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5 – O Espaço Público 5.1 Dimensão morfológica

5.2. O tempo, o dia e a noite

A vontade do homem, manifestada particularmente e por iniciativa privada, ou mais amplamente – estruturada, abrangente – e imposta pelos serviços públicos, não é única causa de transformação do meio urbano. “A cidade, como qualquer organismo

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vivo, encontra-se em contínua modificação” (LAMAS, 1993:111) e tudo o que se encontra hoje no espaço público, sem dúvida não estaria lá antes e quase de certeza não estará no futuro. Mesmo que se mostre correcto e equilibrado, capaz de servir com a mesma funcionalidade por muitas gerações, não deixa de estar sujeito a uma vontade ainda mais forte – e nunca desejada pelo homem, um cataclismo – que, num ápice, poderá deitar tudo por terra, e obrigará a que aquele espaço tenha de renascer. Depois, por muito que se deseje respeitar a memória do passado, ainda que os limites se pretendam fiéis ao traçado anterior e se procure reproduzir as fachadas, aquele espaço será necessariamente já outro. Até pela sua complexidade, o espaço público não é excepção, nele nada se mantém inalterado e nada pode repetir-se tal e qual. Tudo evolui com o tempo. Todos os elementos nele existentes, “até os edifícios, sofrem necessariamente uma evolução formal, no envelhecimento da textura e da cor, nos materiais e em pormenores, quando não na utilização” (LAMAS, 1993:111).

Pondo de lado as grandes mudanças – impostas pelas forças da natureza ou resultantes de planos de reordenamento –, as alterações no espaço público podem, quer em termos perceptivos, quer em termos físicos, ser de várias naturezas. Tomemos, no primeiro caso e a título de exemplo, uma situação em que o uso do espaço seja alterado. Se, por hipótese, mudar o sentido no trânsito, o espaço físico é exactamente o mesmo, mas o seu efeito nos utentes, designadamente nos automobilistas, vai diferenciar a sua utilização. Uma rua de sentido único, quando este muda, passa a ser vista pelo outro sentido, e ambos são diferentes. Também não parece a mesma se vista com maior ou menor rapidez (de carro ou a pé). Para quem passa pela rua, um só facto pode acarretar uma transformação significativa na percepção de todo o conjunto, apesar de nada mais se ter alterado.

É no entanto o tempo, tão importante quanto fugidio, o que paulatinamente proporciona mais modificações. “Vemos um mostrador e ponteiros em movimento, mas não vemos o tempo. Podemos abrir o relógio e procurar. Onde está aí o tempo?” (HEIDEGGER, 1992:31). Em cada instante, o espaço público permanece igual, no movimento, na acção, no modo como vive. Mas basta cair a noite ou romper o dia e já não fica igual ao que estava antes. Em cada espaço há luminosidade, cor, som, gestos,

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tráfego, ritmo e pessoas diversas, conforme a hora. Basta passar por uma rua a diferente hora da habitual, para que nos pareça outra. O espaço da cidade tem um ritmo de fundo de certo modo constante, mas muda de figura e de tom, do dia para a noite, da manhã para a tarde (ARGAN, 2005:233). Até pelas pessoas com que nos cruzamos, os objectos trazidos para a rua, o som que ouvimos de fundo, o cheiro que sai de algumas casas, já sem falar da posição do sol e das sombras nas fachadas, conseguimos imaginar que horas são.

O tempo é importante e tudo muda, mas depende também do lugar. No mundo, o mesmo instante tem horas e comportamentos diferentes. Em longitude, enquanto uns estão a levantar-se, outros já a deitar-se e outros ainda a voltar para casa depois de mais um dia de trabalho. Em latitude, num sítio é inverno e noutro verão. Também na cidade grande, em cada zona ou bairro, o espaço público poderá estar a ser vivido de forma muito própria, diferente da dos demais. Bastará observar cada espaço no decorrer de vinte e quatro horas, para encontrar mais semelhanças com igual hora do dia anterior, do que com as duas ou três horas antes desse dia. O girar do tempo deixa marcas e o espaço público mostra-se diferente, ao longo do dia, à hora da entrada e saída das escolas, dos empregos e na ida às compras, ou no fim-de-semana, à saída da missa, do teatro, nos parques de estacionamento. O espaço público nunca é o mesmo. Os lugares são também marcados, mais ainda, pelas estações do ano, visíveis principalmente em elementos vegetais: as árvores são mesmo como um relógio das estações do ano (LYNCH, 1972:149).

Ainda que todo este movimento se repita, o tempo passa e – quando nasce outro dia, recomeça a semana e regressa a estação – os espaços são já outros ou são diferentes os elementos que o compõem. Com a utilização que as pessoas lhes dão, com os ciclos sazonais e diferentes horas do dia, muda a paisagem urbana. No Barlavento algarvio, durante o Inverno, as ruas estão quase vazias, registam pouco movimento. No Verão, pelo contrário, as ruas enchem-se de população local, de turistas e demais visitantes, vendedores e outros – montam-se esplanadas, os expositores são colocados no exterior –, e a paisagem fica diferente. No seu todo, esta diferença inclui gente e equipamento, tons e sons, vazio e cheio. No dia-a-dia, a

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população local necessita menos de sair à rua, porque a família é mais reduzida, vive em casas maiores, com congelador que evita idas ao mercado, telefone, televisão e outros equipamentos que lhe proporcionam o que dantes encontrava no café. Mas, sobretudo na cidade, o turismo e a restauração compensam essa retracção dos moradores; no verão, também os festivais e outros eventos voltam a trazer todos para a rua, “recuperando antigos lugares para o lazer” (ASCHER, 1998:175).

Muitas destas actividades, destinadas a animar o verão e a atrair muito público – população local, de municípios vizinhos e de outros pontos, principalmente do Algarve –, exigem muito espaço e decorrem em recintos periféricos. Nesses dias, adquirem a visibilidade e a centralidade própria dos lugares de “presença e domínio” (INNERARITY, 2006:130), que entretanto perderam, com a retirada da administração e de serviços para novas zonas urbanas. Não é sempre assim. Em Albufeira, em Silves e em Lagos a festa continua a decorrer no centro histórico, tal como em Portimão, embora aqui muitas vezes extravase para zonas novas. Também nas aldeias – Paderne, Guia, Alferce, Casais, Marmelete, Figueira (de Portimão), Barão de S. João, Barão de S. Miguel, Bordeira e Carrapateira – a festa, a feira e o mercado decorrem no terreiro contíguo ao edificado, onde o quotidiano também se desenrola. As manifestações religiosas exteriores, as procissões que ainda se fazem e outros cortejos realizados com fins diversos, de benemerência, recreativos, de evocação histórica ou políticos, por maioria de razão percorrem as ruas mais centrais, que assim manifestam a sua condição de “territórios de partilha colectiva” (GONÇALVES, 2006:40).

Fora dessas datas e desses acontecimentos especiais, a praça, onde a igreja ou os paços do concelho ocupavam lugar central; a rua principal, com o seu comércio, repartições e cafés, que aos poucos deram lugar a dependências bancárias – e aguardam, entretanto, novas utilizações –, perderam muito do movimento e do interesse que, até quase final do século XX, haviam despertado. De qualquer forma, porque as zonas novas, apesar dos atractivos espaços comerciais, são depressa ultrapassadas por outras ainda mais novas, todas se revelam com centralidade efémera. Por isso, a localização de um edifício na praça principal do centro urbano ainda continua a assegurar o reconhecimento de estatuto social (BARBOSA, José,

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1993:299). Outros, porém, acreditam que a praça e a rua direita, que haviam sido espaços “multifuncionais – de trabalho, de lazer, de passagem, encontro e deambulação, de conflito e de festa, de poder e de resistência, acolhedores ou inseguros” – tendem a desaparecer a curto prazo (LOUSADA, 2008:45).

Esta perda de funcionalidade – que não atinge só a praça mas se estende a todo o centro histórico e alastra também às periferias – torna, até de dia, menos seguro o espaço público, boa parte sem trânsito automóvel e entregue apenas aos peões, consequentemente menos circulado. À noite, a sensação de segurança é ainda menor. Da mesma forma que “a dinâmica económica do espaço-tempo noite resulta de actividades que, no passado, associávamos apenas ao dia” (ALVES, 2008:5), também a iluminação do espaço público está preparada para uma urbe adormecida e não para essa nova animação que, no verão e nos centros turísticos, tem seu pico de utilização à noite. Este medo, se bem que não compartilhado pelos mais novos que cresceram já neste ritmo de vida, é sentido todavia por seus pais e avós, e tem levado à contradição de “concebermos e construirmos a cidade para que seja completamente aberta e depois fechamo-la”, como são disso exemplo os condomínios (GONÇALVES, 2006:56).