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Walter Benjamin, no prólogo a A origem do Drama Trágico alemão, apresenta-nos o modo de ser e de se dar da ideia, como um modo ao qual não preside nenhuma intenção - sendo que, por esta razão, está próximo do modo simples de ser das coisas - mas que, por outro lado, lhes é superior pela sua consistência e permanência. Este ser, ao qual não é possível presidir qualquer intenção e que ao mesmo tempo se aproxima do ser simples das coisas é o ser da verdade.

“O ser das ideias de modo nenhum pode ser pensado enquanto objecto de uma intuição, nem mesmo da intelectual. De facto, nem na sua versão mais paradoxal, a de intellectus archetypus, ela pode aceder à forma de se dar que é própria da verdade – um dar-se desprovido de todas as formas de intenção – para além de que a própria verdade nunca pode aparecer como uma intenção”98.

O ser da ideia não pode aceder à forma de ser própria da verdade por uma intuição intelectual e o seu modo de ser aproxima-se do modo de ser simples das coisas, mas “o ser da verdade, sendo da ordem da ideia, distingue-se do modo de ser próprio dos fenómenos”99. Ora, o modo de ser livre de toda a fenomenalidade e detentor da força da verdade é o ser do nome: “é ele que determina o modo como são dadas as ideias”100. Vimos,

96

Ibid.

97 Ibid.

98 Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, trad. João Barrento, [1925], Obras

Escolhidas de Walter Benjamin / 3 (Lisboa: Assírio & Alvim, 2004), 21–22.

99 Ibid., 22. 100

ainda há pouco, como a criança, mais facilmente (do que nós) alcança o modo de ser do nome. É que o nome é uma abertura - como uma abertura de porta. No entanto, ao abrir a porta, não é tanto a passagem para um outro quarto enquanto movimento intencional que é relevante, como aquilo a que se acede na própria passagem: a percepção original das palavras, o indizível ou a verdade. Está-se, aqui, nessa fractura da linguagem que divide e distingue, “como uma crista afiada entre duas vertentes a pique”101 o plano do nome (onoma) do plano do discurso (logos). Segundo esta concepção da filosofia antiga, diz-nos Giorgio Agamben neste mesmo texto, é indizível, não aquilo que não está atestado na linguagem, mas aquilo que só pode ser nomeado, enquanto o dizível é, pelo contrário, aquilo que se pode dizer num discurso definitivo, ainda que, eventualmente, não tenha nome próprio. As ideias, diz Benjamin, dão-se, “não tanto numa língua primordial, mas numa percepção primordial em que as palavras ainda não perderam a aura da sua capacidade de nomear, em favor de um significado cognitivo”102. A ideia é então da ordem da linguagem, mais precisamente, da ordem da essência da palavra – potência de nomear —, da ordem daquele momento em que a palavra é símbolo. A tarefa do filósofo é a de restituir, pela apresentação da ideia, o lado simbólico da palavra, que na percepção empírica se decompôs num significado profano. Na contemplação filosófica, diz Benjamin, “a ideia, enquanto palavra, solta-se do recesso mais íntimo da realidade, e esta palavra reclama de novo os seus direitos de nomeação”103. Assim, em Benjamin, não é tanto Platão que aparece na origem da filosofia, mas Adão, que ainda não tinha que lutar, como Platão, com o significado comunicativo das palavras para alcançar um estado puramente intelectual de contemplação filosófica. A nomeação é esse acto de renovação ou de reconstituição da percepção original da palavra sem o qual a ideia não pode aparecer e o modo de aparecer da ideia dá-se, para Benjamin, nesse espaço de abertura ao sentido, entre o pathico e o gnósico, como diria Henri Maldiney, que é a potência do nome.

É então, já vimos, a distinção entre a verdade e o âmbito do conhecimento que define o ser da ideia. A verdade e a ideia “alcançam aquele supremo significado metafísico que lhes é expressamente atribuído pelo sistema platónico”104. Enquanto o conceito advém da espontaneidade do entendimento, as ideias oferecem-se à contemplação, são algo de já dado.

101

Giorgio Agamben, Ideia da prosa, trad. João Barrento, Filô (Autêntica Editora, 2013), 104.

102 Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, 22. 103 Ibid., 23.

Se um problema, para os gregos, aparecia como um obstáculo, enigma, uma rede que nos prende, um nó que não se consegue desfazer ou qualquer coisa, como refere Maria Filomena Molder, que não nos deixa avançar e obriga a suspender o passo, a ideia platónica é uma estrutura problemática.

O belo, tal como nos é descrito no Banquete de Platão, apresenta esta estrutura problemática ou paradoxal da ideia. Diz-nos Diotima, a sacerdotisa:

“depois de teres passado por todos os graus da compreensão sensível e da compreensão conceptual, há um momento em que te vais encontrar com a ideia (a ideia enquanto visão) e, então, já não há nem corpos, nem rostos, já não há figura nem ciência nem logos. Aí chegado, mergulhas no pélago, no grande abismo, no grande mar, da beleza”105.

Neste excerto encontramos formulada a estrutura mais profunda da Ideia platónica, o paradoxo da ideia platónica, se quisermos: por um lado, não é possível alcançar o ser da ideia sem passar pelo método dialéctico106, por outro, o encontro com a ideia – a ideia enquanto visão – envolve uma espécie de velamento de todo o processo de compreensão. Ou seja, a experiência do acesso à ideia, à visão, passando necessariamente pelo processo da dialéctica, na sua dupla dimensão, noética e discursiva, é, de alguma forma, totalmente omisso ou pelo menos incompreensível, no momento da visão. Benjamin considera o Banquete de Platão, a obra que coloca mais significativamente a questão da relação entre a natureza das ideias e a natureza do conhecimento. Nele, a verdade (o reino das ideias) é concebida como sendo o conteúdo essencial da beleza, e é ela que garante o ser do belo. Diz-nos Diotima: “aí chegado, mergulhas no pélago, no grande abismo, no grande mar, da beleza”. A relação entre verdade e beleza constitui-se, não só como um pressuposto fundamental de toda a filosofia da arte, mas também da determinação do conceito de verdade, sendo que estética e a epistemologia se baseiam no mesmo pressuposto essencial.

“A verdade é bela” deve compreender-se no contexto em que, no Banquete, se descrevem os vários graus do desejo erótico. Eros não trai o seu impulso originário ao orientar o seu desejo no sentido da verdade, pois também a verdade é bela. Ela é bela, não tanto em si, mas para Eros, exactamente o mesmo que acontece com o ser humano: aquele que amamos é belo para nós, não em si, porque o seu corpo se apresenta numa ordem

105

Molder, «A forma como problema: as nuvens e o vaso sagrado», 154.

106 A dialéctica, em Platão, é o método pelo qual o pensamento alcança o mundo das Ideias. Trata-

se de um movimento de elevação, no sentido em que há uma ascensão do mundo das coisas sensíveis ao mundo das Ideias, que passa por vários graus: uma dialéctica descendente, em que as Ideias descem ao mundo sensível, como que buscando a matéria para moldar, a dialéctica ascendente em que as Ideias sobem em direcção às ideias e a dialéctica contemplativa, quer dizer, absolutamente noética, pura intuição intelectual.

superior à do belo. A verdade não é bela em si, mas para aquele a busca. Enquanto permanece na esfera da aparência, palpável, o belo seduz e atrai a perseguição do entendimento, apenas tornando reconhecível a sua inocência no momento em que se refugia no altar da verdade.

“Eros segue-o nesta sua fuga, não como um perseguidor, mas como amante; e de tal modo que a beleza, para se manter aparência, foge sempre dos dois, do entendimento pelo temor e do amante por angústia. E só Eros pode testemunhar que a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça”107.

Mas como se manifesta a verdade, o conteúdo do belo? Não é num desvelamento, mas antes num processo que “poderia ser visto como o momento em que se incendeia o invólucro que entra no círculo das ideias, como o incêndio da obra, no qual a sua forma alcança o máximo de intensidade luminosa”108.

A ideia é apresentada numa visão (schau) da obra de arte, quando ela alcança o máximo de intensidade luminosa. A visão incendeia. Como diz Maria Filomena Molder, os elementos de uma configuração, de uma paisagem, do que quer que seja. Nela, os seus elementos não são analisáveis e ela “é sempre descontínua por relação àquilo que nós já sabíamos, ela rompe, coagula, dispõe e projecta de modo inédito o que já sabíamos”109. Profundamente ligada à tarefa humana de compreender, a beleza, em vez de desvelar, aprofunda a total irresolubilidade daquilo a que Benjamin chama o ideal do problema – a unidade efectiva, na ideia, de todos os problemas. Na visão, dramatiza-se o profundo mistério da ideia.

Dando-se numa visão, as ideias não se apreendem enquanto fenómeno empírico, nem através de uma intuição intelectual, mas elas salvam os fenómenos, numa apresentação (darstellung):

as ideias são constelações eternas, e se os elementos se podem conceber como pontos em tais constelações, os fenómenos estão nelas simultaneamente dispersos e salvos. E aqueles elementos, que os conceitos têm por tarefa destacar nos fenómenos, são mais claramente visíveis nos extremos da constelação110.

Benjamin determina as duas tarefas primordiais da filosofia, que estão envolvidas uma na outra: em primeiro lugar, salvar os fenómenos, tarefa feita através da mediação dos

107 Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, 17, 18. 108

Ibid.

109 Molder, «A forma como problema: as nuvens e o vaso sagrado», 155. 110

conceitos; e em segundo lugar, através da organização desses fenómenos no conceito, apresentar da ideia.

Comparável a uma constelação de estrelas, a ideia é uma “configuração”, um “ordenamento objectivo virtual” dos fenómenos, uma sua “interpretação objectiva”111 . Os fenómenos são divididos, desfeitos da sua falsa unidade, pelos conceitos, para poderem participar na verdade da ideia – a única unidade autêntica, segundo Benjamin. O papel principal dos conceitos deve ser o de salvar os fenómenos na ideia, no sentido da configuração da ideia, funcionando como mediadores. A salvação dos fenómenos e a apresentação da ideia, apesar de serem definidos como as duas tarefas da filosofia, acontecem em simultâneo, pois a salvação dos fenómenos só é possível na apresentação da ideia e a ideia só pode apresentar-se a si mesma através da organização dos fenómenos no conceito ou da sua configuração. A relação entre os fenómenos e a ideia não é uma relação de incorporação, ela não os contem, não compreende em si aquilo que apreende, mas constitui a sua disposição ou interpretação virtual objectiva. Ao comparar a ideia a uma constelação, relacionando-se com os fenómenos como a constelação com as estrelas, Benjamin sublinha que as ideias não são as leis ou as funções dos fenómenos, nem servem para as conhecermos. Por sua vez, os fenómenos não podem, de maneira nenhuma servir como critério para a existência das ideias. O significado dos fenómenos para as ideias, esgota-se na sua formulação conceptual, cujo conteúdo e alcance é determinado, na própria existência, de acordo com as diferenças e afinidades entre os fenómenos. São estes elementos que os conceitos têm por tarefa destacar nos fenómenos e que “são mais claramente visíveis nos extremos da constelação”, definindo-se a ideia como configuração de conexões em que “o único e extremo se encontra com o semelhante”. Os fenómenos serão tanto mais profundamente apreendidos, quanto mais extremas aparecerem as suas conexões conceptuais e, entre a ideia e os fenómenos, há uma espécie de magnetismo afectivo vital, que encontramos nesta belíssima imagem:

Tal como a mãe só começa a viver plenamente quando o círculo dos seus filhos, sentindo-lhe a proximidade, se reúne à sua volta. As ideias só ganham vida quando os extremos se reúnem à sua volta. As ideias – na formulação de Goethe: os ideais – são as mães fáusticas. Permanecem obscuras se os fenómenos não se reconhecerem nelas e não se juntarem à sua volta. Cabe aos conceitos agrupar os fenómenos e a fragmentação que neles se opera por acção do entendimento analítico e esta

111

configuração é tanto mais significativa quanto, num único e mesmo lance, consegue um duplo resultado: a salvação dos fenómenos e a representação das ideias112

As mães faustianas são aquelas que se ocupam do engendramento dos esquemas de todas as coisas. “Em rigor - diz-nos Maria Filomena Molder – mais madres (matrizes) do que mães (as que dão à luz e cuidam dos filhos)”113. As ideias, ou matrizes, salvam os fenómenos, apresentando a sua essência e concedendo-lhes a sua pertença recíproca, redimindo a sua dispersão.