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II. Eu, um negro, de Jean Rouch

8. Um devir-personagem, uma visão cristalina

A personagem de E. G. Robinson é uma personagem em devir, em formação, numa abertura essencial, desde o início até ao final do filme. Diz-nos, logo no início do filme, que não diz o seu verdadeiro nome porque é um estrangeiro. E o que vemos é as suas várias personagens, num processo de construção de uma personagem que precisa desesperadamente de viver, apesar dessa sua condição deslocada e estrangeira. As palavras de Oumarou Ganda alternam entre a sua personagem Edward G. Robinson, as suas fantasias como campeão de boxe Sugar Ray Robinson, e ainda o sonho de se tornar o marido da mulher que se chama a si mesma Dorothy Lamour. Cada personagem está num constante devir-outro. Vejamos um pouco melhor, este devir personagem de Edward G. Robinson, a partir das suas palavras.

É Sábado e Robinson vai à praia com os amigos. Ele quer Dorothy Lamour, quer ser feliz. “Para mim, é só no Sábado à noite que sou feliz. Para alem do Sábado à noite, toda a minha vida é má”38. Dirige-se a Dorothy Lamour, dizendo que também ele precisa de qualquer coisa, precisa de ter uma mulher e, mais tarde, filhos, que também ele tem de ser um homem feliz, como todos os outros. E de um plano de conjunto na praia, de Dorothy Lamour e E. G. Robinson, passamos para um ginásio com um ringue de boxe, E. G. Robinson equipa-se entra num ringue de boxe. “Talvez em breve possa ser pugilista. Vou chamar-me Ray Sugar Robinson e o meu manager vai ser o Mega Alason: Tarzan Jonhy Weissmuler. Vou defrontar o Hoogan Kid Bassey, o campeão do mundo e vamos fazer um combate (...)”39. A luta prossegue e Robinson vence. Ray Sugar Robinson é vencedor dos pesos pluma. Mas não: “Oh infelizmente eu não sou pugilista, é só um sonho. Eis os verdadeiros pugilistas”. Na imagem imediatamente seguinte vemos um ringue de boxe, um pouco mais cheio, um combate em curso. A diferença entre as duas cenas não é assim tão grande, mas temos pistas suficientes para perceber que aqui estamos face a verdadeiros pugilistas. E. G. Robinson e Petit Jules estão na bancada a assistir ao combate.

Todo o investimento de Robinson transita para sábado à noite, noite de dança, de álcool e de flirt com a sua Dorothy Lamour. No final da noite Edward G. Robinson bebeu

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demais, não tem dinheiro para pagar os seus copos no bar, é expulso a pontapé. E volta a sonhar:

em breve serei o marido de Dorothy Lamour. (...) e vou ser actor, como o Marlon Brando. A Dorothy Lamour vai esperar por mim à frente da minha porta porque, neste momento a casa poderia ser minha, eu seria o dono da casa. (...) Ela esperaria sempre por mim à noite. À noite ela fecha a porta. Não queremos ser perturbados, estamos descansados. E na nossa casa terei a minha Dorothy Lamour e o meu rádio. Ela vai dizer-me palavras de amor e vai tirar o seu vestido porque eu gosto de ver as suas mamas. Ela tem sede de amor. Na nossa cama aquilo que fazemos só a nós nos diz respeito40. Repare-se na utilização dos possessivos à medida que o desejo de posse se exprime: a minha porta, a casa que “poderia ser minha”, a “minha Dorothy Lamour e o meu rádio”, mas também aquilo que só a eles lhes diz respeito, a intimidade, qualquer coisa de que foi também obrigado a prescindir.

No final do filme, depois de uma frustrante cena de luta, bastante cómica, com um italiano que E.G. Robinson descobre na casa da sua amada, que é prostituta e, na realidade não faz se não o seu trabalho, Robinson está cansado e desiludido. Passeia-se com Petit Jules e sentam-se num ponto alto, a observar a lagoa de Abidjan:

Olha para isto Petit Jules. O que é que te faz lembrar? A lagoa... Com o que é que se parece? Diz- me que a lagoa se parece com outra coisa, que se parece com a nossa terra, o nosso país natal. A terra onde tu nasceste, a terra onde eu nasci. Onde o teu pai nasceu e onde o meu pai nasceu. Olha o Níger, como é maravilhoso (...). Quando éramos crianças, era no Toungouré que todos nos banhávamos, as crianças e toda a gente. (...) Nessa altura, Petit Jules, a Dorothy Lamour que tu vês não passava de uma miúda e eu era um miúdo que estava sempre a rir. Não olhes para mim que hoje eu estou triste. Dantes andava sempre alegre. Nessa altura divertia-me com a Dorothy Lamour. Brincávamos na água, mergulhávamos, fazíamos tudo. Nessa altura, para nós, a vida era bela. Olha ali Eddie Constantine que aprendeu a elegância em novo. Nós estávamos nus e ele não queria saber. Para se mostrar mais elegante do que nós, usava calções. Eis o Tarzan. Já bem constituído, era muito maior do que nós. O Tarzan é forte desde a infância. Para atirá-lo à água eram precisos três ou quatro41.

No plano, vemos uma menina pequena, depois um menino sorridente, em seguida, duas crianças brincam, depois um grupo de crianças brinca e mergulha de uma rocha para a lagoa, uma ou duas usam calções, mas estão quase todas nuas. E. G. Robinson lembra-se da sua infância e decide descrever aquilo que vê na lagoa, as crianças que brincam nas rochas, mergulham, chapinham na água, como se fossem eles, ele e os seus amigos e,

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através daquelas imagens reais, E.G. Robinson ergue a sua fantasia ou a sua memória de infância. Não se trata ali de uma memória. É uma coisa híbrida. Pois sabemos, ao olhar para as imagens que elas não são as memórias de E.G. Robinson, mas, no entanto, são essas crianças de que ele está a falar. As imagens não são uma representação da sua memória ou da sua fantasia. É a força das suas palavras que cria um duplo daquelas imagens, que as eleva a uma potência e, então, aquelas crianças podem ser efectivamente essas crianças de que ele fala e aquelas imagens podem ser o Níger e ser também a Lagoa de Abidjan, em simultâneo. É uma imagem dupla que é criada com as palavras de E.G. Robinson, e depois daquelas palavras, ela ganha força, ela pode muito mais do que antes. Os dois amigos levantam-se e caminham e a câmara acompanha-os, num longo plano sequência com que o filme vai terminar. E. G. Robinson é uma personagem que conta a sua história e que procura caminhos, personagens, para poder continuar. Conta a Petit Jules sobre a sua experiência na guerra da Indochina, gesticulando constantemente, correndo, atirando-se para o chão, teatralizando as posturas de guerra:

Matei vietnamitas com uma metralhadora, com uma faca, com granadas. É assim que se pega nas granadas, lançamo-las e logo a seguir atiramo-nos para o chão. Eu fiz isto e de nada me serviu, Petit Jules. Eu fiz tudo, tudo, mas de nada me serviu. Fiz tudo aquilo que os homens devem fazer, só que nada tem importância. Continuo o mesmo. Podemos estar de pé, rastejar (...), lançar granadas para a frente, tudo. (...). Matávamos pessoas. Mil, cinco mil pessoas (...). Escondíamo-nos na mata, nos arbustos, e também fazíamos emboscadas. Isto não é nada Petit Jules, nós fizemos de tudo. Matar pessoas... Ouve Petit Jules, para matar um vietnamita, pegas na faca e dás cabo dele - Faz um gesto com as mãos, ao mesmo tempo que Petit Jules se ri, como uma criança -. (...) Vi o sangue correr e vi camaradas a morrer a dois metros de mim. Vi os camaradas com quem bebíamos café morrerem ali mesmo, depois de o acabarem. (...) Nós não somos felizes, aqueles é que são felizes42”

Aqueles é que são felizes – são novamente os outros – com essa vida diferente, essas casas diferentes. Fazem desportos no mar, com barcos. “Dão-se ao luxo de montar em coisas que nem sei dizer como se chamam”, diz E. G. Robinson.

Olha Petit Jules, vê o que tenho escrito na mão: Perigo. Chamo-me Lorde Batio Batioum. Os meus amigos chamam-me Béliga Dégaligean, aviador de pára-quedas, chefe dos cowboys, D-18.4.95 D. Com apenas 17 anos sou um soldado de segunda. Quem diz D diz Danger (perigo), D, o homem perigoso, conhecido por Béliga Dégaligean, aviador de pára-quedas, chefe dos cowboys. Vamos Petit Jules, isto não é nada. Talvez a vida mude, não conseguimos ver porque ela é complicada...

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Somos dois amigos e vamos continuar a ser dois amigos. A vida é boa, A vida é bela. Tudo isto não é nada. Toma coragem e talvez também tenhamos uma vida boa... Tudo é complicado43.

No final do filme, uma nova personagem emerge: Béliga Dégaligean, aviador de pára-quedas, chefe dos cowboys, D-18.4.95, ‘inacabando’ o filme44. D de Danger (perigo): que a experimentação não se faz sem correr riscos, como veremos mais adiante.

O que é esta belíssima visão do final deste filme, na lagoa de Abidjan? Ela é cristalina, como a água da lagoa, é cristalina porque é feita de fragmentos múltiplos, talvez, mas não, ainda não é isto que constitui a matéria cristalina da visão. A visão daquele que não diz o seu verdadeiro nome não é uma memória de infância, não é daí que vem a sua força. A sua força também não vem de nenhuma imaginação prodigiosa ou de um ver mais. É uma outra visão, a deste antigo combatente da Guerra da Indochina, que não diz o seu verdadeiro nome, é um outro poder. Talvez um ver que não fixa nem se fixa e que capta o nunca visto, que capta isso que devem. Se o verdadeiro rosto das coisas é mutante, a sua visão só será vislumbrável a uma subjectividade em devir. A visão não cessa, na verdade, de se aproximar dos nossos olhos, mas nós não conseguimos ver, pois ela ainda não é para nós. Ou é para nós, mas enquanto já não nos reconhecermos a nós mesmos, quer dizer, é para nós enquanto estivermos em vias de mudar.

O acto de palavra é o que permite pôr à prova, neste filme, o enigma do povo que falta. Esse povo de que nos falou Paul Klee, essa salvação que existe, mas que não é ainda para nós, como dizia Kafka. O devir-personagem é uma forma de pôr em acto uma transformação radical, uma experimentação, em que a efabulação é acção, numa palavra viva e de cabeças múltiplas: um enunciado colectivo que a pouco e pouco, plantaria as sementes de um povo por vir. Como dizia ainda Paul Klee, não podemos fazer mais do que isso.

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Ainda que Oumarou Ganda, de certa forma, continue a sua história, num filme autobiográfico realizado por ele e que funciona, de facto como uma espécie de continuação de Eu, um Negro (Cabascabo, 1968)

Capítulo 3