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II. Eu, um negro, de Jean Rouch

1. Eu, é um outro: um novo griot

A figura do griot1, contador de histórias da África ocidental, é uma figura dupla: figura activa tradicional e contemporânea, que encarna o poder da palavra, e construção mítica, ancorada na epopeia de Sundiata, mito de fundação da cultura mandinga. Jean Rouch foi considerado, pela comunidade songhay, um griot particular, que lhes possibilitou um legado especial, cinematográfico, e que agora faz parte da sua tradição. “Eu é um outro” (Jê est un autre) é uma afirmação de Rimbaud2 retomada por Deleuze, sobretudo no segundo volume sobre cinema, para dar conta deste fenómeno de passagem de que falaremos aqui e que ultrapassa a mera distinção identidade / alteridade.

Eu, um negro3 é um filme de Jean Rouch, com setenta minutos e a cores, filmado em 1957 em Abidjan, capital da Costa do Marfim. Jean Rouch, antropólogo e cineasta, realizou a maior parte dos seus filmes na África ocidental, filmando os rituais e as formas de vida do povo Songhai. Apresenta-nos como seus totems, Robert Flaherty e Dziga Vertov, e os seus filmes caracterizam-se por aquilo que ele definiu em A câmara e os homens4 como uma antropologia partilhada e uma etno-ficção, em que a câmara se define como uma câmara participativa. O cinema de Rouch repensou profundamente tanto a prática antropológica, como a cinematográfica, apagando a distinção clássica, nestes dois campos, entre o sujeito que estuda ou filma e o objecto estudado ou filmado, entre o ponto de vista subjectivo e o ponto de vista objectivo.

Em 1842 a lagoa de Abidjan foi ocupada pelos franceses e cinquenta e um anos mais tarde ela tornou-se uma colónia, que passaria a fazer parte da África Ocidental francesa. Os transportes férreos facilitaram muito o transporte de fontes naturais para exportação e em 1958, ano em que a Costa do Marfim se tornou uma República, a cidade de Abidjan era o rosto de uma nova África, mais moderna e ocidentalizada. Eu, um negro

1 Sobre a noção de griot e sobre o «cineasta griot», ver Paul Stoller, The Cinematic Griot: The

Ethnography of Jean Rouch (University of Chicago Press, 1992).

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A expressão “Je est un autre” surge numa carta de Arthur Rimbaud a Paul Demeny datada de 15 Maio de 1871 e é retomada por Deleuze no capítulo 6, sobre as potências do falso (1985).

3 Jean Rouch, Moi, un noir [Eu, um negro], [35mm, Cor] ([Cinema: Les Films de la Péiade]; [DVD:

VideoFilmes, 2006], 1958).

4 Jean Rouch, «La Caméra et les Hommes», em Jean Rouch, ou, Le ciné-plaisir, ed. René Prédal,

conta a história de um grupo de jovens migrantes nigerianos que vão para Abidjan à procura de trabalho e que procuram adaptar-se a esta “nova África”. O filme começa com as seguintes palavras, em off, de Jean Rouch:

Todos os dias, jovens parecidos com as personagens deste filme, chegam às cidades de África. Abandonaram a escola ou os campos da família, para tentar entrar no mundo moderno. Não sabem fazer nada e sabem fazer tudo. São uma das novas doenças das cidades africanas, a juventude desempregada. Esta juventude, entalada entre a tradição e as máquinas, entre o Islão e o álcool, não renunciou às suas crenças, mas adora os ídolos modernos do boxe e do cinema. Durante seis meses, acompanhei um grupo de jovens emigrantes nigerianos em Treichville, nos arredores de Abidjan. Propus-lhes fazer um filme onde teriam os seus próprios papeis, onde poderiam dizer e fazer tudo. Foi assim que improvisámos este filme. Um deles, Eddie Constantine, foi tão fiel à sua personagem, Lemmy Caution, agente federal americano, que durante as filmagens foi condenado a três meses de prisão. Para o outro, Edward G. Robinson, o filme foi o espelho em que se descobriu a si mesmo: o antigo combatente da Indochina, expulso pelo pai, por ter perdido a Guerra. É ele o herói deste filme, passo-lhe a palavra5.

Rouch apresenta-nos a problemática geral do filme: a juventude ‘entalada’ entre a tradição e as máquinas, entre o Islão e o álcool, que não renunciou às suas crenças, uma cultura ainda muito dominada pela figura do griot e por rituais sagrados, mas que transita a passos largos para uma cultura de massa que fornece novas histórias e novos mitos, passando dos mitos arcaicos e dos rituais tribais para os filmes de Hollywood e para as mitologias das sociedades contemporâneas, adorando agora os ídolos modernos do boxe e do cinema. Rouch propõe a este grupo de jovens fazer um filme, apresentando-nos o filme como um trabalho colectivo, de improvisação: “foi assim que improvisámos este filme”. Cada um dos jovens actores, não profissionais, representará o seu próprio papel, escolhendo, para si, uma personagem. Oumarou Ganda, o protagonista deste filme, na personagem de Eduard G. Robinson, já tinha participado num pequeno filme de Rouch como actor (Zazouman de Treichville, 1957) e será, mais tarde, um dos realizadores nigerianos mais importantes. Oumarou Ganda tinha estado na Guerra da Indochina, e o seu pai tinha-o expulso de casa por considerá-lo um fracassado, que perdera a guerra.

A sequência de abertura do filme, enquanto ouvimos estas palavras de Rouch, é composta de um conjunto de pelo menos vinte planos gerais, sobre o bairro de Treichville – a vida nas ruas, as pessoas a trabalhar, a descansar, o trânsito na cidade, a paisagem desta África urbana e ‘moderna’ e de Abidjan, essa “Chicago africana”, como lhe chama E. G.

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Robinson. O momento em que Rouch passa a palavra ao herói do filme é o plano que antecede o genérico do filme, em que vemos o protagonista, por baixo de uma tabuleta que diz: Treichville6. Depois desta primeira introdução em off, Jean Rouch passa a palavra ao nosso protagonista.

Ao mesmo tempo que o genérico vai passando, ouve-se uma outra voz: “Senhoras e senhores, apresento-vos Treichville”. É a voz do nosso herói, que é seguida por uma canção com uma voz feminina, em língua vernacular. E, depois de um passeio da câmara por Abidjan e de mais um comentário de Rouch sobre a vila de Abidjan, a câmara volta ao nosso protagonista, que se apresenta:

Não, eu não me chamo Edward G. Robinson, é uma alcunha que os meus amigos me deram porque eu sou parecido com um certo Edward G. Robinson que faz filmes que vemos no cinema. Não digo o meu verdadeiro nome porque eu sou estrangeiro aqui em Abidjan. Vim do Níger, a dois quilómetros daqui. A minha terra natal é Niamey, capital da colónia do Níger7.

Ele não diz o seu verdadeiro nome porque é estrangeiro ali em Abidjan. Porque está fora da sua terra, está deslocado, está em trânsito. A sua identidade está em trânsito e o seu nome também.

A voz de E. G. Robinson fala-nos, ao longo do filme, deste abismo que o separa, a ele e aos outros, pobres, como ele, de outras pessoas, dos ricos, e do desespero que é a consciência disto, da vida complicada e triste que é a sua vida:

Viemos para Abidjan à procura de dinheiro (...) ainda não ganhei nada. Actualmente sou trabalhador ao dia e só me canso, ando por aí a penar, se soubesse que ia ser assim não tinha vindo para Abidjan (...), como a vida é complicada e triste. Há quem tenha boas casas, coma bem e que more mesmo perto de deus, pois moram talvez no 16º andar. Eu... eu moro do outro lado8.

A câmara mostra-nos Treichville, um bairro moderno, cheio das marcas do domínio do ocidente: o salão de beleza Hollywood, o bar À la ville de Paris, a camisaria St. Germain des Prés, Pigalle, os letreiros dos nomes das ruas em estilo europeu, cartazes de filmes de cowboys a que se junta uma banda sonora a condizer ao passarmos por eles, acidentes de automóveis como nas cidades modernas, “há sempre acidentes em Treichville, mas não faz mal, somos como os americanos. Para nós, os carros não duram mais de dois meses”.

O comentário de Rouch volta a aparecer: “Cada dia da semana, é a luta de E. G.

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Robinson e dos seus amigos pelo trabalho”9. Cada dia será introduzido pela sua voz, estruturando narrativamente o filme, enquanto a voz de E. G. Robinson tornará contrastante a diferença entre os dias da semana e o fim-de-semana e o que significa o trabalho e o descanso para estes jovens. Mas Rouch não adiciona, com o seu comentário, nenhuma informação, para além do que já vimos ou do que já nos foi dito por E. G. Robinson. Ele repete, por outras palavras, aquilo que já vimos, dando um tom próprio, emocional àquelas imagens, mas nenhuma informação adicional. É um comentário que, até certo ponto, parece de alguém que se situa no exterior, como nós, e descreve o que vê.