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5 – O Espaço Público 5.1 Dimensão morfológica

5.14. A rua como elemento primeiro e a praça como elemento de excepção

“Sou algarvio / e a minha rua tem o mar ao fundo” (PEREIRA, António, 1987:24). Nestes dois versos, o poeta de Armação de Pêra – ao tempo aldeia e hoje vila do Barlavento – dá expressão ao sentimento comum à maioria dos algarvios: a tranquilidade que lhes transmite a visão do mar. Na Rua da Bateria, em Albufeira, o muro que a acompanha sobre a arriba é entrecortado por painéis de vidro no enfiamento das ruas que a ela convergem, para que uma réstia de mar esteja sempre presente. Em Lagos, a Rua Miguel Bombarda, a mais meridional do centro histórico, também desce com o azul ao fundo, propiciando a imagem que residentes e visitantes idealizam do Algarve. Mesmo em localidades mais no interior, algumas ruas em cotas altas conseguem divisar, no horizonte ao longe, o traço azul do mar. Com panorâmica ou voltada apenas para si mesma, a rua é o exterior de nossas casas, o espaço público imediatamente perceptível, quando olhamos para fora e quando saímos. A rua é o espaço de ninguém e de todos, “que conduz de um ponto a outro“ (PANERAI, 2006:86), constitui “uma vertente fundamental do cenário urbano” (SIEBER, 2008:53) e torna-se “lugar de referência” (VIDAL, 2008:65).

A rua constitui o elemento central e primeiro na organização dos espaços urbanos. Do seu relacionamento com outros espaços e com os quarteirões que separa e por que é limitada, resulta o traçado que vai definir a malha urbana. A rua – inicialmente estrada ou caminho – com casas de ambos os lados, mesmo enquanto única, deixa de ser apenas sítio, começa já a impor-se como aglomerado habitacional, mas não tem ainda características de aldeia. O binómio público/privado ocorre somente ao longo dessa rua e tudo daí para dentro é privado. O espaço público enquanto unitário permite uma ou mais relações de vizinhança, demasiado lineares e à vista de todos, quase sem cumplicidades. É espaço de deslocação e de permanência – todos o são, aliás –, mas não consegue desenvolver-se plenamente em ambos os objectivos: à medida que evolui num, perde qualidade no outro.

A abertura de uma segunda rua, que permita aceder às traseiras com a tranquilidade que começa a faltar na frente do prédio, e de travessas, que entre

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parcelas reduzam a distância para lá chegar, inicia uma nova realidade local. A rua central fica mais de todos e quase de ninguém, torna-se impessoal. Quem tem prédios com acesso pela travessa ou pela rua traseira, é por aí que passa a ter mais intimidade com o espaço público. As relações de vizinhança perdem amplitude e ganham proximidade. São aproveitados espaços intermédios para estacionamento e para convívio de moradores mais de perto. Por certo, o mesmo irá acontecer nas traseiras das casas do lado oposto da rua inicial. As veredas que partiam de algumas casas pelo campo fora são reforçadas e tornam-se ruas também. Guarda-se um terreno plano e acessível para ajuntamentos: jogos, arraial, mercado, festa. Se há capela, convém que lhe fique perto. E assim se vai tecendo a povoação, com uma malha mais larga ou mais apertada, conforme a divisão fundiária e a topografia permitem. Inicialmente, todos os gestos são individuais, levados por diante no interesse da cada um ou de um grupo restrito de moradores, sem relação directa com os demais. Só mais tarde, quando é preciso harmonizar o que já está feito, a administração local intervém no interesse colectivo.

Numa cidade planeada – entre nós, os aldeamentos turísticos e as urbanizações, algumas como extensão das povoações existentes –, tudo começa na planta e cada espaço irá ocupar a posição relativa que lhe foi destinada. Mesmo assim, com o tempo, há reajustamentos e alterações ao projecto aprovado, por vezes com mais lotes para construção em substituição do espaço para equipamento colectivo. Nas aldeias aqui estudadas, em São Marcos da Serra, Alferce, Casais, Montes de Alvor, nas duas Figueiras, Sargaçal, Portelas, Barão de São João, Espiche, Almádena, Burgau, Budens e Carrapateira, foram incluídos arruamentos no interior de zonas mais novas, criadas já como bairros ou como loteamentos privados.

Na malha urbana, a rua é sempre referência (PANERAI, 2006:86). Se considerarmos o espaço público, os largos são alargamento ou espaços contíguos à rua; as praças são convergência de ruas; as travessas são ligações entre ruas; os becos são ruas interrompidas; as avenidas são ruas largas; as calçadas são ruas inclinadas. Se analisarmos o espaço privado, os prédios têm o seu limite exterior na rua; as parcelas são perpendiculares à rua; os lotes confinam com a rua; os quarteirões moldam a rua.

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A relação estabelecida com as parcelas que formam o quarteirão – preenchidas por edifícios de diversas épocas, geralmente alinhados e com fachadas de diferentes larguras e desenho – contribui para a fisionomia da rua ou da praça.

Nascida da valorização do terreno fronteiro a um edifício marcante – igreja ou palácio – ou do encontro de ruas principais, a praça é reconhecida como espaço urbano de excepção (DIAS COELHO e LAMAS, 2007:29), o mais importante elemento morfológico do espaço público (SILVA, José, 2013:84). Nela se localizam também edifícios particulares ou administrativos de mais prestígio, alguns com arquitectura relevante, que proporcionam enquadramento com dignidade a acontecimentos e manifestações de vida urbana e comunitária, práticas sociais, encontro intencional e permanência isolada (LAMAS, 1993:100). É na praça que realça o cenário urbano. As fachadas dos edifícios são os planos de fundo e laterais. Os elementos dispostos pelo solo são os adereços: o coreto, o lago, os canteiros, as árvores, os bancos, os candeeiros, as estátuas, o quiosque, a cabine telefónica e o marco de correio.

Pela rua fora, a proximidade por que passamos pelos edifícios não permite que os contemplemos em pormenor e menos ainda no conjunto com os demais. Na rua, o objectivo é chegar aonde ela nos leva, somos menos atentos ao que nos ladeia. Na praça, ainda que uma maior distância torne menos perceptíveis pormenores marcantes de cada prédio, é mais o desenho de conjunto que lhe dá ênfase. Podemos ser espectadores dentro do próprio palco e tomar parte activa na mímica e no diálogo ou permanecer alheios aos quadros que se desenrolam à nossa volta; em qualquer caso, estamos em cena e nela entramos e saímos com a tranquilidade de quem se sente em casa. É também na praça que melhor nos apercebemos da relação entre os edifícios e o vazio, a proporção e o contraste que entre o espaço público e o privado se estabelece.

O largo e o terreiro são também espaços vazios, alguns até mais amplos. Nos centros históricos têm limites bem definidos, porque as construções que os envolvem lhes deram forma, por vezes regular. Nas aldeias não tanto e ocupam posição quase sempre periférica e acidental. São menos local de encontro intencional, excepto em dias de feira, mercado ou festa, e servem ainda para realização de actividades

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esporádicas e jogos, alguns de cariz tradicional. Com excepção de Casais e Hortas do Tabual, cada aldeia tem pelo menos um largo com denominação toponímica. Espiche tem seis e Budens cinco (QUADRO 048). Nos centros históricos, apenas Vila do Bispo não tem qualquer largo. Nos restantes, há 52 com topónimo, dos quais doze em Portimão e nove em Monchique (QUADRO 049).

As praças que encontramos nesta sub-região sudoeste do território português assumem forma, dimensão e funcionalidades bem distintas, quando vistas de terra para terra ou até dentro da mesma localidade. Desde logo, porque uma praça, como qualquer outro elemento urbano, plasma-se quase sempre ao terreno em que se encontra e fica dependente da sua topografia, quer em forma, quer em dimensão. Depois, porque, como espaço público, terá surgido com uma determinada intenção ou, pelo contrário, da sua falta ou do desaparecimento da que inicialmente tivera. Pode ter sido um espaço desde sempre aberto, destinado ao encontro permanente ou circunstancial de moradores e visitantes; ou resultar de um sucessivo demolir de um ou mais quarteirões em ruína ou pequenas construções isoladas de menor importância, que não foram reconstruídas e começaram por formar um largo a que o poder local atribuiu condições de centralidade.

Nos trinta núcleos estudados – aldeias e zonas que considerámos como centros históricos – são 1171 os espaços com topónimo existentes e, desses, apenas 22 estão classificados como praças. Dezassete localizam-se em sete dos centros históricos e cinco em quatro aldeias. Aljezur tem quatro largos e não designa por praça qualquer espaço do seu centro urbano. Nas aldeias, Paderne tem duas praças como seus espaços centrais; Barão de S. João, Budens e Montes de Alvor têm cada uma a sua. O número de praças representa 2,5% dos espaços nos centros históricos e menos de 1% nas aldeias. Logo aqui ressalta o grau de excepcionalidade do elemento praça nos aglomerados populacionais do Barlavento algarvio.

Aqui, tal como é vulgar em Portugal, não são muitas as “praças fechadas, desviadas intencionalmente dos eixos de circulação” (BARBOSA, José, 1993:325), ou quase reclusas de toda a sua envolvente, como um grande pátio, com um só acesso público. Ao ser retirado o trânsito automóvel de certas zonas das cidades – e, pela sua

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reduzida largura, é pelas ruas dos centros históricos que a medida começa –, a quantidade e dimensão das esplanadas e expositores que depois as ocupam torna difícil e lento passar por lá. Algumas dessas artérias quase deixaram de ser espaços de circulação e passaram a ser mais de estar. Todavia, isso não lhes muda o tipo, nem a vocação. Há situações em que o acesso normal à praça é exclusivamente pedonal, quase sempre por ficar a diferente nível ou por não haver contacto directo com qualquer espaço de circulação. O nosso exemplo é a Praça Comendador António de Libânio Correia, em Paderne.

Às restantes, em média convergem cinco artérias, valor normal dentro dos padrões portugueses: mais de 50% do total com 5 ou 6 acessos distintos. Em princípio, “quanto mais numerosos são os acessos, mais a praça se abre à envolvência” (BARBOSA, José, 1993:328). A Praça da República, em Portimão, é de onde irradia maior número de ruas (10). Quase todas têm largura reduzida e, como tal, não provocam a fragmentação do espaço na mesma proporção; apenas as ruas do Comércio e Vasco da Gama, que com ela convergem, frente a frente, obrigam ao atravessamento desta praça. É uma das mais amplas (8106m2), mas, em Lagos, a Praça Luís de Camões, bem mais pequena (840m2), tem saída para sete arruamentos (Anexos, Plantas: Praças). Nas várias praças, a maioria dos acessos localiza-se nos cantos e não há qualquer situação de entrada central, por via ampla, dando expressão a todo o espaço.

As praças maiores e mais centrais – dos Pescadores, em Albufeira; Infante D. Henrique, em Lagos; da República, em Portimão; e Al Muthamid, em Silves – resultaram do aproveitamento de terrenos junto a praias ou de rossios, foram depois ampliadas e tiveram nova intervenção já no século XXI. A própria planta da localidade dá-nos, por vezes, pistas nesse sentido. Em Albufeira e Lagos, aquelas praças ocupam boa parte do que antes fora praia. Em Portimão (Praças Manuel Teixeira Gomes e 1º de Maio) e em Silves, foram áreas de influência das marés, no rio Arade. Daí que não tenham casario a delimitá-las nalguns dos lados e que a sua forma seja regular e quadrangular.

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Razões diversas tornam outras praças também dignas de referência. A Praça da República, em Albufeira, fica sobranceira ao mar, mas no cimo do morro onde se ergueram as antigas muralhas. Em Lagos, a Praça Marquês de Pombal – também conhecida por Largo das Laranjeiras, com apenas 214m2 – é o menor espaço público do Barlavento designado como praça e foi o primeiro da cidade parcialmente cortado ao trânsito automóvel. Em Silves, é a Praça do Município, num piso abaixo da larga varanda fronteira ao edifício dos Paços do Concelho, que lhe dá maior amplitude e, por isso, todo o conjunto é geralmente apresentado como um único espaço (DIAS COELHO e LAMAS, 2007:845). Não identificado como praça, o Largo dos Chorões é o espaço mais amplo e mais central de Monchique. Nas aldeias, é a existência de uma praça que, de certo modo, lhes marca a diferença.

São cinco as Praças da República – em Albufeira, Paderne, Lagoa, Portimão e Vila do Bispo – e, em Lagos, a Praça do Infante D. Henrique também era assim designada. Os vinte e dois espaços com topónimo e classificados como praça variam muito na sua dimensão, quer no comprimento (entre 20m e 194m), quer na área (214m2 e 8642m2) (QUADRO 100). Como seria de esperar, as praças maiores situam-se nas cidades e as menores nas aldeias. No entanto, as duas de menor dimensão estão nos centros históricos de Monchique e de Lagos. As Praças de Al Muthamid, em Silves, e da República, em Portimão, estendem-se ambas ao longo de vários quarteirões, são as duas maiores e as mais equipadas. Embora quase todas as praças tivessem obtido arranjos recentes, inseridas em processos de valorização dos tecidos urbanos (SILVA, José, 2013:98), o seu traçado é mais antigo e, na maioria, persiste desde antes do século passado.

Na toponímia, a diferença entre praças e largos varia de município para município e, em cada um, de época para época. Deverá ser designado por praça um espaço central, de convergência e por largo o alargamento de uma via ou uma bolsa de terreno contíguo. O Largo do Município, em Silves, e o de Sárrea Prado, em Portimão, assim terão sido designados por serem laterais a uma via principal. Poderiam todavia figurar hoje como praças, e das maiores, ou como jardins, mais propriamente, por grande parte do seu espaço estar preenchido com canteiros e muitas árvores.

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