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II. Eu, um negro, de Jean Rouch

7. O Duplo como forma de deslocamento

Vimos como durante o ritual nocturno do filme Os Mestres loucos, as figuras profanas dos colonizadores ingleses, que se apropriaram de uma sociedade, são possuídas pelas forças sagradas dos Haoukas. Os filmes de Jean Rouch são sempre sobre este chamamento das forças e sobre o jogo ficcional (que pode assumir a forma de um ritual ou a forma de uma ficção) que este chamamento envolve.

Quando as personagens do ritual, possuídas, bêbedas, a espumar, em transe, são, primeiro, mostradas na sua realidade quotidiana, depois em transe e depois novamente no quotidiano – estamos numa passagem do plano profano para o plano sagrado, do quotidiano para o excepcional, do real para o simbólico, através do ritual de possessão que envolve um jogo teatral, de representação. Cada indivíduo é como que atravessado por um processo de subjectivação que consiste numa passagem ao seu duplo, que o faz transitar de um papel para outro, sendo neste transe, neste movimento de passagem, que consiste o ritual, com os

seus códigos, gestos e palavras, que medeiam o espaço entre os dois planos do sagrado e do profano. Eu, um negro, por sua vez, não é um filme sobre um ritual de possessão como Os Mestres Loucos, mas fundamenta-se, parece-nos, nestes mesmos princípios. Tomamos contacto com o fenómeno do duplo, logo desde o início do filme, o duplo Realizador- personagem e as suas trocas de papéis com uma sobreposição de vozes de narração. Rouch, o realizador e o protagonista, que “não diz o seu verdadeiro nome” (Porque não dirá ele o seu verdadeiro nome?). A duplicação ou o fenómeno do duplo segue vários afluentes no filme, desde a atribuição de uma personagem ficcional para cada um dos intervenientes do filme (Dorothy Lamour, a prostitutazinha, Lemmy Caution, o desempregado de Treichville...), até ao peculiar método inventado por Rouch, que referimos atrás, da pós- sonorização do filme. Duplicação, aqui, no sentido em que não se trata de um processo de criação de uma personagem consistente, verosímil, construída a partir de uma sincronia entre a representação teatral e a voz, mas antes, um processo que deixa ver a duplicação em curso propositadamente, tanto para nós, espectadores, quanto para eles, actores envolvidos eles mesmos nesse processo de subjectivação.

Há ainda um outro nível, que atravessa o dos indivíduos, digamos, e os processos respectivos de individuação ou subjectivação que rompem por todos os lados com um sujeito definido e unário. Um nível colectivo. Se no nível da subjectivação do indivíduo a duplicação oscila entre papéis e personagens diferentes, no nível colectivo, a duplicação oscila entre o real e o imaginário. No filme, podemos ver o que faziam aquelas pessoas em Treichville, o que elas comiam, como viviam, as suas condições de trabalho, os seus hábitos. Mas, num outro nível, o das palavras, ouvimos os actores-personagens falarem sobre o que eles gostariam de ser, a maneira como gostariam de viver, os seus sonhos. Não é a distinção entre dois níveis - o das imagens e o da palavra, o do real e o do imaginário ou do discurso subjectivo - que interessa particularmente, mas o que está entre os dois, o fenómeno de deslocamento que os mistura indiferenciadamente.

Paul Stoller fala-nos de uma característica importante da estrutura antropológica em que se apoiava a mitologia Songhay: o poder do deslocamento. Nos seus rituais, os Songhay falam dessa capacidade de ser levados pelo vento para lugares distantes, de se deslocarem. Os feiticeiros diziam ser capazes de se transformar em vultos, de viajar até gerações anteriores, descendentes e quando o faziam, geralmente traziam alguma espécie de

evidência para provar a verdade da sua viagem37. Deslocamento liga-se a uma duplicação. O povo Songhay, diz-nos Stoller, acreditava que o ser-humano consistia em três elementos: a carne (ga), a força vital (hundi) e o duplo (bia). A carne é o nosso elemento material, o corpo; a força vital situa-se no coração, desde que nascemos, e dissipa-se no momento da morte. O duplo é o nosso aspecto imaterial: vêmo-lo como um reflexo de nós mesmos na superfície da água ou num espelho. É o duplo que marca a individualidade do nosso ser, é ele que dita o tom das nossas personalidades, dos nossos gostos e desgostos, a qualidade da nossa expressão. O duplo é o nosso ser no mundo. O ser humano está como que enraizado na carne, mas o espírito, no entanto, existe como puro bia, uma sombra ou reflexo sem corpo.

Este poder de deslocamento aparece sobretudo ligado às palavras, mas também ao gesto. Também as vozes se duplicam, ainda num outro sentido. Por um lado, como já vimos, elas são em discurso directo e em discurso indirecto, ou seja, são o discurso falado contínuo das personagens, mas são também o discurso dessas mesmas personagens por cima do primeiro, feito mais tarde, em estúdio. Esta duplicação cria uma dimensão temporal singular da palavra, assente numa dialéctica entre dois tempos distintos. Por outro lado, as palavras são as palavras da personagem-narrador intradiegético e as palavras do narrador extradiegético. Esta diferenciação do lugar da voz narrativa, intra ou extra diegética, interior ou exterior ao universo diegético do filme, na verdade não se ajusta a uma análise deste filme, pois a voz das personagens é intra e é extra diegética. Essa distinção é fortemente perturbada, ou desaparece, como tantas outras neste filme. É por isso que o vocabulário classicamente utilizado na análise de filmes falha quando falamos deste filme. Mas na verdade não nos faz falta. Como definir as palavras do comentário de Rouch? Elas não são explicativas, já vimos, elas não interpretam a acção nem as imagens. Na verdade, também elas constituem-se como um duplo das imagens, pois o narrador não traduz, não cria um discurso dominante, mas um outro discurso, um reflexo, uma espécie de outro lado das imagens. O mesmo que acontece com as palavras das personagens, como duplos das

37 Stoller conta a bizarra história (bizarra, para nós) de um seu professor Songhay, que dizia ter

‘viajado’ até uma antiga casa sua, em Washington. Mas como? Pelo que Stoller conhecia, ele só tinha viajado um pouco pelo Burkina Faso quando era jovem, e nunca tinha ido à Europa nem à América do Norte. Mesmo assim, ele fez-lhe uma descrição estranhamente exacta da sua sala, da cor e dos padrões das suas carpetes turcas, da forma e da textura da sua mesa de café, de vários objectos particulares, enfim, como se tivesse visitado a sua casa. Esta arte do deslocamento e a espécie de projecção nela inscrita, surge numa vertente mais surreal, na última parte de Madame l’Eau (Jean Rouch, 1993) com o Paul Éluard e a música sedutora de um alaúde de três cordas. Stoller, The Cinematic Griot.

imagens de si próprios.