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II. Pierrot, le fou, de Jean-Luc Godard

7. Uma tentativa de filme

Ter uma ideia, para mim (...) é uma parte do corpo, tão real como isso. Quando mexo a minha mão - seja a do operário, quando enrosca um parafuso num Ford, quando acaricia o ombro daquela que ama ou quando pega num cheque – tudo isto é movimento (...). Uma ideia não é material, mas é um momento do corpo, como o corpo é um momento de uma ideia.28

Esta acepção da ideia, em Godard, enquanto gesto, enquanto corpo que sente, mas também enquanto gesto que pensa com as mãos29. Por outro lado, estamos na esfera do ensaio, em que distinção entre um sujeito pensante e um objecto desaparece, dando lugar a uma experimentação da ideia, sempre numa tensão para o real que a determina.

“Pierrot não é verdadeiramente um filme, mas uma tentativa de cinema e o cinema que tenta dar conta da realidade lembra-nos que há que tentar viver”30, diz-nos Godard,

25 Deleuze e Guattari, Qu’est-ce que la Philosophie?, 65. 26 Ibid.

27 Ibid., 163.

28 Jean-Luc Godard, Introduction à une veritable Histoire du Cinéma (Paris: Éditions Albatros,

1980), 53.

29 Ideia desenvolvida por Godard, a partir da referência à obra do escritor suíço Denis Rougemont,

Penser avec les mains (1936), que é um ataque explícito à crença na distinção entre pensamento e acção, com consequências políticas desastrosas. Godard, apresenta-nos nesse episódio uma sequência de sete imagens com as palavras de Rougemont: “Já é tempo do pensamento se tornar naquilo que verdadeiramente é: perigoso para o pensador e capaz de transformar a realidade. “Onde eu crio é onde sou verdadeiro” Rilke. (...) Alguns pensam, outros agem. Mas a verdadeira condição humana é a de pensar com as suas mãos”. Godard, Histoire(s) du Cinéma, Episódio 4A, «O controlo do universo», [00:07:00 - 00:07:20].

30 Jean-Luc Godard, Jean-Luc Godard: Interviews, ed. David Sterritt, Conversations with

aludindo provavelmente ao poema de Valéry, Cemitério marinho:

Ergue-se o vento! Há que tentar viver!/ O sopro imenso abre e fecha o meu livro/ A vaga em pó ousa saltar das rochas/ Voais páginas claras, deslumbradas!/ Rompei vagas, rompei contentes o tecto tranquilo, onde bicavam velas!”

Pierrot não é bem um filme, mas uma tentativa, um ensaio que se compõe poeticamente. “Um pensamento, mas um pensamento que tenta extrair de si mesmo o pensamento como um objecto, observar se esse objecto está vivo ou não, eliminar os mortos”31, na expectativa de saber que pontos fixos existem, como os aviões na pista, antes de descolarem. Agarrar um pedaço de vida em filme, coisa que só é possível à força de “encadear, encadear, encadear até perder o fôlego” e “fundir nas digressões por costurar, dos filmes com agulha, os pedaços dispersos da nossa grande tela branca”, essa que de tanto remendar, ano após ano, dia após dia, acabamos por esquecer que é virgem, como um negativo.

A vida é o tema de Pierrot, ou antes, um princípio de vida, diz Godard, como os paralelos de Euclides são um princípio de geometria, e o filme? O filme é a criação de um aparelho de captura. “E a vida debate-se mais do que o peixe de Nanouk, foge-nos dos dedos como a lembrança de Muriel em Bolonha reconstruída, eclipsa-se entre as imagens”32. Como é que se captura a vida? Em que consiste este aparelho? Qual o seu elemento chave? O seu problema? Trata-se de saber, em cada filme, diz Godard, onde e porquê começar um plano e onde e porquê terminá-lo. A vida passa pelo ecrã e a lembrança que ela nos deixa está na sua imagem. A pintura, o romance e a música encontraram algumas, poucas, formas de aprisionar a vida, mas, do ecrã, a vida escapa-se como a água a correr num lavatório: sempre a sair mais água da torneira e sempre a ser escoada.

Apesar da constante alusão, em Pierrot, à forma literária, nomeadamente a um certo tipo de forma literária, de que Ulisses, de James Joyce, é uma referência chave, desde a narração que assume múltiplas formas, à organização fragmentária da narrativa, passando pela enumeração caótica dos capítulos, o filme, segundo Godard, não tem nada a ver com o romance. Ele é antes de mais a vida, e a vida “apenas podemos vivê-la e morrê-la, mas falar dela, bem – diz Godard – há os livros, sim, mas no cinema, não temos livros, só temos música e pintura, e estes também, como sabem, vivem-se, não se fala deles”33.

31

Idem.

32 Godard, «109: Let’s talk about Pierrot». 33

Não há livros neste filme, então, segundo Godard. Mas o que significa dizer que “não há livros neste filme”, se o filme está cheio de livros? Na verdade, não é tanto uma questão dos livros que estão neste filme, mas das histórias, das suas personagens, dos seus afectos e perceptos, das suas forças. O que aparece no filme são figuras estéticas que passaram para o filme, exactamente como o “vermelho, azul, branco” de que falámos antes. Se Godard se refere, neste filme, à forma literária, tomando como referência chave, o Ulisses, é com o intuito de compor o seu diagrama de forças. Por outro lado, o facto de Godard ter começado por ser crítico de filmes através da escrita talvez tenha pautado a sua relação, relativamente ambígua, com a palavra. De facto, se, por um lado, “as explicações ficam para os livros”34, por outro, Godard encontra uma potente afinidade entre a literatura e o cinema: é que, ao contrário do que acontece com os pintores e com os músicos, diz ele, “quer os romancistas, quer os cineastas, estão condenados a analisar o mundo, o real”35.

Encontramos ainda, em Godard, uma forte ligação a André Bazin. Preserva-se a impressão de uma relação directa ao real, não propriamente ao real, mas à vida, e expressa sob a forma de dispositivos cinematográficos mais próximos do documentário e do cinema- verdade, nomeadamente, o plano sequência, em Pierrot le fou, quando Marianne e Ferdinand rompem numa linha de fuga, bem como o recurso ao discurso directo, influenciado por Jean-Rouch, que apesar de ser pouco utilizado em Pierrot, não deixa de dar um ar da sua graça, como mera referência estilística.36

Poderá dizer-se, até certo ponto, com Astruc, que Godard escreve com a câmara, sendo o seu cinema, nesse sentido, “um meio de expressão como qualquer outro, em particular a pintura e o romance”. Astruc encontrou finalmente no cinema, depois da sua fase de entretenimento ou de atracções, “uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir os seus pensamentos, por mais abstractos que eles possam ser, ou traduzir as suas obsessões exactamente como ele faz no ensaio contemporâneo ou no romance”. Mal sabia Astruc no que o cinema haveria de se tornar. Mas Godard sabe. De facto, ele define o filme como uma forma que pensa, mas esta forma é ela mesma pensamento, ou seja, o

34 Ibid.

35 Susan Sontag, «Godard’s Vivre sa Vie», em Styles of Radical Will, A Delta book (Dell Publishing

Company, 1969), 196–209.

36 Os segmentos em discurso directo apresentam-se à câmara, no minuto 27:18: “Laszlo Kovacs,

nascido a 25 Janeiro de 1936 em Santo Domingos, a viver em França como refugiado politico. França, o país da liberdade, igualdade, fraternidade”; “Viviane Blassel, nascida a 21 de Março de 1943 em Marselha. Tenho 22 anos. Trabalho no departamento de vendas de uma perfumaria em Auxerre”; “André, nascido a 25 de Maio de 1903, em Marbouie, Eure-et-Loir. Idade: 62 anos, actualmente, figurante de cinema”.

pensamento de que Godard fala quando exprime esta ideia confunde-se com a linguagem, não se transmite por ela. Em Astruc, apesar da ideia do filme como ensaio, o filme é ainda tomado como linguagem, no sentido de um meio de expressão de pensamentos. Ora, se a linguagem existe no filme de Godard, ela não existe apenas como instrumento ou veículo, mas encontra-se desdobrada numa tensão permanente, entre a linguagem enquanto conjunto de signos que dizem o filme, que o significam e a linguagem enquanto modo de expressão, que não diz, mas pensa. “Um filme não se diz, percebe-se”, afirma Merleau- Ponty, autor a que Godard se refere várias, implícita ou explicitamente. O que ele procura, no fundo é um padrão, um denominador comum a todas as formas de expressão artística: pintura, literatura, cinema, música. Quando Pierrot explora o universo da linguagem, das palavras e dos significados no seu diário, na verdade ele procura uma espécie de fonte de sentido, um lugar onde se cruzam vários sentidos para uma palavra, os encadeamentos de sentido e de significados de uma palavra para outra e para outra. Mas o estudo de Pierrot sobre aquilo a que chamámos o mistério da linguagem, é feito, literalmente, sobre a vida: o caderno de notas ou o diário estão sempre numa imagem que é imagem de vida, de paisagem natural, de corpo-a-corpo, de contemplação. Na verdade, a fase do filme em que efectivamente vemos Pierrot escrever ou contemplar, pois ele passa mais tempo a sublinhar as conexões entre as palavras, sendo esta contemplação de Pierrot acompanhada por imagens, do seu ponto de vista subjectivo, ou pelas de Godard, cujo ponto de vista se confunde com o da personagem. O momento da estadia na ilha é o momento em que o encontro com o fundo primitivo da vida se dá, ou pelo menos se formula, pois não podemos deixar de sentir, em cada imagem, e por mais intensa que ela seja, a formulação de um pensamento a fazer-se. Encontramo-nos no lugar mais próximo, a que talvez só a poesia possa aceder, do paraíso perdido: das forças germinativas da natureza, da fusão da vida e da linguagem, do filme e da vida. No “Capítulo 8: uma cerveja no inferno”, Marianne e Pierrot, o último casal romântico como lhes chamou Godard, vivem a sua lembrança de um paraíso perdido, numa dimensão pré-linguística e não-humana. A extrema beleza deste capítulo, em que Pierrot e Marianne vivem como primitivos, de amor, de caça e de pesca, numa ilha, é intensificada pela sombra das ruínas. Aquele tempo já passou, toda a cena está como que construída como uma memória, o estilo e o ritmo alteram-se completamente: entramos numa atmosfera mais contemplativa e aparentemente menos violenta. Mas a ruína, o luto, manifesta-se nas palavras: Marianne, à beira mar, com a sua lenga-lenga, “Que é que hei-de fazer, que é que hei-de fazer?”, apela, como uma criança pequena, a um outro mundo que quer nascer. A sua lenga-lenga ou o seu grito apela por um fora da ilha,

tenta uma linha de fuga. É no reencontro com o paraíso perdido, com a natureza no seu esplendor e com a paixão no auge imediatamente anterior à decadência, que Pierrot vive mais intensamente o seu estudo sobre os mistérios da linguagem, as suas descobertas e frustrações.

Ainda não temos a imagem, diz Godard, a imagem virá no tempo da ressurreição37: o cinema está envolto num mistério. Não se trata aqui de um enigma, no sentido que o enigma traz, oracular, de um desafio lançado aos homens, como o enigma da Esfinge lançado a Édipo Rei pelo oráculo. Da resolução do enigma dependia a sua vida. Édipo resolveu o enigma e fez-se rei. “O enigma é um desafio que se resolve”. A estrutura enigmática do trágico pede uma resolução de um problema, de um obstáculo à vida. A natureza do mistério é ser irresolúvel, algo que se comunica - uma visão, uma potencia que encerra uma impotência. Onde a encontraremos?

No interstício, esse espaço intermédio de difícil definição. O todo, no cinema moderno, caracteriza-se por uma certa maneira de ligar as imagens, seja a partir de cortes irracionais ou de ecrãs negros ou brancos, trata-se de fazer a imagem valer por si38. Godard exprime várias vezes uma ideia39, tão marcante nos seus filmes, de que a montagem, no cinema mudo, estava intrinsecamente ligada à encenação ou à mise en scène - ou seja, à concepção do plano enquanto cena e à sua composição - como uma melodia está ligada ao ritmo. A mise en scène, tal como explicita uma das comuns traduções portuguesas utilizadas para o conceito, encena um acontecimento para o mostrar, transforma-o numa cena, de tal forma que seja apresentável. Como se fosse uma primeira apresentação que prepara uma segunda40. O método do entre não é um método dialéctico. Ou pelo menos, não se trata de uma dialéctica de imagens que vise uma resolução, como a dialéctica definida e praticada por Eisentein, mas uma montagem que tem como método impor um interstício na imagem, impor um fora da imagem ao seu interior.

37 Godard, Histoire(s) du Cinéma, 1A. 38

Deleuze, Cinéma 2. L’Image-temps, 235–6.

39 Jean-Luc Godard e Alain Bergala, Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, [1985] (Paris: Cahiers

du cinéma, 1998), 404.

40

A noção de cena atravessa pintura, teatro e cinema, bem como a literatura. Virginia Woolf desenvolve de forma límpida a cena literária, como veremos noutro capítulo, que se caracterizando sobretudo por estabelecer uma certa constelação espacio-temporal que funciona como núcleo dramático.