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II. Pierrot, le fou, de Jean-Luc Godard

6. Um cineasta acrobata

A fórmula “o filme que pensa” é uma das muitas, talvez a mais radical, que Godard inventou, sobre as ligações entre o filme e o pensamento. Por vezes Godard substitui “filme” por “forma”, “no cinema é a forma que pensa” – diz Godard – “no mau cinema é o pensamento que forma”20. “Com Édouard Manet começa a pintura moderna. Ou seja, o cinematógrafo. Ou as formas que caminham em direcção à palavra. Mais exactamente, uma forma que pensa”21. Se com Manet começa o cinematógrafo, Godard é um dos seus seguidores. São estas formas que caminham para a palavra que Pierrot le fou procura vislumbrar no seu estado mais puro, ou seja, a fazer-se. São elas as conexões entre os objectos, o ar à volta dos objectos de que fala Élie Faure22.

Ferdinand-Pierrot é um homem dividido, entre o pensamento contemplativo da bela forma orgânica, ordenada e enquadrada, as convenções sociais, as regras gramaticais e todo

18 Jean-François Lyotard, Discours, Figure (Paris: Editions Klincksieck, 1971).

19 Jean-Luc Godard, «109: Let’s talk about Pierrot», em Godard on Godard: Critical Writings by

Jean-Luc Godard, A Da Capo paperback (New York and London: Da Capo Press, 1972), 215–34.

20 Alain Bergala, «Une Boucle bouclée», em Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, Cahiers du

cinéma, tome 2 (Paris: Cahiers du cinéma, 1998).

21 Citação do filme “Histoire(s) du Cinéma”, de Jean-Luc Godard, Capítulo 3(a), 1998: “La monnaie

de l'absolu”.

22 Élie Faurre exprime esta ideia, comparando, por um lado o pensamento-mítico grego, a

cosmogonia de criação judaico-cristã, com a pintura e com o cinema – o cinema aparece como forma contemporânea que cumpre uma função cosmogónica, mas com a estranha particularidade – o milagre, como se lhe refere Faure - de presentificar este movimento de formação. Em: Élie Faure, «Vocation du cinéma», em Fonction du cinéma. De la cinéplastique à son destin social, 1937, 87–115.

um sistema de códigos que tende sempre para o fechamento e Pierrot, um ser em fuga, que rompe com este sistema, se apaixona, foge com a sua amante, vive o labirinto a dançar, de forma dionisíaca. É esta duplicidade de Ferdinand-Pierrot, uma existência de ser de fronteira que caracteriza o seu pensamento fértil. Como ele diz, depois de resumir a Marianne o conto William Wilson, de Edgar Allan Poe: “Estamos na época dos homens duplos. Já não precisamos de espelho para falarmos sozinhos”. Ferdinand é uma espécie de acrobata, de o filósofo-artista. Da acrobacia do pensamento falaram-nos Godard e Valéry: Apesar do acrobata experimentar o equilíbrio mais instável, fazemos um voto. E este voto é estranhamente duplo e nulo. Desejamos que ele caia e desejamos que ele se aguente. E este voto é necessário; não podemos deixar de o formular, com toda a consideração e sinceridade. Pois, nesse instante, ele pinta ingenuamente a nossa alma. Ela sente que o homem cairá, deve cair, vai cair. E nisto, consuma a sua queda e defende-se da sua emoção, desejando aquilo que prevê. Por ela, ele já caiu. Ela não crê no que vê, o seu olhar não o seguiria na corda, não o puxaria mais para baixo, se ele não tivesse já caído. Mas vê que ele ainda se aguenta e deve consentir que haja razões que fazem com que ele se aguente, suplicando-lhes que durem23.

Instalar-se entre o terreno da filosofia e um terreno de não-filosofia, entre arte e não- arte, é isto que fazem o filósofo-acrobata, o escritor-acrobata ou o artista-acrobata, segundo Deleuze e Guattari. Trata-se de delimitar essa zona impensável, conceptualmente impensável e afectivamente impensável – o seio de um problema - e instalar-se nela, não para encontrar nesse lugar as suas oposições ou conflitos resolúveis, mas para ver, nele, paradoxos. O paradoxo é, na filosofia de Deleuze e Guattari um conceito operativo fulcral da teoria das ideias: a manifestação da filosofia não é o bom senso, mas o paradoxo, ele é “o pathos ou a paixão da filosofia”24. Não se trata aqui de um certo uso do pensamento ou de um simples jogo do pensamento, mas da sua estrutura genética elementar no momento em que ele é afectado pelo real. Digamos que a estrutura vital do pensamento é paradoxal e esta estrutura exprime-se efectivamente quando o pensamento se confronta com essa tarefa primeira, essencial que é – não a de conhecer nem a de descrever, mas – de pensar aquilo que não pode ser pensado, o “inefável” em si, o “impensável” no pensamento. Joga- se aqui a grande divisão kantiana entre conhecimento e pensamento, entre juízos cognitivos e ideias. Estamos aqui no plano da ideia. O elemento de erupção do pensamento, a sua forma resplandecente e produtiva forma-se ou torna-se detectável quando o pensamento adquire a paixão ou a estrutura paradoxal suficiente para pensar aquilo que não pode ser

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Paul Valéry, «Autres Rhumbs», em Tel Quel II, vol. Œuvres, II, Bibliothèque de la Pléiade, [1943] (Gallimard, 1960), 695; citado por Godard, Histoire(s) du cinéma, sec. Episódio 4 A: Le contrôle de l’univers.

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senão pensado. Não se trata de produzir conhecimentos, mas sentido e conceitos. Ferdinand-Pierrot, como Godard, é como esses escritores-acrobatas, “metade filósofos, mas muito mais do que filósofos”25 que são capazes de um estranho e excessivo atletismo: eles estão, como o acrobata ou o equilibrista, na corda bamba e a sua vida reside nesse jogo constante, nesse movimento de criação de um equilíbrio precário e paradoxal, cuja natureza é a de estar entre dois mundos, nunca num ou noutro, mas nas passagens entre os dois. São atletas, “não atletas que tivessem formado os seus corpos e cultivado o vivido”26, mas atletas bizarros do tipo “campeão de jejum ou grande nadador que não sabia nadar”27. Trata- se aqui de um atletismo afectivo e não de um atletismo orgânico ou muscular. Os atletas afectivos residem no paradoxo, habitam a bifurcação que desenham como fonte de toda a criação. A figura do paradoxo diz-nos o quê? Não se trata de uma contradição, o paradoxo, mas de alcançar um limite, o limite do pensamento.