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I. Mundos Possíveis: a emergência da imagem

8. Potências do falso

A potência do falso é uma potência literal. No sentido comum, dizemos que algo é literal quando queremos referir-nos ao sentido próprio de uma palavra ou de uma expressão, sem remeter para um sentido que lhe seja exterior, como um sentido figurado ou metafórico, por exemplo. Deleuze desenvolve um conceito de literal que se afasta desta concepção comum, que tem em vista pôr em causa a distinção comum entre o sentido

141 Beckett (The Image, 1958), apud Gilles Deleuze, «L’Épuisé», em Quad et autres pièces pour la

télévision, por Samuel Beckett (Paris: Les Éditions de Minuit, 1992), 94.

142 Ibid. 143

próprio e o sentido figurado. Quando Jean-Luc Godard, respondendo a uma questão que lhe colocam sobre o uso excessivo do sangue em Weekend (1967), diz que não é sangue, é vermelho144, ele está a apelar para o conceito de literal, mas não é simplesmente no sentido em que pretende dizer que não é uma metáfora. O vermelho, enquanto dado material não se restringe, por sua vez a um sentido próprio, mas a uma qualidade expressiva potencial.

O literal não é então o próprio, diz-nos François Zourabichvili, afirmação que arrasta consigo uma crítica da noção de metáfora.

Existe uma maneira fundamentalista de tomar as metáforas: limitando-nos ao sentido próprio das palavras, pretender delimitar rigorosamente o domínio da retórica ou da poesia e aquele do discurso verdadeiro (sem se questionar se o discurso verdadeiro da ciência, por sua conta, não estará cheio de enunciados metafóricos - “programa genético”, etc. -; sem se questionar também se uma tal demarcação é possível)145.

François Zourabichvili viu no conceito de literalidade146 um conceito chave e transversal a toda a filosofia de Gilles Deleuze. Dizer que o literal não é o próprio envolve, necessariamente, na perspectiva de Zourabichvili, uma crítica da metáfora. Não se trata, em filosofia, de evitar o uso de metáforas ou o seu uso descontrolado, mas de questionar a pertinência do conceito de metáfora – será um bom conceito? Quer dizer, qual a sua função? A importância de um pensamento literal prende-se com a afirmação da imanência – do plano de imanência – afirmado por Deleuze e Guattari, um plano de imanência sobretudo espinosiano, mas também jamesiano, como veremos, no qual não existe nenhuma espécie de sistema dualista ou de plano transcendental que conceba o “dado puro” como um dado originário.147.

“Todas as imagens são literais e devem ser tomadas literalmente”, diz Deleuze, sendo que o conceito de literalidade, apesar de ter ainda qualquer coisa do uso literário e comum da noção de literalidade, como aquilo que está no texto e não fora dele, ultrapassa

144

Godard e Bergala, Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, 264.

145 F. Zourabichvili e A. Sauvagnargues, La littéralité et autres essais sur l’art, Lignes d’art (Paris:

Presses universitaires de France, 2011), 41.

146

Zourabichvili desenvolveu o conceito de literalidade em várias obras, nomeadamente: Zourabichvili e Sauvagnargues, La littéralité et autres essais sur l’art; François Zourabichvili, «La question de la littéralité», em Gilles Deleuze, une vie philosophique, ed. Eric Alliez (Paris: Synthélabo, 1998), 531– 44; Paola Marrati, François Zourabichvili, e Anne Sauvagnargues, La philosophie de Deleuze (Presses Universitaires de France - PUF, 2004).

147 São várias as referências ao conceito de literal/literalidade na obra de Gilles Deleuze,

relacionando-se, em grande medida, com a distinção fundamental entre os conceitos de possível e de virtual e com o conceito de devir. Algumas referências fundamentais: Deleuze, Différence et répétition, 235, 246, 257; Deleuze e Parnet, Dialogues; Deleuze e Guattari, Mille Plateaux, 245–46, 286–92; Deleuze, Critique et Clinique, 89 e segs; Deleuze, Cinéma 2. L’Image-temps, 32, 78.

em muito essa noção. A literalidade tem a ver com as próprias imagens: “quando uma imagem é plana, não se deve, nem mentalmente, restituir-lhe uma profundidade que a desfigurasse: é isto que é difícil, alcançar as imagens no seu dado imediato”148. E quando um cineasta diz: atenção, isto é só cinema, por exemplo, quando Godard afirma, em Vento de Leste (1970): “não é uma imagem justa, é apenas uma imagem” (“Ce n'est pas une image juste, c'est juste une image”), não se trata tanto de uma questão semântica como de uma ética que se deve compreender como um pensamento literal: interrogar a imagem, dar conta da imagem, trabalhá-la na superfície (e não profundamente, ou seja, enquanto significado). É também esta ideia que Benjamin exprime, no contexto do teatro de Brecht, relativamente à necessidade de pôr à prova o que se está a passar à frente dos nossos olhos”. A literalidade, enquanto encontro com a imagem que acontece diante dos nossos olhos, então, rompe necessariamente com o regime da imagem-acção. Vejamos de que maneira.

A distinção entre verosímil e verdadeiro, que encontramos na Poética de Aristóteles, é uma distinção que, ao mesmo tempo que instaura a autonomia da poesis face à história e à sua busca pela verdade, associa o acto poético a uma ética universal e necessária. Segundo Aristóteles, o historiador diz “as coisas que sucederam”, enquanto o poeta “as que poderiam suceder”149. A distinção entre o real e o possível - o real como categoria histórica e o possível como categoria poética – determina a distância radical entre o ponto de vista do poeta e o ponto de vista do historiador. A ficção, tal como a concebemos ainda hoje maioritariamente, herda de Aristóteles o facto de laborar no âmbito desse vasto domínio do possível. Apesar do campo do possível, categoria estética e toda a criação, a poética aristotélica define-se como um campo de possibilidades simbólicas que, não tendo em vista a verdade, tem a verdade como referente, a partir dos conceitos de verossimilhança e necessidade. Neste sentido, o possível apresenta-se como aquilo que pode ser imaginado, concebido ou esperado, a partir de um determinado ponto de referência: uma época histórica, uma consciência, enfim, um plano predeterminado a partir de um estado de coisas.

Deleuze e Guattari, desenvolveram uma outra concepção do possível, não como o conjunto de alternativas reais ou imaginárias (ou isto, ou aquilo), mas – no presente – enquanto emergência dinâmica de novo. Encontramos esta acepção de possível já em

148 Deleuze e Parnet, Dialogues, 134 sgs. 149

Bergson150, que distingue entre o possível enquanto ideal que pré-existe ao real do possível concebido no sentido positivo, enquanto potência de criação do novo. O possível, nesta acepção positiva, não se constitui de acordo com uma relação de decalque entre uma imagem predefinida e um real, mas enquanto experiência propriamente real, que implica afirmar a relação radical com aquilo que ainda não pensamos (expressão herdada de Heidegger). Trata-se de uma experiência de estranheza, no sentido que vimos em Chklovsky, por exemplo. Todo o pensamento político de Deleuze, eminentemente estético, reside nesta concepção do possível que envolve, num salto existencial, uma profunda transformação do real. Há então uma diferença de estatuto fundamental entre o possível que se realiza, a partir de um plano predefinido, e o possível que se cria: “E aqueles que pretendem transformar o real à imagem daquilo que já está previamente concebido não têm em vista a transformação em si mesma”151.

Deleuze definiu um regime da imagem cinematográfica a que chamou regime cristalino da imagem, no qual a narração é “falsificante” e fabuladora, distinguindo-o do regime orgânico da imagem. Sintetizemos os principais aspectos do regime cristalino da imagem, no que se refere à sua função narrativa. O regime cristalino da imagem distingue- se do regime orgânico da imagem em quatro pontos-chave, que dizem respeito, respectivamente: em primeiro lugar, às descrições; em segundo lugar, à relação entre o real e o imaginário; em terceiro lugar, à narração; e em quarto e último lugar, à noção de verdade. Analisemos estes quatro aspectos.

O primeiro aspecto tem a ver com as descrições. O regime orgânico envolve uma descrição, independente do seu objecto, ou seja, o objecto da descrição distingue-se da descrição que a câmara faz dele ou da forma como se descreve.

O regime cristalino, por sua vez, envolve uma descrição que não se distingue de qualquer objecto ou que o substitui, “que o cria e apaga ao mesmo tempo, como diz Robbe- Grillet”152 e no qual as descrições podem contradizer-se, sobrepor-se, deslocar-se, modificar as precedentes. Este primeiro aspecto implica uma dissolução da distinção entre um sujeito que representa um mundo e mundo representado, pois o que temos é uma descrição em que estes termos se misturam ou interpenetram, até dissolverem as suas

150 Henri Bergson, «Le possible et le réel (1930)», em La pensée et le mouvant: essais et conférences,

sem data, 56–65.

151 Zourabichvilli, «La question de la littéralité». 152

fronteiras. O segundo aspecto tem a ver com a relação entre o real e o imaginário e decorre do primeiro. No regime orgânico, o real é sempre reconhecível, independentemente das interrupções que possa envolver, através de inserções de imagens irreais, de sonho ou imaginárias. O estatuto das imagens orgânicas é sempre localizável, ou seja, mesmo se transitarmos do real para o imaginário ou para o sonho e depois novamente para o real, saberemos sempre dizer que há uma oposição entre dois estatutos de imagens. No regime cristalino, os dois estatutos da imagem tornam-se indiscerníveis: o real e o imaginário ou o real e o sonho não só deixam de se discernir, mas a necessidade da distinção entre real e imaginário não se faz sentir e não pode fazer-se sentir, pois apenas nesse pequeno circuito em que o estatuto das imagens e o seu papel se torna indiscernível é que o acontecimento da imagem poderá emergir. É a isto que Deleuze chamará uma imagem-cristal, uma coalescência e indiscernibilidade de uma imagem virtual e da sua imagem atual, mas coalescência e indiscernibilidade de duas imagens distintas – sem identificação entre as duas imagens.

O terceiro aspecto diz respeito à narração. A narração orgânica desenvolve-se a partir de “esquemas sensório-motores”, segundo os quais as personagens reagem a situações ou agem de forma a apresentar a situação”153. Trata-se sempre de uma acção – ou reacção – uma resposta a uma situação determinada, num espaço e num tempo localizáveis, definida essencialmente pela tensão de forças opostas e pela resolução dessas oposições num sentido único, de acordo com um princípio de economia (o caminho mais simples, a palavra mais eficaz, o menor meio para um máximo de efeito, etc.). A personagem da narração orgânica reconhece a situação e o espaço em que se encontra, tem um objectivo e confronta-se com os obstáculos necessários, no sentido de o alcançar. Na narração cristalina, o esquema sensório-motor desaba: as personagens não são capazes de reagir à situação154, ou porque não querem ou porque não podem, mas sobretudo, porque lhes é mais necessário ver o que há na situação dada do que superá-la. Não se trata, então, aqui, de um ver meramente orgânico. Por vezes, apenas a cegueira orgânica permite uma visão, como acontece ao Rei Édipo e em geral, na mitologia grega, aos profetas. A visão cristalina não é qualquer coisa que possibilita a acção, uma sua condição. A visão ocupa tudo, ocupa o lugar da acção, ocupa toda a imagem. Uma visão cristalina é necessariamente uma

153 Ibid., 167. 154

Deleuze desenvolve também esta ideia, da personagem que se torna vidente, na sua conferência em Gilles Deleuze, «Qu’est-ce que l’acte de création?», em Deux Régimes de Fous (Textes et Entretiens 1975-1995), [1987] (Paris: Les Éditions de Minuit, 2003), 291–302.

imagem fragmentária e descontínua – a única capaz de se adequar ao possível enquanto irrupção do novo – “tudo é possível”, abre-se um campo de criação a partir do qual tudo está por fazer. Um espaço fragmentado e desconectado, como o espaço de Pickpocket de Bresson, por exemplo, é um espaço onde não há coordenadas espácio-temporais nem referências de localização geográfica, porque o espaço em que se está não é orgânico e localizável, mas um espaço cristalino e absoluto, em vias de se criar.

O quarto aspecto tem a ver com a noção de verdade e é um aspecto que decorre de todos os outros, se bem que todos estes pontos se entrelacem de forma constitutiva. No regime orgânico, reina o primado da verdade, ou seja, parte-se de uma petição de verdade de base: a de que existe uma única verdade que nos salva (Deus, as Ideias platónicas, o real empírico ou a realidade objectiva...) e que se distingue do nosso conhecimento sobre ela, que é apenas uma representação que dela se faz. Deleuze sublinha sobretudo, no paradigma orgânico da verdade, o facto de ser uma verdade, uma unidade e uma identidade. O regime cristalino da imagem cria um modo de discurso que afecta a distinção entre o real e o imaginário, o sonho, o fantasma, ou as memórias, tornando-os indiscerníveis e pondo em causa a ficção, tomada como modelo de verdade preestabelecida, ou seja, como possível a realizar. A efabulação criadora ou potência do falso não tem a ver, então, com um uma potência do imaginário, dos sonhos ou das memórias de infância que se transponha para a ficção, para a literatura ou para o cinema. Imaginário é aliás uma noção “pouco determinada”, diz-nos Deleuze155. As poucas referências, na sua obra, ao conceito de

imaginário, produzem um estranhamento que parece propor um aprofundamento do problema que não poderá, no entanto, ser levado a cabo neste contexto. Observemos apenas que é provavelmente a ausência de determinação do termo imaginário, que permite uma bifurcação do seu sentido para duas acepções distintas, que encontramos em momentos diferentes da filosofia de Deleuze. Por um lado, em Lógica do Sentido156, bem como em

Cinema 2157 o imaginário está sob a égide da noção de cristal, definindo-se como “uma

imagem virtual que se junta ao objecto real e inversamente, para constituir um cristal de inconsciente”. Por outro, no artigo sobre o imaginário, Deleuze questiona o uso deste termo: “será o imaginário um bom conceito? O imaginário é a imagem cristal. Ela foi determinante para o cinema moderno (…). Não creio numa potência do imaginário, no

155

Gilles Deleuze, Pourparlers 1972-1990 (Paris: Minuit, 2003), 93–94.

156 Deleuze, Logique du sens. 157

sonho, no fantasma, etc”.158. Tal como o termo ‘possível’, o termo ‘imaginário’, não

chegando nunca a indicar um conceito específico, aponta para esses dois regimes diferentes da imagem do cinema – orgânico e cristalino. Mas ultrapassa-os: encontramo-los, por exemplo, na distinção do historiador de arte Worringer, entre “o regime orgânico ‘clássico’ e o regime inorgânico ou cristalino, não menos vital que o outro, mas de uma potente vida não orgânica, bárbara ou gótica”159. São dois estados do estilo e não se pode dizer que algum

deles seja mais verdadeiro que o outro, sobretudo porque apenas um deles – o regime orgânico – assenta num modelo de verdade.

158 Deleuze, Pourparlers 1972-1990, 94. 159