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A arte, a verdadeira arte, consegue escapar ao domínio da representação. É importante compreender que isto não significa que o mundo da representação não exista no campo da arte. Simplesmente, não é possível criar – aceder a novos mundos ou ao real verdadeiro, como lhe chamou Robert Bresson – a partir de uma geografia de signos e de uma linguagem meramente instrumental. Paul Klee concebe o artista como esse homem que, embora como todos nós tenha sido lançado num mundo onde se deve orientar, procura, no entanto, encontrar uma abertura para a génese do mundo. Walter Benjamin, no seu texto Experiência e pobreza (1933), refere-se a Paul Klee como um construtor: “entre os grandes criadores, sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábua rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores”30. Benjamin refere-se ainda a Descartes ou a Einstein como exemplos paradigmáticos destes construtores implacáveis. São construtores no sentido em que, a partir de um único, mas poderoso ponto – Descartes, a partir da formulação “penso, logo existo” ou Einstein, a partir de uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronómicas – edificaram todo o seu pensamento, como um mundo. Começar por um princípio de mundo e compor as suas figuras na prancheta, de tal forma que, diz-nos Benjamin, tal como num bom automóvel a carroçaria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionómica dessas figuras obedece ao que está lá dentro, ou seja a um princípio interno. O que está lá dentro não é uma interioridade, no sentido do mundo interior de um sujeito, o que está lá dentro é um princípio genético destrutivo e criativo ao mesmo tempo — é por isso que estas figuras, diz-nos Christine Buci-Glucksmann31, são bárbaras. As figuras de Paul Klee são sempre seres intermediários – máscaras, demónios, bonecas, homens loucos cambaleantes, homens-animais, plantas-rosto. São seres de fronteira, sempre em devir, sempre inacabados, que não participam na lógica humanista do sujeito e da representação, que romperam com os códigos e com a cultura convencionalmente aceites. Situam-se na

30 Walter Benjamin, «Expérience et pauvreté», em Œuvres II, trad. M. Gandillac, R. Rochlitz, e P.

Rusch (Paris: Gallimard, 2000), 364–73.

31 Christine Buci-Glucksmann, La raison baroque: de Baudelaire à Benjamin, Débats (Paris) (Paris:

fronteira entre o humano e o inhumano, entre a cultura e a barbárie. O motor secreto destas figuras de Klee, o seu princípio formante, é aquilo a que ele chamou ponto cinzento, que funciona como uma espécie de esquema dramático de toda a criação artística.

De acordo com o esquema de Klee (cosmos – caos verdadeiro – caos antitético), o cosmos é a ordem de todas as coisas, o caos antitético é um conceito que representa a desordem, opondo-se antiteticamente ao cosmos, e o caos verdadeiro, que nunca pode ser pesado ou medido, não constitui propriamente a antítese da ordem, mas é um ser-nada ou um nada-ser que não está em equilíbrio com nada e permanece eternamente sem peso nem medida. O caos verdadeiro “pode ser nada ou algo adormecido, morte ou nascimento, dependendo (...) do querer ou do não querer”32. O ponto cinzento é o símbolo do caos (não um ponto real, mas um ponto matemático), elemento genético radical a partir do qual será instaurado o espaço e todas as figuras possíveis.

Para que este ponto se eleve ao visível, estabelecendo um salto interno e tomando uma decisão a seu respeito, é preciso apelar ao conceito de cinzento. O ponto cinzento “é o ponto fatídico entre aquilo que devem e aquilo que perece”. Ele é cinzento, diz Klee, por ser o ponto não-conceptual da não contradição, ou seja, ele não é nem branco nem preto, nem quente nem frio, ou, pelo contrário, é tanto preto como branco, tanto quente como frio; não está em cima nem em baixo, é não-dimensional, ou está entre as dimensões e na sua intersecção. Mas o ponto cinzento é, também, símbolo do centro original de onde germina a ordem do universo em todas as suas dimensões, ponto cosmogenético que – tal como um ovo – corresponde a toda a ideia de começo. O ovo é o lugar das forças genéticas e criadoras e Klee refere-se a estas forças como qualquer coisa que escapa a toda a denominação ou representação, mas de que nós próprios estamos carregados até ao último átomo. Embora não possamos dizer o que é esta força – a força do acto criador não pode ser nomeada – é- nos necessário “ir ao encontro da fonte, até onde nos for possível”33. Em todo o caso, temos de a manifestar nas suas funções, tal como ela se revela em nós mesmos. Klee sugere ainda uma definição desta força enquanto “forma de matéria”: “Provavelmente, ela própria (a força criadora) é uma forma de matéria, mas, enquanto tal, não perceptível com os mesmos sentidos que nos permitem perceber as modalidades conhecidas da matéria”34.

Klee formula assim o salto do ponto cinzento: “Um ponto no caos: o ponto cinzento

32

Klee, Escritos sobre Arte, 64–65.

33 Ibid., 55. 34

estabelece um salto por cima de si mesmo, para um campo onde ele cria a ordem. Dele irradia a ordem, assim desperta, em todas as dimensões”35. O ponto cinzento envolve, em simultâneo, um feixe embrulhado de linhas aberrantes em que o olhar não encontra eixos de referência (o caos) e o brilho do espaço a partir de uma origem instaurada por um salto (a ordem).

O momento em que “o ponto cinzento salta sobre si próprio” é um acto de criação – criação de um mundo, mas também, simultaneamente, da apresentação de uma ausência: o povo que falta, diz Klee. Acto paradoxal, então, permeado pela falta e pela superação desta falta ou desta ausência. A arte pode resistir a esta ausência, com a criação de novos mundos. O salto do ponto cinzento é um drama originário no sentido em que é a partir deste salto que se constroem as primeiras formas, cores, dimensões, luzes, sombras. É pelo salto que o ponto se dramatiza, como que subindo pela primeira vez ao palco, à tela do pintor ou do cineasta, à página branca do escritor. Trata-se da primeira composição do caos, digamos, por isso, esta primeira composição é ao mesmo tempo tão frágil e tão potente, tão intensa e tão verdadeira, no sentido que lhe deu Bresson, que precisamente, procurou em todos os seus filmes este momento originário de toda a arte – quer do ponto de vista da composição dos planos, quer do ponto de vista da não-representação dos seus modelos ou dos seus não actores.

Se o ponto cinzento, enquanto momento cosmogenético, representa, ao mesmo tempo, o caos e a origem do mundo, onde se estabelece a diferença?

Pelo ritmo. Aquilo que está entre estas duas dimensões é o ritmo. É ele que estabelece, diz Maldiney, a passagem do caos à ordem, é ele que estabelece a articulação entre os dois. No ritmo, não só o aberto já não é uma grande fenda, mas patência ou passagem, como o movimento deixa de ser aglutinador e passa a ser um movimento de emergência.

Toda a estética é rítmica: “não há estética senão do ritmo. Não há ritmo senão estético”36. Estas duas frases utilizam a palavra estética nos seus dois sentidos, sendo que o ritmo está sempre envolvido. O primeiro sentido – uma estética dos ritmos – tem a ver com a dimensão da arte e do belo, limitando-se ao sensível artístico. O segundo sentido – não há ritmo senão estético – diz respeito ao sentido lato e primitivo de estética (que, na

35 Paul Klee, apud Maldiney, Regard, Parole, Espace, 151. 36

palavra grega, aesthesis, significa sensação) e cobre todo o campo da receptividade sensível. Assim, dizer que todo o ritmo é estético equivale a dizer que a experiência do ritmo – a experiência a partir da qual temos lugar, numa morada – é da ordem do sentir.

É pelo ritmo, então, que se estabelece a diferença entre o caos – simbolizado pelo ponto cinzento - e a origem do mundo, que acontece quando o ponto cinzento entra então em cena: pura concentração indiferenciada, de tudo e de nada, salta sobre si mesmo e, num movimento de expansão, cria um plano, de onde emerge a ordem.