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5 – O Espaço Público 5.1 Dimensão morfológica

5.10. Do traçado e da construção no tempo

Iniciada uma povoação, segue ela o seu curso, no espaço e no tempo. Face ao que já existia e ao seu próprio ritmo, o que de novo é construído fica presente e

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marcado; e, por cada operação, passamos a ter um novo global. Como numa dança, em que a distância e os movimentos seguem o compasso musical, também na construção da cidade há uma cadência em que as formas e os momentos se sucedem com ritmos próprios (SOLÀ-MORALES, 1997:19). Ao longo do tempo, os núcleos modificam-se. Podem crescer – situação mais comum – ou definhar. Além do sítio, que desde logo é factor condicionante, também as primeiras edificações darão, por certo, o mote para as construções seguintes. O assentamento primitivo dirige quase sempre a expansão do núcleo, que pode estar impedido de crescer numa direcção ou mais e ter possibilidade de o fazer noutras (ZÁRATE MARTIN, 1991:76). O território, que num primeiro momento foi já parte integrante na edificação, continuará a marcar o desenvolvimento do aglomerado, sujeito a fenómenos de extensão e de densificação (PANERAI, 2006:51).

Na vida de um aglomerado podemos evidenciar três momentos: o primeiro corresponde ao período de edificação; o segundo a uma ou mais expansões; o terceiro ao presente, no seu todo. Em cada instante, o aglomerado é já constituído pelo que resta dos vários momentos vividos até então. Pode ter ou não zonas reconhecíveis como partes, como períodos, mais ou menos independentes, mas é o conjunto que forma o novo todo. No primeiro momento, distinguimos as situações em que quase sempre não há um projecto prévio e a povoação é construída por acumulação, peça a peça. Nesta situação, cresce ao longo do tempo, geralmente extenso. No caso, mais raro, de haver um projecto, a peça a conceber é já o todo, não a soma de várias unidades; representa logo uma porção maior. A execução ou edificação desse conjunto é feita num período de tempo mais curto do que a construção de igual superfície de território sem plano inicial.

Na construção do aglomerado, todas as combinações são passíveis de acontecer. As três operações – parcelamento, urbanização e edificação – podem não ser coincidentes nem encadeadas, dificilmente ocorrem de igual modo e é precisamente das múltiplas combinações possíveis, no tempo e no espaço, que resulta a riqueza morfológica das cidades (SOLÀ-MORALES, 1997:19). Além do factor tempo, as distinções entre povoações com ou sem projecto materializam-se no tipo de

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desenho gerado, imediatamente perceptível em planta ou através de imagem aérea da povoação. Essa visão de conjunto de um núcleo mostra-nos a relação entre as diversas partes, nomeadamente quantidades de cada categoria e algumas das suas características físicas, como sejam a largura e o comprimento, proporcionalmente entre si. Além dessa leitura comparativa de espaços, identifica o aglomerado pelo seu desenho, na globalidade.

Numa definição que pode ser usada como ponto de partida, por provir de entidade competente, o traçado “refere-se ao fundamento planimétrico da cidade, ao desenho resultante das linhas que estruturam o espaço urbano. Concretizado na rede viária, o traçado permanece como elemento estruturante e resistente, premissa fundamental em qualquer investigação dos processos formativos do tecido urbano”. Por isso, “tornou-se corrente a distinção entre traçados planeados, regulares e geométricos, e traçados ditos espontâneos ou orgânicos. Em geral, classificam-se os traçados a partir de dois tipos geométricos de referência: o traçado ortogonal, em retícula ou quadrícula, e o traçado radial ou radioconcêntrico.” (Vocabulário, DGOTDU, 2005:356). Como elemento claramente identificável, o traçado assume posição relevante: “Assenta num suporte geográfico preexistente, regula a disposição dos edifícios e quarteirões, liga os vários espaços e partes da cidade, e confunde-se com o gesto criador” (LAMAS, 1993:98-100).

Esse gesto inicial e a forma daí resultante estão quase sempre visíveis numa povoação. Quando planeada, criada num só momento e com seu padrão determinado no todo, não obstante, raramente se aproxima das formas mais puras e o tipo de geometria conseguido é frequentemente complexo. Não sendo planeada, sem desenho ou plano geral e apenas sujeita à passagem do tempo, obtém uma forma menos regular, não geométrica, orgânica (KOSTOF, 1991:43). Poderemos falar de “consciência espontânea” e de “consciência crítica”, mas – talvez mesmo desde o início – não existem modelos puros de cidade planeada ou de cidade não planeada (GUERREIRO, 2001b:33). No entanto, embora nem sempre a influência seja suficiente para fazer a distinção, a cidade planeada mostra que o seu elemento organizador principal foi o homem, enquanto na cidade espontânea terá sido mais a natureza.

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Numa e noutra, a relação com o assentamento no território garante ao seu traçado um carácter de permanência, que resiste às transformações urbanas e, ao longo do tempo, o mantém pouco modificado (LAMAS, 1993:100).

Esta conformidade com a topografia e com as características morfológicas está na origem dos diferentes traçados e da diversidade em cada um. A existência de partes distintas contribui para a riqueza morfológica do traçado de uma cidade, e a sua unidade morfológica é conseguida com a junção dessas partes através de relações de continuidade, de estrutura e de articulação (FERNANDES, Sérgio, 2013:38). Os acidentes topográficos geralmente definem os limites do traçado urbano e propiciam o desenvolvimento de outras zonas, com diferente composição que se ligam mais tarde ao núcleo primitivo. Por vezes essa ligação permanece durante longo período através de uma só rua, ou troço de estrada. Foi o caso dos núcleos do Degoladouro e das Cabeças, em Aljezur; de Alferce e o Sítio de Baixo; Marmelete e o Bairro das Marias; Paderne e o quarteirão da Bela Vista; e os pequenos núcleos das Portelas. Quase sempre acabam por ser ligados por um segundo arruamento: pelo desvio da estrada (Marmelete), pela urbanização de novos terrenos (Portelas) ou pela abertura de estrada e de um caminho panorâmico (Aljezur).

Quando o solo é quase plano ou suavemente inclinado, melhor se estabelece um traçado regular, constituído por segmentos rectos cruzados na perpendicular e uma ou outra rua concorrente na diagonal. O centro histórico de Portimão é constituído por três núcleos com esta característica. O de Lagos, apesar de distribuído por três morros, tem traçado idêntico. Também as zonas mais a sul de Lagoa e de Vila do Bispo, a mais baixa de Silves, Montes de Alvor e Budens apresentam traçado ortogonal. Por sua vez, Aljezur, Bordeira, Monchique e Barão de S. Miguel são exemplos de traçados que acompanham em curvas as linhas do terreno, aqui e ali ligadas por pequenas travessas muito inclinadas e de formato irregular. Nas povoações de encosta, a geometria da sua malha urbana resulta do próprio terreno e da forma como é percorrido (GUERREIRO, 2001a:21). O declive muito acentuado cria condições para a existência de muitos becos, quer por não ser possível prolongar mais o

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arruamento, quer para escoar a água das chuvas, desviando-a das moradias, como acontece em Aljezur, com um total de 68 becos (QUADRO 110).

A procura de lugares dominantes – Albufeira, Aljezur, Monchique e Silves – condicionou o traçado de seus núcleos primitivos, enquanto localizações mais junto ao mar ou linhas de água – Lagos, Portimão e parte baixa de Silves – permitem traçados mais amplos. O longo troço de estrada, hoje Rua Infante D. Henrique, em Portimão, que fora rasgado no seguimento da ponte sobre o Arade, esteve na origem do traçado ortogonal dos novos bairros que, no início do século XX, se desenvolveram de ambos os lados dessa via. O mesmo se passou a sul da estrada que atravessava Silves e com a estrada nacional 125, ao tempo em que passava pelo interior de Lagoa.