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A estética é também uma ética. Ethos, em grego, não quer apenas dizer maneira de ser, mas morada. A arte possibilita ao homem um espaço onde ter lugar e um tempo onde se está presente: uma morada, a partir da qual comunicamos com as coisas, com os outros, connosco próprios. Se o primeiro momento da arte é o estar perdido, o segundo momento é o da construção de uma casa.

O conceito de ritornelo, criado por Deleuze e Guattari, tal como o drama do ponto cinzento, exprime um esquema de criação originário. É necessário, dizem Deleuze e Guattari, que o artista crie os processos e materiais sintéticos ou plásticos necessários a uma tão grande empresa que recria por todo o lado os pântanos primitivos da vida”. O ritornelo é constituído por três momentos - momentos de uma evolução, mas que podem existir em simultâneo, cruzar-se ou sobrepor-se, na construção de um ser-de-sensação. São os três momentos do ritornelo ou do ritmo: ora é o caos que é um imenso buraco negro - e esforçamo-nos por fixar um ponto frágil como centro, ou se organiza à volta do ponto um “andamento” estável – um andamento, referem Deleuze e Guattari, mais do que uma forma -, ora se abre uma fissura para uma fuga a esse andamento, lançada para fora. Vejamos os três momentos:

Primeiro momento:

Uma criança, no escuro, fisgada pelo medo, conforta-se cantarolando. Anda e pára ao ritmo da sua cantiga. Perdida, abriga-se como pode ou orienta-se melhor ou pior com a sua cantiga. Esta é o esboço de um centro estável e calmo, estabilizando e acalmando, no seio do caos37.

A pequena canção é uma forma de se posicionar face ao medo e à instabilidade

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provocados pela proximidade do caos. Trata-se de uma forma de conforto, uma aproximação a um abrigo – o “esboço de um centro estável e calmo”.

Segundo momento:

Agora, pelo contrário, estamos em casa. Mas a casa não pré-existe: foi necessário traçar um círculo à volta do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. Muitas componentes muito variadas intervêm, referências e marcas de todos os tipos. Já era verdade no caso anterior. Mas agora são componentes para a organização de um espaço e já não para a determinação momentânea de um centro38.

A arte começa com a casa. Como dizem ainda Deleuze e Guattari, noutro lugar: “a arte apanha um pedaço de caos num enquadramento, para formar um caos composto que se torna sensível, ou de que retira uma sensação caóide enquanto variedade”39. Constrói-se a casa, num primeiro momento, com a linha, que emerge, criando a dimensionalidade no mundo. Michaux exprime esta emergência nas suas linhas ainda balbuciantes, mas também nas suas palavras: “Também a mim, um dia, tarde, adulto, me deu uma vontade de desenhar, de participar no mundo através de linhas. Uma linha, mais do que linhas”40. E, logo depois, o desenho, a construção. É por isso que a arquitectura é a primeira das artes – a primeira arte do enquadramento. Trata-se de enquadrar, de criar uma série de planos e de os encaixar uns nos outros. São as conexões entre os enquadramentos que permitem que uma figura – composto de sensação ou a obra de arte se mantenha. Neste momento – o momento da composição – há toda uma actividade de selecção, de eliminação, de extracção, para que as forças íntimas terrestres não sejam completamente submersas e consigam extrair ainda do caos – através do espaço traçado ou do crivo lançado – forças de germinação. Estamos no momento da composição, é o momento decisivo em que se trata de “colocar aí tudo e no entanto saturar”41 – é efectivamente aqui que se vai criar uma obra ou não – ou seja, criar um ser-de-sensação, um composto de afectos e de perceptos, capaz de manter-se em si e por si, capaz de durar, nem que seja uma obra de arte efémera. Do ponto de vista da filosofia, este é o momento da criação de conceitos. Configura-se a casa ou a armadura, como lhes chamam Deleuze e Guattari, a partir da criação dos conceitos e sua composição.

Finalmente agora entreabrimos o círculo, abrimo-lo, deixamos entrar alguém, chamamos alguém, ou então vamos nós mesmo lá fora, lançamo-nos. Não abrimos o círculo do lado em que se

38 Ibid., 382. 39

Deleuze e Guattari, Qu’est-ce que la Philosophie?, 194.

40 Michaux, Henri Michaux: emergences-resurgences, 8. 41

pressentem as antigas forças do caos, mas numa outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se sobre um futuro, em função das forças em obra que ele abriga. E desta vez será para alcançar as forças do futuro, forças cósmicas. Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação42.

Criado o espaço – o círculo ou o enquadramento – abrimos uma porta ou uma janela – uma fuga – num movimento para o exterior, pois o perigo de ficar fixado ao território e a si mesmo é grande, como exprimia continuamente Henri Michaux. Contra o sedentarismo da casa, deixamos entrar alguém ou então lançamo-nos para alcançar as forças do futuro. Se o enquadramento ou a margem de um quadro é o envelope exterior de uma série de enquadramentos ou de planos que se juntam, operando contrapontos de linhas e de cores e determinando a obra, esse enquadramento é atravessado também por um poder de desenquadramento que o abre para um plano de composição ou um campo de forças infinito.

Assim, por mais extensível que seja a construção do composto de sensação, com as suas diversas faces – planos ou enquadramentos e conexões entre enquadramentos – é necessário esse plano de composição mais vasto, imanente a esta composição da casa ou do território. Apenas em contacto com as forças cósmicas do plano de composição se podem criar novos afectos e novos perceptos.

O desenquadramento vai operar entre a multiplicidade de planos, nos intervalos entre os planos e já não na sua ligação ou colagem, criando aberturas, fissuras, buracos que abrem o território ao cosmos: desterritorialização, como lhe chamam Deleuze e Guattari, ou “operação deslocamento”, como lhe chamou Henri Michaux43:

No princípio: insularidade. Depois, uma certa tensão. Uma tensão crescente. Uma tensão que não acaba. Nascente necessidade de expansão. Primeiro problema: onde encontrar o terreno para a expansão? (papel, pedra, argila, tela, cena). Encontrar o seu terreno, o terreno para o exercício de uma vida, de uma outra vida em instância, de uma nova vida a realizar, hic et nunc, uma vida que não estava lá antes. Encontrado o terreno, vem a operação deslocamento. Não para confundir. Não pela procura de sublimação, nem de degradação, nem tampouco por compensação, mas pelo deslocamento essencial. A única, somente ela, operação necessária. Para poder interessar-se verdadeiramente por uma vida actualizada. Um autor não é um copista, ele é aquele que, primeiro que os outros, viu, encontrou o meio de desbloquear o que estava encalhado, de se desfazer de uma situação inaceitável44.

42

Deleuze e Guattari, Mille Plateaux, 382–383.

43 Michaux, Henri Michaux: emergences-resurgences, 19–20. 44

O artista é esse vidente, que encontrou uma forma de desbloquear o que estava a impedir a passagem do fluxo vida. Os bloqueios são sempre bloqueios territoriais, de identidade, de fechamento. E a vida é uma viagem que nunca acaba, tendo o poder de manter o indivíduo à distância de si mesmo. A desterritorialização é um momento-chave deste processo. Pois ela é o movimento pelo qual se deixa o território – a operação da linha de fuga. Podem apresentar-se vários casos de desterritorialização: ela “pode ser recoberta por uma reterritorialização que a compense, se bem que a linha de fuga permaneça impedida: dizemos, neste caso que a desterritorialização é negativa”. Outro caso é “quando ela se apresenta como positiva, ou seja, se afirma através das reterritorializações cujo papel é meramente secundário”45.

O movimento é, então, sempre de territorialização e desterritorialização, de recolhimento-expansão-recolhimento. Se a arte começa com a casa ou com o território, não se trata aqui, pelo menos do ponto de vista primitivo ou originário – que é o que nos interessa agora - de um movimento de determinação de uma propriedade relativa a um sujeito, grupo, etc., mas, antes de mais, este movimento é expressivo: exprime uma necessidade vital, de expansão ou de expressão. No campo da etologia e da biologia animal, encontramos esses exemplos belíssimos em que a função do acasalamento, por exemplo, se exprime com cores e formas exuberantes46, ou os padrões formados pelos bandos de pássaros ou cardumes, para se defenderem de espécies suas predadoras. Ou o canto dos pássaros. Deleuze e Guattari dizem-nos, na verdade, que a arte talvez comece com o animal – com o animal que traça um território e faz uma casa. E dão-nos o exemplo de um pássaro artista:

“O Scenopoietes dentirostris, pássaro das florestas pluviosas da Austrália, faz cair das árvores, folhas que ele corta, todas as manhãs, vira-as ao contrário para que a face interna mais clara da folha contraste com a terra, construindo-se assim uma cena, como um ready-made, e canta, lá em cima, sobre uma liana ou um ramo, um canto complexo, composto das suas próprias notas e daquelas de outros pássaros, que ele imita nos

45 Deleuze e Guattari, Mille Plateaux, 634.

46 É comum o macho de várias espécies apresentar traços particulares ligados a uma função

reprodutora: as belíssimas cores de várias espécies de pássaros e as suas penas exuberantes, por exemplo, as camuflagens de vários peixes, iguanas e toda a espécie de répteis. Os exemplos nunca mais acabam. Todas as espécies de ursos que vivem na floresta, por exemplo, marcam o seu território urinando e esfregando-se em certas árvores que determinam o perímetro territorial, sendo que em alguns casos, as árvores (por exemplo no caso dos ursos-pardos, que são ursos muito fortes) se apresentam tombadas ou com os ramos partidos e é possível compreender o território de um urso macho, a partir do desenho criado pelo abatimento de certas árvores.

intervalos, ao mesmo tempo que exibe a raiz amarela das suas penas, por baixo do bico: é um artista completo”47.

“Há território quando há expressividade do ritmo”48, ou seja, é a emergência de matérias de expressão, das qualidades expressivas, que vai definir o território. O argumento, alicerçado numa explicação etológica, é o de que é a marca expressiva – as cores dos pássaros e dos peixes, o odor particular, por exemplo, da urina, como excremento de marcação territorial, no caso dos gatos, os órgãos sexuais coloridos dos macacos, etc. – que faz território. É evidente que as características expressivas – por exemplo, a cor – são funções e reenviam a estados interiores biológicos (hormonais, etc.). Mas, segundo Konrad Lorenz49, a cor permanece funcional e transitória enquanto permanecer ligada a acções: sexualidade, agressividade, fuga, etc. e só se torna expressiva quando adquire uma permanência no tempo e um significado que fazem dela uma marca territorializante ou uma assinatura. Se a cor – enquanto traço expressivo – tem, no seio de um território, funções precisas, o que Deleuze e Guattari sublinham é que a organização e reorganização dessas funções implica, antes de mais nada, que essas qualidades se tenham tornado expressivas, ao marcar um território. Isto significa que a marcação de um território não será de ordem funcional, da ordem das acções (apesar das funções e as acções serem produtos da territorialização), mas de ordem expressiva.

A génese da arte está ligada a um devir, um “devir-animal”, no sentido em que se estabelece uma situação em que é possível aceder à arte pela criação de um território, à maneira do pássaro artista australiano. Nesta cena, o pássaro mostra-nos tudo o que é necessário para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos. São ritornelos motores, gestuais, ópticos, sonoros, etc. É neste contexto que, no seu sentido mais geral, se chama ritornelo a todo o agenciamento que, enquanto conjunto de matérias de expressão, traça um território e se desenvolve em motivos territoriais. Chamar arte a este devir é, antes de mais, situar os processos próprios ao habitat de um território, como fundamento expressivo da criação artística, efectuando todo um trabalho de extracção de sensações e de fixação destas sensações num material. Este será então o elo que liga o animal e o artista: levar os meios de expressão da arte e do artista aos seus limites, constituindo o devir-animal uma aproximação a estes limites (há outros, segundo Deleuze e Guattari, não menos

47

Deleuze e Guattari, Qu’est-ce que la Philosophie?, 174.

48 Deleuze e Guattari, Mille Plateaux, 387. 49

fundamentais: devir-intenso, devir-imperceptível, devir-vegetal50, entre os devires não humanos do homem que permitem inventar novas potências de vida).