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II. Eu, um negro, de Jean Rouch

5. Antropologia partilhada, câmara dançante, cine-transe

Peter Loizos escreve sobre o comentário em voice-over de Rouch em Os Mestres Loucos: “O comentário encantatório de Rouch sobre a acção aumenta o seu drama de tirar o fôlego, mas explicando muito pouco”28. Rouch, por sua vez, sobre este mesmo comentário, diz:

Olhava para as imagens e falava. Tinha, curiosamente, a impressão (...) de repetir, de ter repetido até à perda da minha própria pessoa, e de estar, de certa maneira, possuído por uma outra personagem, um conferencista de locomotivas. E efectivamente este desdobramento singular, eu reencontrava-o quando via o filme no grande ecrã (...), quando me ouvia a falar com aquela voz singular (a voz destimbrada de Éluard ou de Jean Louis Barrault quando liam poesia surrealista no Teatro dos Campos Elíseos, em 1937)

Para Rouch, esta era a primeira experiência daquilo a que chamou, mais tarde,

27 Sobre a distinção entre voice-over e voz-off, ver: Michel Chion, La voix au cinéma (Paris: Cahiers

du cinéma, 1982).

28 P. Loizos, Innovation in Ethnographic Film: From Innocence to Self-consciousness, 1955-85

inspirando-se em Dziga Vertov, o cine-transe29, no qual, filmar era um pouco como a pintura surrealista: a utilização dos processos de reprodução mais reais, os mais fotográficos, mas ao serviço do irreal, da apresentação de elementos irracionais.

Esta ligação do seu cinema com o surrealismo é recorrente nas palavras de Jean Rouch. O cine-transe: tem que ver com uma comunicação afectiva que alcança o espectador, um comentário que evita o excesso de informação e não teme o lirismo, realizando um contacto mágico com uma experiência do sagrado que se torna uma projecção de qualquer coisa atemporal, como sonhavam os surrealistas30. Os filmes de Rouch, ao mesmo tempo que alcançavam o transe, participavam activamente nos rituais primitivos, ideia que seria interessante desenvolver, remetendo para a ideia de crueldade do cinema de Rouch31, mas não caberá aqui desenvolver.

Compreendemos então o afastamento do cinema de Rouch relativamente aos cânones do cinema etnográfico. Podemos esquematizar as principais características do cinema etnológico, no tempo em que Rouch realiza os seus filmes:

Tratava-se de um cinema que, por causa do seu objecto, se definia invariavelmente como “ocidental”, quer dizer, envolvido, independentemente da ideologia política dos etnólogos, numa espécie de código profissional que os impedia de tomar em consideração os efeitos do colonialismo, centrando-se constantemente na mesma problemática – entre a preocupação com ‘o ser científico’ e o ‘ser objectivo’, levando a uma espécie de pseudo neutralidade da constatação. Finalmente, era um cinema que propondo-se alcançar a realidade, o mais possível, “tal como ela era”, procurava uma espécie de “origem” da humanidade, acabando sempre, devido à radical alteridade do seu objecto, por cair nas ficções mais fantásticas, como também, por se envolver numa espécie de exotismo, muitas das vezes racista.

Se no híbrido Eu, um negro, nem documentário, nem ficção, as personagens inventam sem a menor encenação, a partir dos seus comentários às imagens, o que acontece

29 Rouch, «La Caméra et les Hommes».

30 Ideia desenvolvida em: René Prédal, «La Place du Surréalisme», em Jean Rouch, ou, Le ciné-

plaisir, ed. René Prédal, vol. 81 (Condé-sur-Noireau: Corlet : Télérama, 1996), 56–59; Henri Angel, Art et Celebration, de Flaherthy à Rouch (Cerf. Coll.7a art, 1987).

31 Sobre a crueldade em Artaud: Antonin Artaud, O teatro e o seu duplo [1938], trad. Fiama Hasse

Pais Brandão, 2006; Sobre a aproximação entre a crueldade no cinema de Jean Rouch e o conceito de crueldade de Artaud: Réda Bensmaia, «Un cinéma de la cruauté», em Jean Rouch, ou, Le ciné-plaisir, ed. R. Prédal, vol. 81, Cinémaction : revue trimestrielle (Condé-sur-Noireau: Corlet, 1996), 59–69; Paul Stoller, «Artaud, Rouch, and The Cinema of Cruelty», Visual Antropologie Review, Setembro de 1992.

é romper-se com a dramatização da narrativa, criando, uma espécie de campo de abertura do comportamento, a partir do momento em que se dá a palavra às imagens, sem no entanto as sobrecarregar de qualquer mensagem conclusiva.

A técnica de Eu, um negro era, como diz Rouch, cine-montar no momento da rodagem, ou seja, prevendo a montagem e adoptando e elaborando a verdade cinematográfica, directamente a partir do acontecimento. Neste sentido, opõe-se, de alguma forma à montagem de Eisenstein, teoria elaborada a partir de um cinema de ficção, que não pode ser aplicada sem tirar nem pôr ao cinema documental.

Para Rouch, como nos diz em A Câmara e os Homens32, a técnica da câmara à mão era particularmente eficaz pois permitia adaptar-se à acção em função do espaço, ou seja, penetrar na realidade, em vez de ser um mero observador do real. Muitos realizadores da antropologia visual preferiam utilizar o tripé, compensando a imobilidade do aparelho pela utilização de objectivas focais de zoom variável, o que permitia um efeito de travelling óptico33. Mas a ideia de Rouch era inversa: “é preciso reconhecer que essas aproximações e recuos ópticos não aproximam a câmara dos homens filmados, mas que ela permanece à distância e que o olho-zoom se assemelha mais àquele de um viajante que observa, com detalhe, do alto do seu poleiro longínquo”. A câmara deve ser participativa, abolindo o mais possível a distância relativamente à realidade objectiva, participando no real de forma activa. Para Rouch a única forma de filmar era andar com a câmara de um lado para o outro, conduzindo-a onde ela fosse mais eficaz, improvisando com ela uma espécie de ballet, em que a câmara se tornasse tão viva como os homens que filmava. Rouch pretende criar uma espécie de síntese entre as teorias de Vertov do cine-olho e a experiência da câmara participativa de Flaherty. Ele procura uma câmara que improvisa, como o toureiro perante o touro: “aqui, como lá, nada é dado antecipadamente, e a suavidade de uma faena não é senão a harmonia de um travelling executado a andar, em perfeita adequação com os movimentos dos homens filmados”34. A comparação de Rouch entre o movimento desta

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Rouch, «La Caméra et les Hommes», 44.

33 Margaret Mead, por exemplo, uma importante antropóloga e cineasta americana, pioneira da

antropologia visual, fazia questão em utilizar o tripé, fixando-o num ponto estável, de modo a alcançar o mais possível o real «tal como ele é», deixando a câmara filmar durante horas, um método que tinha como objectivo preservar o real, evitando os efeitos da presença do pesquisador no campo. Gregory Bateson, de quem era colega e com quem se casou, tinha aversão a este método e dizia-lhe que, com esse método, nada de relevante se encontraria no real. In: Gregory Bateson e Margaret Mead, «On the use of the camera in Anthropology», em The Anthropology of Media: A Reader, ed. R.R. Wilk e K.M. Askew, Wiley Blackwell Readers in Anthropology (Wiley, 2002), 41–47.

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câmara dançante e a faena, essa terceira etapa de uma corrida de touros, essa fase em que o matador irá matar o touro, não deve ser elidida. Há sempre uma espécie de combate amoroso, mas também de morte, entre a câmara e o real. É sempre uma questão de treino, de domínio do corpo que só uma ginástica adequada permite adquirir. Assim, em vez de utilizar o zoom, o realizador-operador de câmara penetra realmente no seu sujeito, precede ou segue o dançarino, o padre ou o artesão, ele já não é ele mesmo mas um “olho mecânico” ou acompanhado de um ouvido electrónico”. É a este estado bizarro de transformação da pessoa do cineasta que Rouch chamou, em analogia com os fenómenos de possessão, o cine-transe.

Realizador-operador de câmara do cinema directo é o seu primeiro espectador no visor da câmara. Toda a improvisação gestual (movimentos, enquadramentos, durações de planos) visa finalmente a montagem no momento da rodagem (montagem na rodagem) – era já esta a concepção de Vertov, em ABC dos Kinoks: “O cine-olho é: eu monto logo que eu escolho o meu tema (entre os milhares de temas possíveis). Eu monto quando eu observo (filmo) o meu tema (realizar a escolha útil entre mil observações possíveis)”35. Este trabalho do cineasta sobre o terreno é o que caracteriza para Rouch o método do cineasta- etnógrafo que, em vez de elaborar a redação das suas notas à volta do terreno, deve tentar uma síntese no próprio momento da observação, ou seja, conduzir a sua narrativa fílmica ao mesmo tempo que observa, face ao acontecimento. “Já não se trata aqui de découpage previamente escrita, nem de câmaras que fixam uma ordem de sequências, mas de um outro jogo, arriscado, em que cada tomada é determinada pela tomada precedente e determina a seguinte”36.