• Nenhum resultado encontrado

Teorias Falsas e Verdadeiras do Valor da Morte de Cristo

II. Registro Histórico

Os conceitos múltiplos e complexos a respeito do valor da morte de Cristo que se tem obtido dentro da era cristã podem ser dividido em três períodos de tempo: (a) desde o princípio do cristianismo até Anselmo (1100 d . C ) ; (b) desde Anselmo até Grócio (1600 d . C ) ; e (c) desde Grócio até o tempo presente.

1. D o P R I N C Í P I O A A N S E L M O . Parece que nenhuma tentativa definida foi feita pelos homens da Igreja no sentido de formular uma doutrina relativa ao valor da morte de Cristo. Os ensinos de Cristo e dos apóstolos foram recebidos em simplicidade de fé. A seguinte citação da Epístola de Barnabé (c. vii) servirá para indicar a crença dos homens dos tempos passados: "Portanto, se o Filho de Deus, que é Senhor [de todas as coisas], que julgará os vivos e os mortos, sofreu, que o golpe que lhe sobreveio poderia dar-nos vida, creiamos que o Filho de Deus não poderia ter sofrido exceto por nossa causa". A isto pode ser acrescida a citação da Epístola de Diognetus:

Q u a n d o a nossa impiedade havia alcançado o seu auge, e havia sido mostrado que a sua recompensa, punição e morte, estavam por acontecer a nós; e quando o tempo que Deus havia de antemão designado de manifestar a sua própria amabilidade e amor, veio sobre nós — como aquele amor de Deus, através de uma grande consideração pelos homens, não nos considerou com ódio, nem nos empurrou para

REGISTRO HISTÓRICO

longe de si, nem levantou contra nós a nossa iniquidade, mas mostrou grande longanimidade, e foi indulgente conosco - Ele próprio tomou sobre si o fardo de nossas iniquidades, Ele deu o seu próprio Filho como u m resgate por nós, o santo pelos transgressores, o inculpável pelos ímpios, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. Qual outra coisa seria capaz de cobrir os nossos pecados além de Sua justiça? Por quem mais era possível que nós, ímpios e injustos, fôssemos justificados, além do único Filho de Deus? O, que troca maravilhosa! O, que operação insondável! O, benefícios que superam toda expectativa! Diante dessa impiedade muitos deveriam se esconder naquele simples Justo, e a justiça dAquele justificaria muitos transgressores.41

Contudo, foi sustentado desde os dias antigos e quase que universalmente, a despeito de vozes contrárias, que o resgate, o qual Cristo proporcionou, foi pago a Satanás. Anteriormente, foi assinalado (no Cap. IV) que a morte de Cristo efetuou o julgamento de Satanás (Jo 12.31; 16.11; Cl 2.14, 15), que Satanás é aquele poderoso inimigo, que não abnu a ceia de seus prisioneiros (Is 14.17) e que foi derrotado por Cristo que, em sua morte, "abriu a pnsâo aos presos" (Is 61.1). Fica evidente que tais textos tiveram um lugar muito importante nos dias da Igreja Primitiva. Aqui, como é frequentemente registrado em todos os séculos da história da Igreja, surge confusão da suposição de que Cristo operou apenas uma coisa em sua morte. Satanás e seus anjos foram julgados, mas o valor da morte de Cristo não é restrito a esta verdade; nem é dado o devido lugar a ela. Muito certamente não há base para a noção de que Cristo pagou u m resgate a Satanás, pela redenção dos homens perdidos. Como uma ilustração do protesto que certos homens levantaram contra esse conceito infundado, vem a seguinte citação de Gregório de Nazianzo:

Para quem e sob a responsabilidade de quem foi o sangue derramado em nosso favor, sangue precioso e ilustre daquele que era Deus, e ambos, Sumo Sacerdote e sacrifício? Somos sustentados pelo diabo, visto que fomos vendidos como escravos debaixo do pecado, e adquirimos prazer no pecado. Ora, se o preço da redenção é dado somente àquele que tem a posse dos cativos, então eu pergunto: A quem foi pago esse resgate, e com base em que? Para o maligno? Oh, que ultraje monstruoso! Então o ladrão recebeu não meramente um resgate de Deus, mas recebeu o próprio Deus como o preço de nossa redenção! Salários magnificentes por sua tirania, pagamento que a justiça exigiu que Ele nos poupasse! Se, contudo, o resgate foi pago ao Pai, como, em primeiro lugar, pode ser isto? Pois não era Deus que tinha posse de nós. E, em segundo lugar, por qual razão deveria o sangue de seu Unigénito Filho dar qualquer satisfação ao Pai, que nem mesmo aceitou Isaque quando seu Pai [Abraão] o ofereceu, mas mudou o sacrifício de um ser racional para o de um cordeiro? Não está claro que o Pai recebeu o sacrifício, não porque Ele próprio o exigiu e o tornou necessário, mas por causa do governo

divino do universo... e porque o homem deve ser santificado através da encarnação do Filho de Deus.42

2. D E A N S E L M O A G R O T I U S . O escrito de Anselmo em sua obra Cur Deus

Homo mudou abruptamente a sua posição anterior. Anselmo afirmou que a

criatura havia procedido mal contra o Criador, que tem os direitos soberanos de posse daquilo que Ele fizera, e que um resgate foi pago a Deus. A ideia circunda aproximadamente a verdade da propiciação divina, e é, além disso, uma ênfase quase exclusiva sobre u m aspecto da verdade. As seguintes citações de Cur Deus Homo indicarão o caráter positivo do raciocínio de Anselmo, que é considerado o estruturador da doutrina da satisfação:

O pecado não é algo além do que não prestar a Deus o que lhe é devido...

A vontade total de uma criatura racional deveria estar sujeita à vontade de Deus... Aquele que não prestar a Deus esta honra que lhe é devida, rouba Deus daquilo que lhe é seu, e o desonra; e isto é o que o pecado é... Cada um que peca deve pagar de volta a honra que roubou de Deus; e esta é a satisfação que cada pecador está obrigado a pagar a Deus (c. xi)... Nada é menos tolerável na ordem das coisas do que uma criatura roubar o Criador da honra que lhe é devida e não repará-lo daquilo que ela lhe roubou... Se melhor ou maior do que Deus, nada pode ser mais justo do que aquilo que preserva a Sua honra na disposição dos eventos, mesmo a justiça suprema, que não é nada mais além do que o próprio Deus (c. xiii).... Que Deus perderia a sua própria honra é impossível; nem o pecador de sua própria vontade paga aquilo que deve, nem Deus toma algo dele contra a sua vontade. Pois nem o homem de sua própria vontade livre pode mostrar essa sujeição a Deus que lhe é devida, seja por não pecar ou por fazer compensações por seu pecado, ou que Deus o sujeite a Ele próprio, para atormentá-lo contra a sua vontade, e por meio disto mostre-se ser seu Senhor, que o mesmo recusa reconhecer por vontade própria.43

Anselmo escreveu muita coisa sobre o caráter representativo de Cristo como o Deus-homem, que é impossível para o homem caído satisfazer a Deus, e que Cristo como o representante do homem, assim como o verdadeiro Deus, apresentou uma satisfação como substituto, e assim a satisfação foi apresentada tanto por Deus que sozinho pôde atingir tão grande exigência assim como foi apresentado pelo H o m e m representante.

Durante o período que começou com a influência, outros assuntos importantes e intimamente relacionados estiveram sob discussão, sendo um desses sobre se Cristo realmente tornou-se pecado de modo que suportou a soma total de todos os pecadores, ou se, num sentido, forense, Ele suportou o juízo do pecado como é prefigurado na verdade tipológica de que u m cordeiro foi eficaz para um indivíduo, como no caso de Abel, ou para uma família, como na Páscoa, ou pela nação, como no caso do dia da Expiação. Martinho Lutero defendeu vigorosamente a ideia de que Cristo tornou-se pecado por todos os homens e não meramente suportou as penalidades deles. Em seu comentário sobre Gálatas 3.13, ele declara:

REGISTRO HISTÓRICO

A doutrina do Evangelho (que de todas as outras é a mais doce e cheia de consolação singular), não fala algo de nossas obras ou das obras da lei, mas da misericórdia e amor inestimáveis de Deus concernente ao mais desgraçado e miserável dos pecadores: ter o conhecimento de que o nosso Pai misericordioso, ao ver-nos oprimidos e vencidos pela maldição da lei, e assim ser dominados por essa lei, que poderíamos nunca ser libertos dela pelo nosso próprio poder, Ele enviou seu único Filho ao mundo, e pôs sobre Ele os pecados de todos os homens, quando disse: "Sejas tu Pedro, o negador; Paulo, o perseguidor, blasfemador, e cruel opositor; Davi, aquele adúltero; Adão, aquele pecador que comeu do fruto proibido no Paraíso; aquele ladrão que foi pendurado na cruz; e, resumidamente, sejas Tu a pessoa que cometeu os pecados de todos os homens. Vê, portanto, que Tu pagas e satisfazes por eles". Aqui agora vem a lei, e diz: Vejo-o u m pecador, e Ele tomou sobre Si os pecados de todos os homens, e Eu não vejo mais os pecados, exceto nele; portanto, deixe-o morrer sobre a cruz; e assim Ele o matou. Por isso, está claro que o m u n d o inteiro é purgado, é purificado de todos os pecados, e liberto assim da morte e de todos os males.44

Outro problema que recebeu muita atenção, foi um relacionado à liberdade divina envolvida na doutrina da satisfação. Se Deus deve requerer uma satisfação justa - não lhe sendo permitido perdoar o pecado como u m ato de indulgência soberana - não fica a sua própria liberdade restrita e o exercício de sua misericórdia limitado? Francis Turretin (1682) argumentou que o relacionamento de Deus com o homem caído é privado; ele envolve interesses públicos que não podem ser desconsiderados, se o governo de Deus deve permanecer.

Os socianianos, na defesa de sua interpretação racionalista do valor da morte de Cristo, argumentaram que se Cristo realmente satisfez a Deus pelos homens caídos, então aqueles por quem Cristo morreu seriam automaticamente salvos por aquela morte, o que é universalismo. Uma resposta a esse desafio foi a teoria de uma redenção limitada, a qual assevera que Cristo morreu somente pelos eleitos, ou por aqueles que, de acordo com o propósito de Deus, estavam para ser salvos. Visto que esta é uma questão importante, ela deve ainda receber um tratamento mais extenso (nos Caps. VIII-X); por isso, não será estudada agora.

3 . D E G R O T I U S AO T E M P O P R E S E N T E . A teoria governamental sobre o valor da morte de Cristo foi originada por Hugo Grotius (1583-1645), de Leyden, Holanda. Esta teoria, que logo será discutida mais detalhadamente, teve uma influência enorme sobre homens de mente liberal, e tem sido, desde a sua criação, a única teoria notável que compete com a sempre honrada doutrina da satisfação, doutrina essa, embora formulada por Anselmo, que tem sido a visão aceita pelos crentes que formam a Igreja em todas as suas gerações.