• Nenhum resultado encontrado

Foi numa conferência, em 1967, O Método de Dramatização, mas também na sua obra Diferença e Repetição (1968), que Deleuze propôs o método de dramatização como método para o exercício do pensamento.

Não é certo que a questão o que é? seja uma boa questão para descobrir a essência ou a Ideia. Talvez as questões do tipo: quem? quanto? como? onde? quando? sejam melhores, tanto para descobrir a essência, como para determinar qualquer coisa de mais importante no que diz respeito à Ideia114 Deleuze considera que o privilégio da questão O que é? O que é o belo, por exemplo, se revela confuso e duvidoso, mesmo no platonismo e na tradição platónica, sendo que naquilo que ele vê como uma dialéctica, nas suas palavras, séria e positiva, em Platão, ela ganha na realidade outras formas: “quem”, no Político, “quanto” no Filebo, “onde” e “quando” no Sofista, “em que caso”, no Parménides. A ideia só é positivamente determinável em função de uma tipologia e de uma topologia, de uma posologia e de uma casuística transcendentais. Neste sentido, a concepção da ideia deleuziana deve à ideia platónica uma parte essencial da sua formulação115

Deleuze define a Ideia como multiplicidade interna: uma estrutura que se encarna em termos reais (virtuais) e em termos actuais (num estado de coisas). Estrutura e génese

112 Ibid., 21. 113

Maria Filomena Molder, «Método é desvio: uma experiência do limiar», em Limiares e Passagens em Walter Benjamin (Editora UFMG, Belo Horizonte, 2010), 27–75.

114 Deleuze, L’île déserte. Textes et entretiens 1953-1974, 131.

115 «Se considerar o Platão da última dialéctica, onde as Ideias são um pouco como multiplicidades

que devem ser percorridas pelas questões Como? Quanto? Em que caso? então sim, tudo o que eu digo me parece... platónico. Se se trata, pelo contrário, de um Platão partidário de uma simplicidade da essência ou de uma ipseidade da Ideia, então, não.», em Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado (Lisboa: Relógio D’Água, 2000), 316–17. Deleuze está aqui a referir-se a uma distinção habitual entre uma primeira dialéctica, mais noemática e aporética e uma segunda dialéctica mais discursiva, mais presente nos diálogos tardios de Platão.

da ideia estão implicadas: “o que se chama estrutura, sistema de relações e de elementos diferenciais, é igualmente, do ponto de vista genético, sentido, em função das relações e dos termos actuais em que ela se encarna”116 A ideia é um acontecimento sentido117 que se opõe ao plano da representação, em que o sujeito determina o seu objecto, estabelecendo uma conformidade entre este último e o seu conceito que, enquanto essência, se baseia num princípio de identidade e de analogia por semelhança. Na representação, o conceito realiza- se como possibilidade determinada por um sujeito. Ora, Ideia privilegia características completamente diferentes que nada têm a ver com esta acepção de possibilidade: a virtualidade da ideia, enquanto multiplicidade, não suporta qualquer tipo de dependência relativamente a uma identidade nem no sujeito, nem no objecto, por isso mesmo é que os acontecimentos e as singularidades que constituem a ideia não deixam que subsista essa definição da essência como “aquilo que a coisa é”. A Ideia é uma multiplicidade problemática e o problema, enquanto estrutura ideal, encontra-se do lado dos acontecimentos, dos afectos e dos perceptos, dos acidentes e das diferenças e não, como quis o racionalismo, do lado do Uno ou da essência. Ela é uma estrutura virtual, constituída por relações diferenciais que devem actualizar-se no espaço e no tempo, por correlações diversas, de modo que os seus elementos se encarnem actualmente em formas variadas.

Em Diferença e Repetição, é dito que o virtual possui uma realidade plena enquanto virtual, não se opondo, portanto, ao real, mas apenas ao actual. Qualquer objecto considerado como real tem uma parte constituinte virtual. O virtual está indissociavelmente ligado a uma multiplicidade ideal: as Ideias são multiplicidades definidas e contínuas, com n dimensões. Deleuze estabelece três condições fundamentais, que permitem definir a emergência de uma ideia. Em primeiro lugar, os elementos que constituem a multiplicidade não devem ter qualquer forma sensível ou significação conceptual. Estes elementos estão indissoluvelmente ligados a um potencial ou a uma virtualidade, e não têm existência actual. A sua indeterminação – pois não implicam qualquer identidade prévia – é aquilo que torna possível a diferença livre de qualquer determinação. Em segundo lugar, torna-se necessário que estes elementos da multiplicidade sejam determinados de uma maneira intrínseca. Esta determinação estabelece-se por uma série de relações diferenciais ou de

116 Gilles Deleuze, Différence et répétition, 3.a ed., [1968] (Paris: Presses Universitaires de France,

1976), 247.

117

Deleuze identifica, na sua apresentação da Ideia em Diferença e Repetição, estes dois conceitos – o de sentido e o de acontecimento - que por vezes assumem uma autonomia, nomeadamente em Lógica do Sentido, sem nunca deixarem, no entanto, de ser imanentes um ao outro.

ligações ideais recíprocas entre os elementos, de tal forma que não deixam subsistir aí qualquer independência. Por outro lado, as relações estabelecidas não são localizáveis, não só porque caracterizam a multiplicidade na sua globalidade, Deleuze descreve um duplo processo de diferenciação da Ideia (différen t/c iation). Chama-se différentiation à determinação do conteúdo virtual da Ideia e différenciation à actualização dessa virtualidade em espécies e partes distintas, sempre por relação a um problema e a condições de problemas diferenciados, operando uma diferenciação das espécies e das partes, que corresponde aos casos de solução do problema. Diz Deleuze:

“Por exemplo, a Ideia de cor é, como a luz branca que perplica em si os elementos e relações genéticas de todas as cores, mas que se actualiza nas cores diversas e nos seus respectivos espaços; ou a Ideia de som, como o ruído branco. Há mesmo uma sociedade branca, uma linguagem branca (aquela que, na sua virtualidade, contem todos os fonemas e relações destinadas a actualizarem-se nas línguas diversas e nas partes relevantes de uma mesma língua”118.

Parece que esta realidade branca é, então, a própria realidade das coisas, a potência do pensamento, da vida, da arte. Ou seja, parece que ela constitui a própria vida das coisas. Quando Deleuze diz, em Diferença e Repetição, que se deve evitar, ao mesmo tempo, atribuir uma actualidade aos elementos e às relações que formam a estrutura da realidade do virtual e retirar a realidade que eles têm, vemos como a noção do virtual, enquanto realidade, é determinante. É que o virtual é uma estrutura completamente determinada e definida. Neste sentido, quando a obra mergulha numa virtualidade – essa virtualidade branca – não há aí qualquer determinação confusa, mas uma estrutura completamente determinada, formada pelos seus elementos diferenciais genéticos. Deste modo, aquelas sensações confusas de Cézanne, que trazemos desde nascença, podem ser encaradas com outros olhos, reforçando a ideia de que não se trata, numa perspectiva deleuziana, de um pedaço de puro caos, nem de uma indeterminação, mas de um caos já estruturado pela realidade virtual da ideia.

Sendo a ideia uma estrutura problemática que encerra em si um duplo processo de diferenciação, importa perceber que é esta sua estrutura paradoxal que força o pensamento a pensar. De facto, parece que a filosofia começou por essa forma curiosa que nunca mais abandonaria: o paradoxo. O paradoxo é essa zona do impensável que força a pensar. O

118

diálogo socrático, por exemplo, não é uma conversa qualquer, mas um diálogo em que, a determinado momento, surge um paradoxo. Este paradoxo designa uma certa potência ou uma certa impotência.

Mas o que é o paradoxo? Tomamos o paradoxo, diz Deleuze, como: "há qualquer coisa que existe" e, ao mesmo tempo, qualquer coisa que não podemos pensar. X existe, mas X é impensável119. Em termos técnicos o paradoxo é uma proposição que consiste em colocar a impensabilidade de um ente120. O paradoxo não deve ser confundido com a contradição.

A força dos paradoxos reside em que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir à génese da contradição. O princípio da contradição aplica-se ao real e ao possível, mas não ao impossível do qual deriva, isto é, aos paradoxos ou antes ao que representam os paradoxos.121

À opinião e ao bom senso, Deleuze contrapõe os paradoxos de sentido, que são essencialmente a subdivisão até ao infinito (sempre passado-futuro e nunca presente) e a distribuição nómada, que se reparte num espaço aberto e não fechado. O que caracteriza os paradoxos é o facto de tenderem para dois sentidos ao mesmo tempo, tornando impossível uma identificação, passado de um para outro. Em que sentido, em que sentido? Pergunta Alice. A pergunta não tem resposta porque é próprio do sentido não ter direcção, não ter um “bom sentido”, mas sempre as duas ao mesmo tempo...122

Podemos definir o paradoxo como a paixão do pensamento. O paradoxo como paixão descobre que não podemos separar duas direcções, que não podemos instaurar um sentido único, é a descoberta de Alice.

Vimos como os encontros que forçam a pensar são da ordem do afecto, de uma violência que ocorre ao pensamento, que o força a desejar ir para lá dos seus limites. Estes encontros põem em causa aquele que os sente e o sujeito que pensa, pelo que é ‘isso que

119

Gilles Deleuze, aula sobre Espinoza de 12/02/80 - Transcrição de Christina Rosky (parte 2). «La voix de Gilles Deleuze», acedido 12 de Julho de 2016, http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/ article.php3?id_article=91.

120

Por exemplo, o paradoxo de Zenão de Eleia (que é considerado o inventor da dialéctica). Diz Zenão que Aquiles não pode alcançar a tartaruga ou que a flecha não pode alcançar o alvo. A razão desta impossibilidade é o facto de se dividir constantemente o percurso de Aquiles e da flecha em dois, e depois novamente em dois, etc., havendo indefinidamente uma distância, por mais pequena que seja, entre a flecha e o alvo, entre Aquiles e a tartaruga. A ideia que está aqui em causa é uma ideia impensável. O que Zenão tenta mostrar é que o movimento é impensável. Não é que o movimento, enquanto movimento "não seja", como alguns comentadores querem fazer crer, diz Deleuze, mas que o movimento, enquanto movimento é impensável, ou seja, uma ideia paradoxal (para o desenvolvimento desta ideia, ver a aula de Deleuze citada)

121 Deleuze, Logique du sens, 92. 122

afecta’, e não qualquer sujeito pensante, que é condição sem a qual não haverá pensamento. No Banquete, no discurso de Diotima que citámos, eros fugia ao mesmo tempo do belo (do amante) e do entendimento, do entendimento por temor e do amante por angústia. De facto, é importante compreendermos como eros se apresenta como um ente paradoxal. Devemos ter em conta que o conceito antigo de eros, que se reflecte amplamente no discurso de Agatão, no Banquete, ligando-se àquilo a que chamamos “enamoramento” ou paixão, designa sobretudo uma força ou um poder violento que vem de fora, que arrebata sem que se possa resistir, tomando posse de quem o sente. Importa sublinhar duas coisas sobre o carácter de eros: por um lado, ele apresenta-se como qualquer coisa como uma intensidade ou um encantamento que vem de fora. Por outro, que eros não é tanto o desejo ou a atracção que alguém sente, mas isso que vem de fora e que se encontra, ou que vem ao nosso encontro e se nos impõe. Eros é, não tanto um estado psicológico, mas algo como uma energia ou uma intensidade cuja morada é uma morada em trânsito e a estrutura é uma estrutura oxímora e em tensão123, que está sempre entre dois movimentos ou dois sentidos. Enquanto desejo, a identidade de eros constitui-se, ao mesmo tempo, por uma falta que o determina como impotente, mas que ao mesmo tempo desencadeia o seu movimento para fora, de perseguição do seu objecto de desejo. Ou seja, aquilo que eros é, a sua identidade, implica algo de radicalmente outro. Ele habita ‘dois’, duas direcções inseparáveis. É preciso ser dois para ser louco, somos sempre loucos a dois, ambos se tornaram loucos no dia em que “massacraram o tempo”, isto é, destruíram a medida, suprimiram as paragens e os repousos que referem a qualidade a alguma coisa de fixo”.

123 Sobre a estrutura paradoxal de eros ver Mário Jorge de Carvalho, «Do belo como constituinte do