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II. Eu, um negro, de Jean Rouch

3. Palavra interdita

Colette Piault, num artigo sobre Jean Rouch13, refere que ao dizer a Jean Rouch que

12 Para a noção de «subjectiva indirecta livre» ver Pasolini, «O “cinema de poesia” [Il “cinema di

poesia”, 1965]».

13 Colette Piault, «Parole interdite, parole sous contrôle», em Jean Rouch, ou, Le ciné-plaisir, ed. R.

escrevia um artigo sobre a palavra nos seus filmes, este lhe respondeu distraidamente: “Ah! A palavra interdita!”.

Todas as sociedades defenderão, mais ou menos vigorosamente, um certo saber que lhes é próprio e que um estrangeiro – mesmo que seja um amigo – deve ignorar, sob pena de transgredir interditos fundamentais.

Rouch encontrou frequentemente, nos Songhais e nos Dogons14, essa palavra interdita. Mas por outro lado, o cineasta pode dominar a palavra. Se a palavra, num documentário, dá sentido às imagens, ela é uma mediadora de saber e é um instrumento de poder. A questão do controlo ou da livre expressão desta palavra, sempre foi, para Jean Rouch uma preocupação crucial.

Numa curta metragem de Dominique Dubosc: “Jean Rouch, premier film: 1947- 1991”, Jean Rouch fala dos seus primeiros tempos como cineasta e das imagens do seu “primeiro filme” etnográfico, No país dos Magos Negros (Au Pays des Mages Noirs, 1947), que revemos na íntegra durante o filme de Dubosc. O primeiro filme de Jean Rouch, não é bem, na verdade, o seu primeiro filme. Ele foi terminado pelas Actualidades Francesas, montado a partir das imagens por ele filmadas em 1947, que mostram a descida do rio Níger, a caça ao hipopótamo dos Songhay e os rituais de possessão ligados ao ritual da caça (e mais algumas, extra, de uns crocodilos ferozes). Foi montado numa ordem que não era a de Rouch e acompanhado por um comentário racista, como refere Rouch no documentário de Dubosc, dito por um repórter desportivo de rádio e por uma música épica a condizer. É um filme dos colonizadores e para os colonizadores, que apresenta o etnólogo como um herói que secretamente filma um conjunto de seres primitivos em rituais que se querem mostrar como extremamente perigosos. Neste filme, o comentário comanda, as imagens ilustram.

É preciso termos em conta que, nesta época, introduzir um comentário num filme etnográfico era perfeitamente necessário e evidente e não se tratava de uma escolha, formal, comercial ou estilística. Os filmes etnográficos cumpriam uma função: apresentar uma

francesa com um grande trabalho de campo em África. O seu primeiro filme Albertine et Dorcas, foi rodado na Costa do Marfim, em 1966, quando trabalhava com Jean Rouch. Desenvolveu depois um projecto na Grécia, na zona de Epirus, em 1974, sobre o problema da do ponto de vista da desertificação das aldeias. .

14 Jean Rouch filmou os rituais de dois grandes povos, os Songhay e os Dogon. Os Songhai são um

povo do vale do rio Níger, sobretudo agricultores e artesãos e constituem o maior grupo do Mali e do Níger. Os Dogon habitam na zona do Mali e do Burkina Faso, são conhecidos pelos seus saberes astrológicos.

cultura estranha a outra (a ocidental, invariavelmente) comunicando-lhe as suas características mais importantes, a sua especificidade. Para isso, habitualmente, usava-se um método: filmavam-se as acções em directo, depois recolhiam-se informações sobre essas acções e finalmente sobrepunha-se às imagens um comentário escrito pelo etnólogo- realizador e dito por ele ou por vezes até por um actor com melhor qualidade de locução. O comentário visava produzir um efeito de contextualização das imagens e das situações no ecrã, que sem ele, seriam estranhas e difíceis de interpretar. Assim, finalmente, é como se Rouch terminasse o seu primeiro filme, dentro do filme de Dubosc, quarenta e quatro anos depois, com um comentário improvisado perante as imagens projectadas, devolvendo às imagens a sua verdade.

Quando, em 1955, Jean Rouch projecta as rushes de Os Mestres Loucos, no Museu do Homem, a primeira reacção que ouviu ao filme foi: “é preciso destruir este filme imediatamente!” O comentário foi de Marcel Griaule, antropólogo, professor e orientador de Jean Rouch. Todos estavam de acordo com ele. Para os negros na sala o filme era um insulto e para os brancos era um filme de selvagens. O aspecto bruto e a crueldade das imagens foram considerados inaceitáveis. Jean Rouch decide, apesar da recepção às imagens do ritual, montar e comentar o filme.

Os Mestres Loucos é um documentário de trinta e seis minutos em que Rouch filma, em Accra (atual Ghana), um ritual de possessão da seita Haouka15. Cada interveniente se desdobra, encarnando, através do transe, num “outro”, que personifica uma figura do poder colonizador: o governador, a mulher do capitão, o condutor da locomotiva... No final do ritual acontece o sacrifício de um cão, animal sagrado para os europeus, como sabemos. Não comemos cães. O sacrifício do cão é uma exibição de forças. Neste ritual os Haoukas medem forças, trazem as forças subterrâneas à superfície e despertam-nas. Trata-se de exibir a sua força sobre os outros homens, quer eles sejam negros ou brancos: põem fogo na boca, estão insensíveis à dor. Respondendo à polémica que este filme criou, Rouch afirmou que não se limitava a filmar documentos anónimos, feitos para arquivo, destinados a especialistas, mas que o que lhe interessava com os seus filmes era dar a ver ao mundo costumes e práticas desconhecidas do homem, mas sobretudo e ainda o modo como as

15 A seita dos Haoukas (palavra que significa “mestres da loucura”), nasceu entre as populações

Songhay, com o impacto do poder colonial e da técnica moderna sobre a cultura dos Songhay. A seita é composta por homens e mulheres que habitam naquela cidade e que, durante o dia, são operários: estivadores, contrabandistas, carregadores, pastores, vendedores de gado, etc., e que, todos os domingos, à noite, se reúnem para este ritual, e se transformam.

sociedades e as culturas tradicionais africanas se transformam face a situações politicas e sociais, como acontecia, neste caso, com o colonialismo inglês. Rouch procura com este filme “descolonizar o nosso pensamento, descolonizar-nos”16.

A montagem do filme segue a ordem do ritual, para isso a equipa regeu-se pelo som que a câmara fazia de cada vez que começava a filmar - (um “brr-brr” de uma Bell & Howell a que era preciso dar à corda de vinte e cinco em vinte e cinco segundos). No que se refere ao comentário, como a tribo dos Haoukas falava uma língua que Jean Rouch tinha tentado transcrever, mas cujo vocabulário não conhecia o suficiente, Moukayla, “O homem tranquilo” do filme, disse-lhes que podia perfeitamente explicar-lhes o que exprimiam os Haoukas e eles gravaram a descrição de Moukayla, frase por frase. Jean Rouch, que costumava dizer que os Haoukas falavam uma língua artificial, percebeu finalmente que afinal a língua que falavam era uma espécie de língua de Pentecostes, ou, como lhe chamaram os linguistas, uma glossolalia, ou seja, uma língua formada no momento da mistura das línguas. Trata-se de uma língua cujo sentido se pode procurar, mas que é impossível traduzir palavra a palavra. Rouch, tornou-se, sem saber, diz ele, “um campeão do estudo da glossolalia17 e eles obtiveram, graças a Moukayla um texto que dava a interpretação songhay daquilo que estava filmado. Foi a partir desta interpretação que Rouch trabalhou o seu comentário em francês. O resultado, depois da primeira exibição do filme, diz Rouch, foi sentir que toda gente olhava para ele como “para um maluco que comia cães”. Ora, precisamente, a polémica deste filme reside no tipo de comentário e de montagem. A montagem segue a ordem pela qual as imagens foram filmadas. O comentário, como dissemos, é o comentário baseado na interpretação de um dos intervenientes no ritual.

O ritual dos Haoukas chega-nos, o mais possível, em bruto, o que não significa, ‘tal como se passara’, nem ‘o mais próximo do real objectivo’. Em bruto, envolve necessariamente um cine-transe. Rouch, com as suas palavras e com a sua voz, procurava orientar, comover o espectador, introduzindo, por sua vez, segundo o sentido que ele queria dar às imagens, drama ou poesia ou os dois ao mesmo tempo.

O que é particular nos filmes de Rouch sobre os rituais de possessão é que há um

16

Stoller, The Cinematic Griot, 160.

17 Joelle Mayet-Giaume, «La polémique autour des Maîtres Fous», em Jean Rouch, ou, Le ciné-

teatro vivido, no sentido que lhe deu Michel Leiris18: os rituais de possessão envolvem uma espécie de teatro vivido ou também de teatro da crueldade, como o de Artaud, ou ainda de teatro total, em que a vida é e só pode ser apanhada enquanto acto teatral19 .

Em nome do surrealismo, com o qual Rouch “nunca deixou de reivindicar uma estreita filiação”, ele estava mais preocupado com a qualidade literária e evocadora do seu texto do que com a precisão científica20.

Para o cineasta senegalês Sembène Ousmane, num confronto histórico com Jean Rouch, em 1965, o problema da maior parte dos seus filmes, pode formular-se com a seguinte frase: “Tu olhas-nos como a insectos”21. O que Sembène Ousmane critica a Jean Rouch é a sua visão sobre a cultura africana. Para ele, no domínio do cinema, não basta ver, é preciso analisar. “O que interessa é o que está antes e o que está depois daquilo que nós vemos”, diz Ousmane22, quer dizer, não basta ver que um homem anda, é preciso saber de onde vem e para onde vai. Ousmane critica sobretudo os filmes puramente etnográficos de Rouch, em que se mostra a vida tradicional, sem se mostrar o contexto e a evolução. Há todo um trabalho da etnografia que Ousmane julga pobre e Rouch fundamental, de recolha e testemunho de uma cultura ritual em África que estava em vias de desaparecer. Esse trabalho é pobre, considera Ousmane, e a recolha dos contos e das lendas dos griots é vazia, se não houver uma explicação e análise muito clara daquilo que se passa.

Jean Rouch considera que para estudar uma cultura, para captar a verdade, é sempre necessário ver como um outro, um estranho, um estrangeiro. Há todo um sentido das imagens que nós não podemos apreender como um Songhay, mas que pode ser essencial para um estrangeiro, e para o mundo em geral; há toda uma potência gestual que as imagens carregam e que nenhum comentário pode traduzir ou explicar.

O elemento da estranheza constitui a literalidade das imagens, quer estejamos na esfera da ficção, quer estejamos na esfera da etnografia mais pura. Qualquer coisa irredutível a um comentário interpretativo, a uma tradução por palavras. O comentário de

18 M. Leiris, La possession et ses aspects théâtraux chez les Éthiopiens de Gondar, Homme

(Hermann) (Librairie Plon, 1958).

19

Peter Brook, O Espaço Vazio, trad. Rui Lopes (Lisboa: Orfeu Negro, 2011).

20

Colette Piault, «Parole interdite, parole sous contrôle», em Jean Rouch, ou, Le ciné-plaisir, ed. R. Prédal, vol. 81 (Condé-sur-Noireau: Corlet, 1996), 146.

21 Albert Cervoni, «Une confrontation historique en 1965 entre Jean Rouch et Sembène Ousmane:

Tu nous regardes comme des insectes», em Jean Rouch, ou, Le Ciné-plaisir, ed. René Prédal, vol. 81 ([Condé- sur-Noireau]: Corlet : Télérama, 1996), 104–106.

22

Rouch é descritivo, também ele literal. De facto, “não há meias medidas”, quer dizer, ou é realidade ou é ficção, diz Godard num texto sobre Eu, um negro, mas “todos os grandes filmes de ficção tendem para o documentário e todos os grandes documentários tendem para a ficção”. Ora, Jean Rouch filma da mesma maneira quando filma um ritual de possessão, de caça, ou quando filma um filme de ficção. É a abertura do possível enquanto categoria de produção do novo que importa aqui: a efabulação como experiência criadora. A câmara é a mesma câmara atenta e activa - capaz de captar a surpresa, o imprevisível. Se não houver surpresa perante a câmara, não há filme. E a surpresa é sempre um elemento estranho, um Outro absoluto. Tudo se passa, diz-nos ainda Godard, como se a famosa frase de Nietzsche: “temos a arte para não morrermos de verdade”, fosse a frase mais falsa do mundo 23.