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I. Mundos Possíveis: a emergência da imagem

7. Esgotar o possível: ‘Film’, de Samuel Beckett

Film134, de Beckett, toma como ponto de partida a antiga fórmula de Berkeley, Esse est percipi – ser é ser percebido. O filme apresenta uma experiência sobre a percepção no cinema e sobre o esgotamento do possível, e é a partir dele que Deleuze 135 definirá de forma esquemática as três variedades da imagem-movimento. Beckett propõe um exercício de apagamento do centro de indeterminação de Bergson ou da consciência das imagens, ou seja, procura aceder a esse primeiro regime da imagem, enquanto puro movimento

133 Gould, «Advice to a graduation - Delivered at the Royal Conservatory of Music, University of

Toronto».

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Film (1969) é uma curta-metragem norte-americana de 1965, realizada por Alan Schneider e com argumento de Samuel Beckett.

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descentrado. A sua proposta, que antecede o argumento de Film, começa então pelas seguintes linhas:

“Esse est percepi. É suprimida toda a percepção estranha, animal, humana, divina, mantendo-se, no ser, a auto-percepção. Procura do não ser em fuga pela percepção estranha, emergindo inesperadamente na inescapabilidade da autopercepção”136.

Se Esse est percipi, se ser é ser percebido, trata-se em Film (1965) de escapar ao percipi da imagem, e portando às três variedades da imagem-movimento (ou talvez apenas a duas, veremos). A questão formulada em Film é: será possível escapar à percepção, à felicidade do “percipere e do percipi, se é dito que, enquanto vivermos, pelo menos uma percepção subsistirá sempre, a mais temível, a percepção de si por si? Como tornar-se imperceptível? Beckett elabora então um sistema de convenções cinematográficas para formular este problema.

Film é uma espécie de filme de perseguição peculiar, que rompe com todas as regras do filme de perseguição. O, interpretado por Buster Keaton, é perseguido por alguém ou por algo que não nos é dado ver imediatamente. Vejamos os três momentos do filme. “O”, parece fugir, com passos rápidos, trémulos e movimentos ansiosos, num eixo horizontal, sempre ao longo de uma parede. Há um momento em que vai contra um casal de meia idade que o olha com apreensão e espanto. Segue depois por um eixo vertical, umas escadas, mas sempre encostado à parede. Quando ouve os passos de uma senhora com um vaso de flores que desce a escada, O imediatamente se esconde no vão da escada.

Segundo Deleuze trata-se aqui de uma imagem-acção ou de uma percepção de acção, pois a personagem age. Esta imagem está submetida à seguinte convenção: a câmara (OE) só filmará O de costas, de um ângulo que nunca ultrapasse os quarenta e cinco graus. Quando a câmara ultrapassa este ângulo a acção sofre um bloqueio, é suspensa, a personagem pára, tapa o rosto com a mão. No segundo momento, a personagem entra num quarto, e como já não tem a parede para proteger um dos seus lados, a câmara redobra o ângulo de imunidade, ou seja, não pode ultrapassar o ângulo de quarenta e cinco graus, de cada lado. O percebe o quarto subjectivamente: os quadros, as coisas e os bichos que lá estão, enquanto a câmara percebe-os objectivamente O, o quarto, os quadros, as coisas e os bichos que lá estão. Trata-se aqui de uma percepção de percepção, ou seja, ou seja, a imagem-percepção é considerada sob um duplo sistema de referência. A câmara continua

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a cumprir a condição de não ultrapassar o ângulo de imunidade, mas O, por sua conta, terá de expulsar todos os animais do quarto e tapar os outros (peixes, papagaio), tapar todos os quadros, janelas, enfim, tudo o que possa devolver um olhar, servindo de espelho, de tal maneira que a percepção subjectiva se vai apagando, restando apenas a percepção objectiva OE.

O senta-se numa cadeira de baloiço, pega numas fotografias que parecem fotografias de família, eventualmente de si quando criança, com a sua mãe, e outras em que o vemos em adulto, folheia-as e rasga-as. Finalmente O fecha os olhos, e recosta-se na cadeira de baloiço, esgotado. Mas o perigo está à espreita. Com a extinção do ponto de vista subjectivo, a câmara libertou-se da restrição do ângulo de imunidade. Com precaução ela avança pelo domínio dos duzentos e setenta graus restantes, em direcção a O. Aproxima-se, mas O ainda contem uma réstia de percepção subjectiva e ela recolhe-se. Quando O adormece, ela avança novamente e aproveitando-se do seu torpor, consegue finalmente confrontá-lo de frente. Vemos finalmente O, de frente, ele tem uma pala num olho – a sua visão é monocular. Finalmente a câmara revela-se e vemos que ela é o duplo de O, o mesmo rosto, o mesmo olho tapado. A única diferença entre os dois é a expressão: uma expressão angustiada no caso de O e uma expressão atenta no caso de OE. No momento em que O vê OE, o seu rosto está como que espantado, mas é uma espécie de espanto de vazio. Estamos aqui no domínio da percepção da afecção, a mais assustadora, aquela que subsiste quando todas as outras se extinguem: a auto percepção, que subsiste no ser a todas as percepções desconhecidas, animais ou humanas.

À imagem-percepção corresponde um ponto de vista subjectivo, à imagem acção, o ponto de vista da câmara, e à imagem-afecção uma espécie de ambivalência ou de intervalo entre estes dois pontos de vista: objectivo e subjectivo. Bergson define o afecto como “uma tendência motora sobre um nervo sensível” e Deleuze reformula: “uma série de micro- movimentos sobre uma placa nervosa imobilizada”137.

A imagem-afecção é aquela que resiste quando os extremos se apagam (percepção e acção, sujeito e objecto), que resiste ao apagamento da estrutura do possível, abrindo para uma outra dimensão, em que O, tal como Robinson na sua ilha, se confronta com um mundo que estava escondido pelo domínio da relação sujeito-objecto. Ela resiste, mas sobretudo ela faz emergir outra coisa, é que ela deixa de ser aquilo que relaciona, pela suspensão, uma

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percepção e uma acção, deixando emergir outra relação, de outra natureza: a do centro de indeterminação com o seu Fora, que se exprime no duplo. Ela faz emergir o mundo antes do homem ou o mundo bergsoniano das imagens-matéria-movimento, o plano de imanência. Film remonta à imagem-movimento mãe, como diz Deleuze. E apesar de Deleuze se referir ao cinema experimental como seguindo uma certa tendência importante que é a de recriar este plano acentrado das imagens-movimento puras, na verdade é isto precisamente que caracterizará o regime da imagem-tempo, de que falaremos mais adiante, ainda que não seja para nele se instalar.

A postura sentada de O, em Film, é a postura sentada, que é uma postura que, segundo Agamben138, se constitui como a cifra do esgotamento de toda a acção possível, a postura do esgotado que conseguiu desalojar o ser da sua demora na possibilidade.

O que significa, então, sentar-se? Aqui a linguagem vem de modo providente em socorro ao pensamento. Nas línguas indo-europeias o estar sentado é associado à ideia de inoperosidade, de suspensão de toda atividade. Do latim sedeo derivam assim desidia e desidiosus, que significam a inércia, o estar sentado sem fazer nada, e sedare, que significa fazer cessar, pôr fim a uma ocupação ou a um movimento139.

O estudo é uma figura do esgotado. O estudo já esgotou o possível, pois é em si mesmo interminável e inesgotável. Como o estudante, em Kafka ou em Melville, sempre sentado numa mesa, com a cabeça entre as mãos. “Quem estuda não pretende concluir nada. Como o talmudista (talmud significa “estudo”) comenta e retoma as prescrições da Tora até as tornar inaplicáveis, também o estudioso retoma e esmiúça as suas possibilidades de pesquisa uma atrás da outra infinitamente.

Deleuze fala do mundo de Beckett e das suas personagens como um mundo em que se dá um esgotamento do possível, mas o esgotamento não é um simples cansaço. A questão do texto de Deleuze é: como se esgota uma possibilidade, o que é uma possibilidade esgotada? Pensar uma possibilidade esgotada não remete para uma possibilidade que tenha sido inteiramente realizada, em acto, e da qual já não reste nada. Esta é a condição do cansado, aquele que se abandona estirado na sua prostração140. A possibilidade esgotada não precede o acto para se esgotar, ela supera o acto e dura para lá do acto. No cansaço ainda existe possível, mesmo se se estiver tão cansado que não se consiga realizar mais

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Giorgio Agamben, «Posture», em L’esausto (Roma: Nottetempo, 2015).

139 Ibid. 140

nada. Mas o esgotado não tem possibilidades. Se esgotar o possível é, por um lado, desfazer a imagem, enquanto construção de um modelo de percepção assente na estrutura do possível, será também, como diz Beckett a dada altura, fazer a imagem. Encontramos neste texto de Deleuze sobre Beckett, a duplicidade da imagem ou essas duas acepções da imagem no sentido de Bergson: a imagem que se desfaz é a imagem enquanto representação, a imagem que se faz é essa emergência, que força o impensado.

As imagens de que nos fala o texto emergem segundo um kairos ou um momento oportuno, “no momento em que elas rompem o processo”. Que processo? Diz-nos Deleuze que ela, a imagem, capta todo o possível para o fazer saltar e que quando dizemos: “fiz a imagem”141 quer dizer que desta vez acabou, que já não há possível. Dizer que já não há possível significa aqui dizer que a imagem se descolou do seu objecto, para ser ela mesma um processo, ou seja, um acontecimento como possível, que não tem de se realizar num corpo nem num objecto. Um sorriso sem boca assustador, em Beckett, um sorriso sem gato, em Lewis Carrol. “É precisamente isto a imagem: não uma representação de um objecto, mas um movimento no mundo do espírito. A imagem é a vida espiritual, a vida lá em cima de Molloy”142. Não é fácil fazer uma imagem. É um duro processo de hesitação, “quando pensava nela..., Não Não, não é isto...”, de queda, pois ela só se pode descrever a cair, de obscura tensão espiritual, trespassada por uma intenção segunda ou terceira como diziam os autores da idade média, trespassada por uma evocação silenciosa e ambígua, que é ao mesmo tempo uma invocação e mesmo uma convocação e uma revogação, ao erguer as coisas ou as pessoas ao estado de indefinido: uma mulher 143.