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O que é um signo? Aquilo que força o pensamento a pensar. “Não se sabe nunca de que maneira alguém aprende; mas, seja qual for a maneira como se aprende, é sempre por intermédio dos signos, perdendo o seu tempo, e não pela assimilação de conteúdos objectivos”83. Neste sentido, para Gilles Deleuze, o signo84 é aquilo que escapa à representação, que o pensamento não pensa, o impensado. O encontro com o signo é aquilo que confronta o pensamento com um limite, uma estranheza que vem de fora e que urge pensar.

Proust et les signes é a obra em que Deleuze se ocupa mais directamente do problema dos signos. Mas nela, o contexto da filosofia da linguagem e o campo da semiologia não são tomados em linha de conta. O trabalho de Deleuze, a partir da obra de Proust, não é uma teoria sobre signos e está longe da semiologia. É um trabalho de investigação, de procura, de decifração, que envolve uma classificação de tipos de signos. E é justamente esta procura que Deleuze sublinha na obra de Proust, À la Recherche du temps perdu: “Por um lado, a Procura não é apenas um esforço de lembrança, uma exploração da memória: procura deve ser tomada no sentido forte, como ‘procura da verdade’”85. A aprendizagem sobre os signos não é um processo que pretenda defini-los propriamente, mas saber como nos relacionamos com eles, na nossa vida, como é que os descobrimos, como é que os usamos e, acima de tudo, de que forma é que eles nos afectam. A abordagem deleuziana dos signos está imbuída de um espinosismo essencial: os signos afectam-nos, eles são, antes de mais nada, potências de afecto. Como é que nos

82 Ibid., 83. 83

Gilles Deleuze, Proust et les Signes, [1964] (Paris: PUF, 1971), 23.

84 O conceito de signo, no pensamento de Gilles Deleuze tem um significado diametralemente oposto

ao signo para Walter Benjamin, aproximando-se mais da esfera do nome, apontando para uma revelação do sentido, da qual só nos podemos aproximar através de uma decifração que envolve uma classificação dos signos.

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relacionamos com esta potência? E de onde é que ela vem? É a questão de Proust, em Du Côté de chez Swann: “De onde poderia ter-me vindo esta potente felicidade? Sentia que ela estava ligada ao sabor do bolo e do chá, mas que o ultrapassava infinitamente, não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? O que significava? Onde apreendê-la?” 86 Se há nesta experiência, por um lado, uma afecção de ordem sensorial, há também outra coisa, que ultrapassa infinitamente a nossa compreensão desta mesma experiência e que coloca o pensamento face a uma urgência de decifração do seu sentido. Segundo Deleuze, para Espinosa, o signo é sempre um efeito, efeito de um corpo noutro, no sentido em que um corpo é afectado por outro corpo. Mas o efeito, sob o atributo da extensão, é inseparável do efeito sob o atributo do pensamento:

Um signo, segundo Espinosa, pode ter vários sentidos, mas é sempre um efeito. Um efeito é, antes de mais nada, o traço de um corpo noutro, o estado de um corpo enquanto sofre a acção de um outro corpo: é uma affectio, por exemplo, o efeito do sol sobre o nosso corpo (…).

Por outro lado,

o calor do sol preenche-me, ou a sua queimadura repudia-me. A afecção não é então apenas o efeito instantâneo de um corpo sobre o meu, ela tem também um efeito sobre a minha própria duração, prazer ou dor, alegria ou tristeza87.

Segundo Deleuze, então, os signos, enquanto efeitos, comportam, por um lado, uma afecção corporal, numa determinada extensão e, por outro, um afecto mental, ao nível do pensamento. Eles devem ser compreendidos como variações contínuas de potência, que passam de um estado a outro, numa espécie de tradução (Deleuze chama a este fenómeno transcodificação ou transemiotização) contínua: são passagens, devires. “Chamamos-lhes afectos propriamente ditos e já não afecções. São signos de crescimento e de decréscimo, signos vectoriais”88.

Aprender, experimentar, pensar, é uma constante decifração de signos. Mas o que é, de facto, relevante na relação entre signo e pensamento, como se compreende no último capítulo da obra de Deleuze sobre Proust, é o carácter involuntário da procura pela verdade: “O leitmotiv do Tempo encontrado é a palavra forçar: as impressões que nos forçam a olhar, os encontros que nos forçam a interpretar, as expressões que nos forçam a pensar”89.

86 Proust, A la recherche du temps perdu, volume 1, 57.

87 Gilles Deleuze, «Spinoza et les trois “Éthiques”», em Critique et Clinique (Paris: Minuit, 1993),

173.

88 Ibid. 89

Os signos são, então, essas forças heterogéneas que guiam o pensamento, na sua relação com o seu fora essencial, forçando o pensamento a um duplo movimento que não deixa de ser paradoxal, como Deleuze refere, a partir de Michel Foucault: “um pensamento que vem de um fora mais distante que todo o mundo exterior, mas mais próximo que todo o mundo interior” 90. Encontramos esta ideia expressa já em Diferença e Repetição, segundo a qual a aprendizagem não se estabelece numa relação entre a representação e a acção (como uma reprodução do mesmo), mas sim entre o signo e a resposta ao signo, como encontro com o outro, ou seja, o heterogéneo. O signo pode compreender esta heterogeneidade de três maneiras distintas:

Em primeiro lugar, no objecto que o suporta ou emite e que apresenta necessariamente uma diferença de nível, como duas ordens de grandeza ou de realidades diferentes, entre as quais o signo fulgura; por outro lado, em si mesmo, pois o signo envolve um outro ‘objecto’ nos limites do objecto que o suporta e incarna uma diferença de natureza ou de espírito (Ideia); finalmente, na resposta que ele solicita, sendo que o movimento da resposta não se ‘assemelha’ ao do signo. O movimento do nadador não se assemelha ao movimento da onda; e, precisamente, os movimentos do professor de natação que nós reproduzimos na areia não são nada por relação aos movimentos da onda, a que só aprendemos a fazer face, alcançando-os na prática, como signos91.

Seja inata ou adquirida, na aprendizagem, há uma familiaridade com os signos, que faz com que todo processo de aprendizagem e toda a educação, segundo Deleuze, sejam algo de essencialmente amoroso. É por isso que os nossos mestres não são aqueles que dizem “faz como eu”, mas aqueles que nos dizem “faz comigo”. Fazer com o outro envolve – não a reprodução de um gesto – mas o encontro com um gesto heterogéneo que se trata de desenvolver. Não há nem semelhança nem identificação com o outro, mas constituição de um espaço de encontro, de onde pode surgir o sentido.

O sentido ou o acontecimento constitui, relativamente às proposições, o seu expresso (exprimé), totalmente distinto daquilo que elas significam, daquilo que elas manifestam e daquilo que elas designam92.

A linguagem enquanto sistema de proposições não existiria sem a fronteira que a separa das coisas e dos corpos e que a torna possível. Esta fronteira constitui-se como uma linha recta, que ao mesmo tempo separa e articula essas duas séries distintas que se podem desenvolver: um lado da linha está virado para os estados de coisas e os corpos, suas

90

Gilles Deleuze, Foucault (Paris: Editions de Minuit, 2004), 125.

91 Gilles Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression (Paris: Editions de Minuit, 1968), 35. 92

paixões, num movimento labiríntico direccional; o outro lado da linha virado para as proposições. A fronteira é constituída pelos acontecimentos puros – ou o expresso na sua independência - que fundam a linguagem ou a expressão, ou seja, diz Deleuze, fundam “a propriedade metafísica, adquirida pelos sons, de ter um sentido, e, secundariamente, de significar”. O sentido é então primário por relação à significação e a sua operação mais fundamental e mais geral é a de, ao mesmo tempo, fazer existir aquilo que exprime e – insistindo – fazer-se existir, enquanto acontecimento puro, naquilo que exprime. Podemos caracterizar a estrutura do acontecimento como paradoxal, dupla e diferencial. A sua natureza é paradoxal, pois ele é, ao mesmo tempo, aquilo que, na linguagem, se distingue da proposição e, no mundo, se distingue dos estados de coisas. É também dupla, no sentido em que é tem duas faces, uma virtual e uma actual: a virtual diz respeito à esfera do problema, enquanto a actual se refere à esfera da solução, sendo que estas esferas não são autónomas: Nenhum problema se esgota nas proposições que o exprimem, como não se esgota nas suas soluções93. Isto significa que o sentido ou o expresso do problema não se confunde nunca com a sua expressão proposicional ou resolubilidade. Há uma irredutibilidade essencial, entre o problema e as proposições que o exprimem e, no entanto, ele não pode existir fora delas. É porque não há coincidência, como já vimos, entre o sentido e a sua significação, que esta espécie de excesso de sentido se verificará sempre, e que insiste, persiste e subsiste em planar por cima das significações. É por isso que não dizemos nunca, com Deleuze: ‘o sentido é’, pois ele é essencialmente um ‘extra-ser’. É finalmente uma estrutura diferencial no sentido em que diferencia entre as coisas e as significações: o acontecimento está envolvido, por um lado numa teoria dos signos, enquanto sistema de classificações - sem ele, a significação enquanto efectuação de um estado de coisas não seria possível; por outro lado, ele envolve um fora radical – um impensado – que é o elemento que institui, no pensamento deleuziano, toda uma teoria do devir, numa ética de contra-efectuação94.