que atribui aos espaços públicos, ao tecido urbano não-monumental e à arquitectura vernacular e doméstica, e também pela metodologia utilizada (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:40). No entanto, quer o Plano de Dodi, quer o Estudo de Cabeça Padrão, nunca foram aprovados nem divulgados e, deste, desconhece-se boa parte do que foi então produzido. Assim se perdeu a oportunidade de difundir junto do meio técnico nacional os conceitos, os métodos e as experiências realizadas, para além do papel fundamental que teria na preservação da qualidade do ambiente urbano da região (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:41).

Para todo o país, surgem as figuras de Plano Geral de Urbanização (PGU), de Plano de Pormenor (PP) (DL 560/71 e 561/71) e de Plano de Pormenor de Renovação Urbana (DL 8/73), sobre áreas urbanas sobre-ocupadas ou com más condições de

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salubridade, solidez, estética. Seguiu-se a Lei dos Solos (DL 794/76), que permitia declarar um determinado sector urbano degradado como Área Crítica de Recuperação e Reconstrução Urbanística, o que facilita a resolução de impasses devidos a questões ligadas à propriedade e, na sequência da Lei Orgânica da DGERU (DL 189/79), os Planos Integrados de Reabilitação e Revitalização de Centros Históricos. Mais tarde, foram publicadas a Lei do Património Cultural Português (Lei 13/85), o Plano de Salvaguarda e Valorização (PSV), o Programa de Reabilitação Urbana (PRU) e criados os Gabinetes Técnicos Locais (GTL) (PAIVA, AGUIAR e PINHO, 2006:46).

O programa RECRIA (DL 4/88) contribuiu de “forma significativa para a melhoria não só das condições de habitabilidade das famílias que vivem em edifícios antigos mas também da imagem visual das nossas cidades, designadamente das zonas mais antigas”, como reconheceria o programa REHABITA (DL 105/96), exclusivamente aplicável aos núcleos urbanos históricos declarados áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística. Já antes, os “planos integrados”, elaborados pelo Fundo de Fomento da Habitação – embora fora das suas atribuições, por ser competente a administração municipal – tinham-se ocupado de zonas de interesse vário, incluindo o histórico. As referências a “zonas mais antigas”, “núcleos urbanos históricos” ou simplesmente “histórico” surgiam quase sempre e só em vista à recuperação ou melhoria de habitações. Não foi o caso do Decreto Regulamentar 37/88, de 26 de Outubro, publicado dois meses após o incêndio que “atingiu parte substancial da zona do Chiado, em Lisboa, acarretou pesadas perdas numa área da cidade carregada de tradições históricas e de uma vivência própria invulgar”. Este diploma referia que, nos termos das Leis dos Solos, de 1976 e do Património Cultural, de 1985, era necessário urgentemente desenvolver acções que levassem à reconstrução de toda a zona sinistrada, como área crítica de recuperação e reconversão urbanística, porque “o Estado está obrigado a proteger e a valorizar o património cultural do povo português”.

Outros programas, em vigor desde os últimos vinte anos do século XX, pela entrada de Portugal na CE, foram o Valis, a Expo 98, o Urban, o Interreg, o Per, o Proqual, o Luda e, mais recentemente, o POLIS. Por fim, surgiram as Sociedades de

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Reabilitação Urbana (SRU) (DL 104/2004) como forma de abordar e gerir a intervenção sobre a cidade consolidada e, no Barlavento, foi criada a “Portimão Renovada, SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana, EM“. Beneficiaram de Programas de Renovação Urbana (PRU) e do Polis, as seguintes localidades:

Albufeira: requalificação urbana no centro antigo, toda a frente de mar, trânsito no interior da cidade, tratamento e iluminação das arribas, melhoraria dos arruamentos e do espaço envolvente de alguns miradouros (Polis);

Lagos: recuperação da cor na arquitectura (PRU), frente ribeirinha e parque da cidade (Polis);

Monchique: recuperação de fachadas, vãos de portas e janelas, de coberturas em telhados e terraços e de calçadas em arruamentos (PRU);

Silves: requalificação urbana do centro histórico, núcleo urbano e zona ribeirinha, desassoreamento e revitalização das margens do Rio Arade (Polis).