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II. Pierrot, le fou, de Jean-Luc Godard

5. O paradoxo como método criativo

A passagem da primeira cena do filme e da sua atmosfera paradisíaca, no sentido da apresentação da mancha e da vida das formas, para a segunda, em que nos é apresentado um bloco de clichés e ideias feitas, apresentadas quer sob forma escrita, quer por imagens. De facto, acontece qualquer coisa neste filme que faz lembrar a situação que Walter Benjamin apresenta no seu fragmento de Rua de Sentido Único, “O revisor topográfico ajuramentado”: “A escrita, que encontrara refúgio no livro impresso, onde levava uma vida autónoma, é implacavelmente arrastada para a rua pelos reclamos e submetida às brutais heteronomias do caos económico. Essa é a severa escola de sua nova forma.”13

A meu ver, o choque entre a mancha com que o filme abre e o bloco de clichés que se lhe segue logo imediatamente, na festa surpresa, cria, desde logo, no espectador, uma situação que ouso chamar de duplo-vínculo com o filme.

Há um momento do filme em que Marianne e Ferdinand estão numa ilha. É como que a forma originária deste filme, e seu momento mais trágico, entendido no sentido que Benjamin dá a lutuoso. Godard tinha uma grande admiração pelo filme de Bergman, Mónica e o desejo, onde encontramos também o casal em fuga e o encontro da ilha como paraíso originário, mundo antes do homem. Ferdinand-Pierrot pergunta a Marianne Renoir: “Nunca me abandonarás?” e ela responde: “Não. De certeza” ou “Não. Evidentemente”. (“Mais non. Bien sûr”)14. Trata-se aqui de uma espécie de duplo-vínculo que poderia ter sido utilizado por Gregory Bateson, para definir este seu conceito. O duplo vínculo é certo comportamento que acontece quando alguém – por uma incapacidade de distinção entre modos de comunicação – não resolve certas experiências internas e bloqueia o seu comportamento. Por exemplo, alguém é confrontado simultaneamente com duas proposições paradoxais que se excluem mutuamente e às quais não pode responder sem ser

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Walter Benjamin, «Rua de Sentido Único», em Imagens de pensamento, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 2 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2004), 26.

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punido. No Budismo Zen, por exemplo, em que o objectivo é atingir a iluminação, o mestre Zen tenta iluminar o seu pupilo de várias maneiras. Uma das coisas que faz é colocar uma vara em cima da cabeça do pupilo e dizer: se disseres que esta vara não é real bato-te com ela, se não disseres nada, bato-te com ela15 Quando uma mãe diz a um filho, aos gritos: “Não grites!” Isto é uma estrutura paradoxal de duplo vínculo, ou, por exemplo, quando lemos num cartaz colado numa parede da rua “é proibido colar cartazes”.

Seria fácil enumerar um sem número de enunciados paradoxais com que vivemos habitualmente. Bateson considera que o esquizofrénico, por exemplo, se encontra na mesma situação que o pupilo do mestre Zen, com a diferença de não encontrar a iluminação. Não ser capaz de ultrapassar o dilema criado pelas proposições conflituosas pode criar, segundo Bateson, comportamentos patológicos e gerar várias patologias diferentes. Mas o paradoxo pode ser terapêutico, se houver saída do dilema, ou seja, a confusão criada pelo duplo vínculo pode tornar-se um estímulo na procura de outra estrutura, de outro plano da linguagem, segundo Bateson, uma meta-linguagem. “Em vez de continuar a escolher uma alternativa, o paciente rejeita a própria ideia de que tem de escolher e lida com a classe (todas as alternativas) e não só com um (único) membro”16. Lidar com “todas as classes”, significa aqui, lidar com todas as linguagens possíveis, criando uma alternativa, uma linha de fuga por onde se pode seguir. Não se trata, portanto, de resolver o paradoxo, trata-se de, por um lado, confrontá-lo, numa suspensão do sentido, para olhar em volta. Neste sentido, podemos conceber o duplo vínculo como uma experiência necessariamente destrutiva, em que parece não é possível nenhuma via, mas a partir do qual se fura, se abre uma brecha, a partir da qual se podem ver e criar outras vias. Se existe uma tendência para provocação em Pierrot le fou, ela é sobretudo, uma provocação clínica, no sentido de instaurar uma espécie de duplo vínculo destrutivo, no seio do qual subsistem, em germe, as forças que permitem criar. Godard, o clínico, apresenta-nos um processo diagramático.

Deleuze refere-se ao diagrama, que desenvolveremos mais à frente, relativamente ao processo de trabalho de Francis Bacon17, dizendo que não escutamos bem o que dizem os pintores: é que a tela nunca está em branco e “os dados figurativos já estão na tela”. Há então todo um trabalho preparatório, que antecede o acto do pintor, que é um trabalho de

15 Alan Watts, Buddhism the religion of No-Religion (Love of Wisdom Library, 1996).

16 Maria João Centeno, O conceito de comunicação na obra de Bateson: interacção e regulação,

Livros Labcom (Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2009), 66.

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Gilles Deleuze, Francis Bacon : La logique de la sensation (Paris: Editions de la Différence, 1996).

dissolução de formas predeterminadas, fixadas, enfim, de clichés e ideias feitas. Mas compreendemos que no processo de trabalho de Francis Bacon, o diagrama não precede, mas dá-se em simultâneo com a criação de novas formas. Ora, é esta desfiguração, para usar uma expressão de Lyotard18, que está em obra em Pierrot le fou, à medida que Godard cria a Figura.

Encadear até perder o fôlego, diz Godard, fundir, nas digressões por costurar dos filmes feitos com agulha, os pedaços dispersos da nossa grande tela branca, essa que de tanto remendar, “acabamos por esquecer que é virgem, como um negativo que Dupont, Ilford ou Kodak”19 O diagrama, precisamente, produz essa virgindade de mundo. Acabamos por esquecer que a vida é a ser vivida e que o filme é ainda para fazer, precisamente por causa deste imenso material disperso.