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“Os átrios da língua são, antes do estado construído, as moradas do pensamento ainda não tematizadas em signos, mas cuja lucidez potencial, instante a todos os signos, funda, antes de todo o saber, a própria possibilidade do significar” nos seus átrios, é pensante e o átrio é aquilo que, sem ser a morada, abre passagem até ela”51.

Já vimos como a dimensão pathica inerente ao sentir se constitui como comunicação com o fundo do mundo, a partir do qual cada coisa recebe a sua existência, antes da sua constituição em objecto de percepção. Toda a morada tem os seus átrios, lugares de escuta e de foco originários, onde o espaço se define por todos os seus cruzamentos possíveis. O homem só funda o seu espaço próprio por relação ao espaço que lhe é estranho e o espaço só lhe é estranho porque ele cria o espaço próprio e não se deve dizer unicamente que o próprio e o estranho comuniquem entre si, mas antes que eles são em si mesmos abertura, comunicação.

Maldiney distingue entre edificar (bâtir) e construir (construire). “«Construir é reunir os elementos homogéneos» (G. Braque) sob a autoridade de um limite objectivo pré- estabelecido”52, neste caso, o limite assim concebido destina-se a conter os assaltos ou os ataques do inimigo ou as insinuações do desconhecido e a alteridade é aqui identificada com um fora ameaçador, por relação ao qual nos abrigamos53. Por sua vez, edificar faz-se do interior, mas longe de estar recolhido em si, um homem só está presente no seu espaço próprio, a partir do confronto e da ultrapassagem do espaço estranho: os átrios são o lugar onde “todas as regiões se articulam no êxtase de cada uma delas, de acordo com os ciclos tensionais do aqui e do ali, do próximo e do longínquo, do próprio e do estranho. Os átrios

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Para a noção de devir em Deleuze e Guattari, ver: Ibid., 284–380: «10. 1730. Devenir-intense, devenir-animal, devenir-imperceptible»; Gilles Deleuze e Félix Guattari, Kafka (Paris: Editions de Minuit, 1975).

51 Maldiney, Aîtres de la langue et demeures de la pensée, 8. 52

Ibid., 8.

53 No conto de Kafka, A Toupeira (Der Riesenmaulwurf), o pequeno bicho constrói

desmesuradamente um sistema de protecção contra o mundo do lado de fora, criando uma espécie de toca impermeável à vida, sem comunicação entre um interior e um exterior, sem comunicação com a sua “origem”, sem átrios. Ela acaba por enlouquecer. A perda de contacto com o mundo do sentir, com o pathos, obriga-a a um esforço de suposição que transforma a habitação num esquema meramente mental, armadura impossível.

são o marginal” 54.

A linguagem, enquanto sistema meramente instrumental, tende a perder a sua articulação com os seus átrios, onde acontecem os cruzamentos fecundos e as comunicações originárias, onde reside a possibilidade originária da articulação do heterogéneo e o poder da nomeação: gesto originário, sem o qual nenhuma língua tem lugar. O nome é o poder de articulação entre as coisas e a linguagem dos homens: “As palavras (que são primitivamente nomes) não comunicam entre elas num dizer senão ao nível desta lucidez primeira, toda poderosa, que abre a significabilidade do mundo e onde o nomear é o primeiro momento – que decide já sobre o sentido do ser que ele denomina”55. O nome é, então, a relação originária ao mundo, que precede toda a fixação estrutural da língua. Antes de ser significação, a língua é poder de articulação, uma articulação que é, paradoxalmente, tensão e unidade, esse momento decisivo de lucidez potencial56 da língua, para lá de todo o seu estado construído, como refere Maldiney, ou de um “nomear” (eipein)57 que precede todo o “dizer” (legein).

Maldiney58 retoma essa distinção fundamental, formulada no Crátilo59 de Platão, segundo a qual, “é nomeando que se diz”, estando o dizer (das coisas) sob condição de um nomear (do dizer) que o fundamenta. Diz Maldiney que, ainda que nomear e dizer comportem ambos um referente, ou seja, se refiram a qualquer coisa, nomear não é um acto simples: ele possui relativamente à língua uma importância no sentido primordial (de arké); podemos dizer dele aquilo que disse Hölderlin do acto poético – que ele é, ao mesmo tempo, o mais inocente e o mais perigoso de todos os actos. Todas as palavras são originariamente nomes e possuem, assim, uma função dupla: de nomeação e de denominação. Na sua função de denominação – no dizer – elas só comunicam entre si ao nível “dessa lucidez primeira e poderosa, que abre a significabilidade do mundo e onde o nomear é o primeiro momento – que decide já acerca do sentido do ser-aí que ele denomina”60.

54 Maldiney, Aîtres de la langue et demeures de la pensée, 8. 55 Ibid., 190.

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«O pensamento constrói a sua morada, ao sair de uma fase de turbulência primeira à qual sucede, no homem, até então incapaz de se reconhecer, esse momento decisivo a que Gustave Guillaume chama “lucidez potencial”, que nenhuma construção ulterior poderá tematizar integralmente num sistema de posições, pois esta potência está no fundamento de todas as outras». Ibid., 9.

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Encontramos nas formas nominal - Epos (palavra, história, poema) - e adjectival - épikos (épico) - os termos gregos que designam o poema épico.

58 Maldiney, Aîtres de la langue et demeures de la pensée, 190. 59

Crathylus, 387 c-d Plato, Plato: Complete Works, ed. John M. Cooper e D. S. Hutchinson (Hackett Publishing Co., 1997), 101–157.

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Proust exprime de forma aguda esta tensão entre aquilo que os nomes nomeiam e aquilo que eles denominam, mas também a identificação impossível entre estas duas dimensões:

Os Nomes, oferecendo-nos a imagem do incognoscível que vertemos neles, ao mesmo tempo em que designam também, para nós, um lugar real, nos forçam assim a identificar um ao outro, até ao ponto de partirmos em busca de uma alma, numa cidade que não a pode conter”.61

Este incognoscível que vertemos, de algum modo obscuro, em cada nome, representa a primeira operação de discernimento sobre um universo ainda indissoluvelmente sensível, abrindo um horizonte de sentido em que o pathico e o gnósico se interpenetram. Este terreno comum ao nomear e ao dizer, à palavra e à frase, não é redutível a uma identificação. Se há, no acto de nomeação, entrelaçamento ou união, há também diferenciação, constituindo os átrios esta espécie de dobra62, onde se dá a passagem do épos homérico, que se situa ao nível do originário da nomeação, ao dizer do discurso, ao logos. Já vimos como os Gregos teriam concebido uma estrita imanência entre a ordem e o caos – criando um plano formal que corta o caos à maneira de um plano. Se chamarmos logos a este momento formal, é evidente que não se trata aqui do logos enquanto razão, ou mundo racional. Este logos não é um simples conceito, mas funciona como um ponto cosmogenético, como o ponto cinzento de Paul Klee ou como o plano-crivo de Deleuze.