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II. Eu, um negro, de Jean Rouch

4. O acto de palavra ou o poder da palavra que levita

Todos os filmes de Rouch são marcados pelo seu comentário, com excepção dos filmes etno-ficcionais, como Jaguar e Eu, um Negro, em que o comentário é partilhado com as personagens. Em A Caça ao Leão com Arco, a palavra é levada a cabo por Rouch, num comentário que penetra a imagem, que parece escorregar por todo o lado, imanente às acções e às palavras do ritual, mas também à nossa própria emoção. No início do filme, Rouch, contador de histórias, no papel do griot visual, dirige esta história às crianças para lhes transmitir a sua própria tradição, colocando-nos na atmosfera do conto, da aventura e do sonho. Do sonho que persegue o desejo de mostrar o mais irreal através da realidade das imagens, num equilíbrio instável que se situa nas fronteiras do imaginário. A palavra, tal como em Eu, um Negro, está entre, levita entre os acontecimentos ou é ela mesma o acontecimento.

As palavras podem alterar comportamentos? Podem curar, mutilar ou matar?24 Para os Songhay a palavra tem poderes, é palavra mágica. Jean Rouch levanta o problema do poder da palavra, questiona a sua dimensão meramente linguística, reconhecendo-lhe poderes arcaicos, encantatórios, mas também criando, com o cinema, a possibilidade de inventar novas formas de acção ou novos poderes das palavras. São as palavras sagradas que protegem os caçadores de A caça ao leão com arco, por exemplo, da grande floresta e

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J.L. Godard, «L’Afrique vos parle des fins et des moyens [1959]», em Jean-Luc Godard par Jean- Luc Godard, Cahiers du cinéma (Paris: Cahiers du cinéma, 1985), 182.

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dos grandes perigos. Qual é a relação entre a palavra e a acção? Walter Ong (apud Stoller, 1992) diz-nos que nas sociedades de tradição oral, não letradas, as palavras são vistas como poderes. Elas estão ligadas à acção. Acredita-se nesse poder das palavras produzirem determinados efeitos, tal como as armas ou outras ferramentas podem produzir. Este poder das palavras tem a ver com a natureza do som, é o som que carrega os poderes e é pelo som que elas se ligam às acções. Os Songhay acreditam que as palavras do encantamento do veneno devem ser recitadas quando a seta alcança o seu alvo, para que o som das palavras entre no leão ferido tão profundamente como as setas, espalhando o veneno pelo seu corpo. Tal como outros elementos da tradição da caça, as palavras sagradas passam de pais para filhos.

A palavra tem poderes mágicos. Rouch quer transportar a palavra mágica dos rituais para a sua ficção. Ela age sobre a acção, não no sentido de a interpretar, de lhe dar uma explicação, uma moral, mas no sentido de a transformar. Esta é a palavra-acção de Rouch, acto de palavra, como lhe chamou Deleuze.

É pelo jogo, pela brincadeira, que se transporta a palavra mágica para a esfera da efabulação. O devir leão em A caça ao Leão com arco, o devir-personagens coloniais de Os Mestres Loucos ou o devir actores de cinema dos filmes de série b americanos em Eu, um Negro, envolve, em todos estes filmes e apesar das diferenças, um processo de efabulação semelhante, no sentido em que se trata sempre de pôr um povo menor a fabular, envolvendo este gesto, uma particular ligação entre o sagrado e o profano, uma profanação, para usar um termo de Agamben, que é essencial ao acto de fabulação.

Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou que faz dela um uso particular, que possibilita a passagem do sagrado ao profano através de um novo uso do sagrado, que para Agamben, reside no jogo. Agamben refere como a maior parte dos jogos que conhecemos se ligam a antigas cerimónias sacras, que pertenciam à esfera religiosa. “Brincar à roda era originalmente um ritual matrimonial, jogar à bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares, o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação”. E Benveniste, segundo Agamben, só mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas que, de alguma forma, representa a sua inversão, no sentido em que a potência do acto sagrado reside na conjunção do mito que narra a história com o ritual que a reproduz e a põe em cena. O jogo, como ludos ou jogo de acção, vai quebrar esta unidade, fazendo desaparecer o mito em proveito do ritual. Mas como jocus, ou jogo de

palavras, ele cancela o ritual e deixa sobreviver o mito. Diz Benveniste: “Se o sagrado pode ser definido através da unidade consubstancial entre o mito e o rito, poderíamos dizer que há jogo, quando apenas metade da operação sagrada é realizada, traduzindo só o mito em palavras e só o rito em acções”. Isto significa que o jogo liberta e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem o abolir simplesmente – transmutando-o. Assim, a profanação do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, por exemplo, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras actividades que estamos acostumados a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos. Passa-se “de uma religio. que já é percebida como falsa ou opressora, para a negligência como vera religio. E essa não significa descuido (nenhuma atenção resiste ao confronto com a da criança que brinca), mas uma nova dimensão do uso que crianças e filósofos conferem à humanidade”25.

De facto, parece-nos bastante evidente haver no cinema de Rouch uma transformação operada ao nível do sagrado e do profano que envolve qualquer coisa como a profanação de que nos fala Agamben. Seguramente que Rouch inventa um jogo que, por um lado, salvaguarda o sagrado da tradição, ao mesmo tempo que a transmuta, dando-lhe um novo sentido, nomeadamente, através da imagem e da criação deste jogo lúdico de invenção ou improvisação das palavras face à acção.

Voltando a Eu, um Negro. O filme não é gravado em som síncrono26. Rouch inventa uma nova forma: ele leva os actores, ao mesmo tempo que se vêem no ecrã, no momento da montagem, a pós-sonorizarem as suas acções ou, antes, as acções das suas personagens e as imagens que foram registadas. Rouch era uma espécie de moderador do jogo ou de encenador que recitava esporadicamente alguns comentários.

O resultado é um procedimento único, que não tem nada a ver com aquilo que conhecemos hoje como voz-off, mas a que chamamos voz-off por falta de termo (ainda hoje). No vocabulário técnico do cinema, voz-off é uma voz diegética, que integra a acção (a narrativa ou comentário de um personagem, por exemplo; distingue-se da voz-over (voice-over) porque esta é extra-diegética, sobrepõe-se às imagens como uma voz exterior,

25

Agamben e Assmann, Profanações [Profanazioni, 2005], 67.

26 Esta técnica já tinha sido utilizada em Jaguar (1967), filme com o mesmo tipo de estrutura e tema

“divina”27. Aqui, trata-se de um desdobramento da voz. Melhor será falarmos de uma duplicação da voz, vamos perceber porquê. Perante a projecção do filme e sua pós- sonorização, as personagens-actores revivem (ou representam?) sinceramente e com autenticidade as acções passadas (serão passadas?). E, apesar das aparências, não se trata apenas de uma técnica – que nos faz completamente esquecer a ausência de som síncrono, compensando-o por um jogo engraçado – é mais do que isso. Há um reforço da acção – ela é duplicada, representada uma outra vez, agora sob a forma de um comentário. É como se a acção renascesse. Dois nascimentos, então: primeiro, o da imagem, depois, o da palavra. Mas um não existe sem o outro. Porque a imagem deseja a palavra e a palavra, duplicando ou reflectindo a imagem, faz emergir a acção ou a imagem, num outro nível – imaginário, mas ao mesmo tempo, sem sair do real. A palavra é este acontecimento intermédio que, na verdade, se revela ela mesma uma imagem, como a palavra mágica dos rituais.

Do ponto de vista da etnologia era algo completamente novo e interdito, do ponto de vista do cinema, era a nova vaga da nova vaga, do ponto de vista da antropologia era uma antropologia vivida, não particularmente científica e não objectiva, no sentido clássico do termo.