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I. Mundos Possíveis: a emergência da imagem

2. O contador de histórias

O contador de histórias é o homem que poderia deixar arder completamente o pavio da sua vida na chama suave da sua narrativa. É nisto que reside a aura incomparável que envolve o contador de histórias.

Deixar arder completamente o pavio da sua vida na chama suave da narrativa é uma poderosa imagem, que dá conta de uma viva tensão em que repousa a arte de narrar. Há dois parâmetros essenciais que vão construir temporalidade do conto: a rememoração e a morte. Pelo conto, o narrador deixa o seu traço na trama da vida: “a marca própria de quem conta é detectável na história narrada, tal como a marca do oleiro no vaso de barro”5. Mas este traço é testemunha da íntima relação entre o acto de contar e a morte: a morte é essa experiência intransmissível que, no entanto, funda o valor de toda a experiência e, portanto, também das histórias que se transmitem. Aquele que morre é aquele que funda, sobre o acabamento da vida, uma sabedoria ou um saber. “Ora, acontece que não são apenas o saber ou a sabedoria dos homens, mas sobretudo a sua vida vivida (e é essa a matéria de que se fazem as histórias) que ganha forma transmissível precisamente naquele que morre”6. Na hora da morte todos se tornam dignos de serem escutados.

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Walter Benjamin, «O Contador de histórias», em Linguagem Tradução Literatura, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 5 (Assírio e Alvim, 2015), 162.

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Benjamin liga o declínio do conto à transformação da ideia da morte operada na sociedade burguesa do século XIX, que evacua a morte da esfera do quotidiano e da cena empírica, retirando-lhe o carácter público e colectivo. “Antes não havia casa nem quarto, onde não tivesse já morrido alguém (...). Hoje, as casas burguesas vivem em espaços que mantêm livres da morte, habitantes seguros da eternidade”7. A morte torna-se heterotópica. Conta-se sempre a alguém uma experiência que se viveu, presencialmente ou à distância, mas que se viveu, e conta-se essa experiência por necessidade, por razões que decorrem de estar vivo e de ir morrer, de uma aprendizagem que é preciso transmitir, de uma experiência que é preciso manter viva. Contar uma história a alguém é contar uma experiência que se teve e é sempre, também, actualizá-la, dar-lhe vida, uma vida que não é apenas a daquele que conta, uma vida que é do outro que ouve, de outros que a terão ouvido, vivido ou contado antes, de outros que ainda virão. De cada vez que uma história é contada, há uma mutação, uma renovação, uma transmutação da experiência. Neste sentido, uma história são sempre histórias, uma multiplicidade de experiências. No momento em que se conta uma história, por exemplo, quando um avô ou uma avó conta uma história a uma criança, há qualquer coisa que acontece, que passa de uma pessoa para outra, há uma experiência que é sempre comunitária - quem escuta uma história forma uma sociedade com aquele que conta. A força do conto, que Benjamin opõe ao mito, ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças, pois em tempos foi o primeiro da humanidade8.

Benjamin distingue dois grupos de contadores de histórias: o sedentário e o viajante. Os seus representantes mais arcaicos são o marinheiro e o camponês e estes dois grupos podem definir linhagens distintas de contadores de histórias. Porém, eles são antes de mais nada tipos arcaicos de contar histórias, de cuja íntima interpenetração depende o desenvolvimento das narrativas em toda a sua amplitude histórica. Encontramos a imagem de uma fusão entre estes dois tipos na Idade Média, com o seu sistema corporativo das oficinas, com os mestres sedentários, que já tinham feito as suas viagens antes de se fixar, e os aprendizes viajantes.

Os dois grupos representam as distâncias do espaço (os viajantes) e as distâncias do tempo (os sedentários) que vão definir os tipos de matérias que relatam, numa trama singular de espaço tempo, que corresponde à definição da aura: “o que é a aura? Uma trama

7 Ibid. 8

singular de espaço e de tempo: a única aparição de um longínquo por mais próximo que possa estar”.

Viajantes ou sedentários, os contadores de histórias eram sempre portadores de um saber do passado e o acto de contar uma história, num provérbio ou num conto popular, estava carregado comum fazer, com uma “indicação de ordem prática”. Mas “é cada vez mais raro encontrarmos pessoas que sejam capazes de contar uma história como deve ser”9. Esta mesma ideia era exposta em Experiência e pobreza, escrito em 1933, onde Benjamin desenvolve o problema do declínio da experiência no contexto da catástrofe da guerra e da possibilidade de um novo tipo de experiência. “Antigamente sabia-se exactamente o significado da experiência, ela era comunicada aos jovens, de forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios”10. O declínio da experiência instalou-se profundamente no homem moderno, o que talvez seja natural numa geração que viveu, entre 1914 e 1918, uma das mais terríveis experiências da história: “não é verdade que no fim da Guerra os homens regressavam mudos dos campos de batalha? Não mais ricos, antes mais pobres em experiências partilháveis?”11. Mas, diante à experiência da catástrofe, que história se poderá contar? Face à catástrofe já nem de experiência se poderá falar, mas sim de um choque e de uma não inscrição da experiência. O que havemos de dizer nós, nos nossos dias, ao sermos testemunhas dos genocídios mais bárbaros? Este tipo de experiência escapa de tal forma à capacidade da nossa estrutura de percepção e de intelecção, que a verdade é que não podemos falar de experiência. Não se pode ver, não se pode sentir, apesar da urgência em ver e em sentir, uma experiência que ultrapassa os limites da compreensão. E é assim que se perde a transmissibilidade, a capacidade de partilhar. Alguns anos depois, escreveram-se muitos livros sobre a guerra e, no entanto, eles não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Como transmitir a experiência da guerra?

A natureza da arte de contar é épica e a sua tradição é oral. A antiga noção de diegese, que Platão define no livro III da República12, fazendo a apologia do poeta épico e a crítica ao poeta trágico, pode iluminar o carácter épico do conto, a que Benjamin se refere no texto sobre o contador de histórias. Aquilo que Platão critica aos poetas trágicos é o seu recurso à imitação ou à mimese e o facto de o poeta proferir um discurso como se fosse

9 Ibid., 148.

10 Benjamin, «Expérience et pauvreté». 11

Benjamin, «O Contador de histórias», 148.

12 Platão, A República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, 7a ed. (Lisboa: Fundação Calouste

outra pessoa (393c). Proferir um discurso como se fosse outra pessoa é recorrer à imitação, afastando-se da ideia de verdade, mas é, também, afastar-se da experiência do próprio relato. Se, para Platão, a poiesis é diegesis, ou seja, toda a poética é narrativa (diegesis), é no sentido em que pela diegesis o poeta alcança mais directamente a vida em que participa. O aedo ou o rapsodo recitam oralmente uma experiência participando nela; o poeta imitador não relata uma experiência, mas representa uma experiência, transformando-a numa representação que substitui a experiência. Para Platão a importância do mantimento da integridade da figura daquele que conta e do seu relato oral, liga-se à sua extrema desconfiança daquilo que afaste este relato da sua fonte viva. Trata-se, na verdade, de defender da linguagem a expressão poética e o verdadeiro conhecimento que, para Platão, é pré-linguístico. Platão faz parte dessa tradição que acredita, como nos disse Giorgio Colli, que “as doutrinas filosóficas são transmitidas com o ensinamento oral”13 Compreendemos, então, que, relativamente à palavra, Platão tenha uma enorme desconfiança, que encontramos exposta no Crátilo. A posição de Crátilo é uma posição que poderíamos chamar de naturalista, pois para ele os nomes devem denominar apenas aquilo que denominam por natureza e não por convenção. Para Platão, o verdadeiro conhecimento é pré-linguístico, e os nomes devem guardar o mais possível a sua relação com a natureza ou com o ser vivo em que participa. A grande desconfiança de Platão é a desconfiança para com a palavra escrita, no sentido em que esta é inerte e é exterior à vida e à natureza. Ora, o poeta épico distingue-se do poeta trágico – especificamente no que se refere ao uso da palavra – no sentido em que ele a usa o mais possível intacta, digamos, tal como ela participa na própria vida, em vez de a usar como imitação, como cópia de outra coisa, afastando-a sempre cada vez mais da verdade. À luz de Platão, o contador de histórias de Benjamin será épico, no sentido de um relato que transmite a matéria ou a experiência viva da palavra. Esta ideia será reforçada por Benjamin relativamente ao teatro épico de Brecht, que será analisado mais à frente.

Se a arte de contar histórias se viu mutilada pela experiência da guerra, o primeiro grande indício da decadência da arte de narrar foi, na era moderna, o advento do romance, com o advento da tipografia. A natureza do romance é completamente diferente da dos contos tradicionais, pois ele não provém de qualquer tradição oral, nem é assimilado por ela e não pode prescindir do livro. Se é da assimilação de uma oralidade que decorre de uma partilha da experiência, que se constitui a experiência do contar e a sua

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transmissibilidade, o romancista, por sua vez, vive em isolamento: o movimento do romance é o da introspecção, não há exteriorização, no sentido de se dirigir a um outro, não há uma partilha da experiência que se conta. Também Giorgio Colli exprimiu uma visão que podemos aproximar da de Benjamin, opondo a experiência – que para Colli é a experiência da antiguidade – ao texto escrito, avaliando as consequências avassaladoras da imprensa e da técnica sobre o homem moderno: a redução da sua actividade espontânea e plena, por um lado, e o isolamento, por outro: “o homem moderno escreve os seus pensamentos, as suas poesias, etc. e espera ou a glória por parte dos muitos (um espectro) ou uma ressonância nos poucos. Mas estes não lêem ou lêem quando o autor já está morto”14 .

Segundo Benjamin, o romance centra-se em dois problemas chave, ou um, pois um decorre do outro: sentido da vida e enclausuramento. Perguntar pelo sentido da vida é qualquer coisa que não se poderá abarcar na sua totalidade, pois a vida vive-se. Sentido e vida estão intimamente ligados. Mas o romance transforma a vida no seu objecto, enclausura-a num sujeito para lhe dar uma unidade. Só assim se pode dar conta do sentido da vida e, finalmente, encontrar uma moral para a história, com a palavra fim. Benjamin diz, pelo contrário, que não existe qualquer narrativa para a qual não faça sentido perguntar “e como é que a história continuou”, pois a natureza da narração autêntica é o seu inacabamento, enquanto a do romance é o seu fechamento. Com o desenvolvimento da imprensa e com o apogeu da burguesia, não só o romance encontra as condições favoráveis à sua instauração enquanto prática narrativa dominante como há outra coisa que vem pôr em risco qualquer resquício de comunicação autêntica: a informação: “Todas as manhãs somos informados sobre o que de novo acontece à superfície da Terra. E, no entanto, somos cada vez mais pobres de histórias de espanto”15. Não haver espanto decorre do facto de, quando os acontecimentos chegam até nós, estarem já completamente impregnados e saturados de explicações, servindo, acima de tudo, a informação.

A experiência do contar não explica nem interpreta aquilo que conta, se o fizer, destruirá a possibilidade da transmissibilidade da própria experiência, na qual reside o sentido do acto de contar. É isto que acontece na antiga história que Benjamin nos traz de Heródoto, sobre o Rei Psaménite, rei dos egípcios, que foi vencido, feito prisioneiro e

14 Ibid., 85. 15

depois humilhado pelo rei dos Persas, Cambises.

[Cambises] deu ordens para que expusessem Psaménite na estrada pela qual iria passar o cortejo triunfal dos Persas. E organizou ainda as coisas de modo a que o prisioneiro visse passar a filha, agora na condição de serva, com o cântaro para ir à fonte. Enquanto todos os egípcios se lamentavam e clamavam perante este espectáculo, Psaménite permaneceu calado e impassível, de olhos postos no chão; e pouco depois, ao ver passar o filho, arrastado na fileira dos que iam ser executados, manteve-se também impassível. Mas, ao deparar com um dos seus criados, um homem velho e pobre, no meio dos prisioneiros, começou a bater com os punhos na cabeça, dando sinais da mais profunda tristeza.

Segundo Benjamin, este relato é um testemunho da mais autêntica arte de narrar, no sentido em que, do ponto de vista da informação, ele é praticamente nulo, limitando-se a descrever aquilo que foi presenciado, sem qualquer explicação ou interpretação do narrador. Se nos perguntarmos, hoje, porque terá o rei Psaménites reagido daquela forma, apenas na nossa própria experiência deste relato vislumbraremos uma resposta. Tal como as sementes de que fala Benjamin, que ficaram hermeticamente fechadas durante milénios nas câmaras funerárias das pirâmides, conservando até hoje o poder de germinar, também o relato contém, em germe, as sementes que o tornam, até hoje, susceptível de desenvolvimentos: a nossa experiência é como o sol e a água que podem fazer germiná-las e é este poder de germinação que possibilita a sua transmissibilidade.

Compreender-se-á então que Benjamin vá mais longe e pergunte ainda “se a relação que o contador de histórias tem com a matéria, a vida humana, não é ela própria uma relação artesanal, e se a sua tarefa não é a de trabalhar a matéria-prima das experiências – as alheias e as próprias – de forma sólida, útil, e única16. Giorgio Agamben, no seguimento desta ideia de Benjamin, fala dessa silva (floresta) que o verdadeiro contador alcança: “aquele que toca na sua matéria encontra facilmente as palavras para dizê-lo. Onde acaba a linguagem, começa, não o indizível, mas a matéria da palavra. Quem nunca alcançou, como num sonho, esta substância lenhosa da língua, a que os antigos chamavam silva (floresta), ainda que se cale, está prisioneiro das representações”17. A pergunta de Benjamin, que surge já no final do texto sobre o contador de histórias, remete-nos para o núcleo central deste ensaio, a saber, para além das considerações sobre o declínio da figura arcaica do narrar, ou no seu âmago, encontramos um exercício místico que parece alcançar um nível mais originário de responsabilidade ética, que precedeu a destruição da experiência. Encontraremos esta ideia

16 Ibid., 177. 17

desenvolvida a partir das obras e da figura do justo de Leskov, como veremos mais à frente. Voltando a Giorgio Colli, apesar das suas severas críticas à palavra escrita, a dado momento encontramos um louvor à escrita: “se a vida nascente jaz sepultada no passado, se a nossa existência só pode extrair um significado por meio de uma escavação nessas trevas, de modo a fazer esguichar aquilo que está esquecido, então à escrita pode caber um elevado apreço, quando for usada como instrumento dessa escavação”. Colli sugere um critério para avaliar toda a literatura: enquanto a sua natureza for a da simples reconfiguração dos acontecimentos, ela atenuará sempre a natureza e o imediato, numa forma abstracta. No entanto, se ela for ditada pelo esforço e pela urgência de rememoração, diz Colli, então, será resgatada por essa nostalgia do instante e do imediato. “A rememoração é a musa do autor da prosa”, diz-nos, por sua vez Benjamin, nos seus fragmentos sobre o romance a narrativa18. Resgatar o instante e o imediato por um esforço de rememoração corresponde a recuperar a vida, aí onde ela se encontra perdida ou presa. Mais à frente debruçar-nos-emos sobre a ideia de rememoração (e também de escavação). Foquemos por agora este “chamar da obscuridade aquilo que parece perdido, mas que não está perdido, diz Colli, pois está sempre “lá em baixo, pronto a cintilar de novo”, pronto a germinar, quando for restaurada a sua imediatez. Pois, também em Benjamin, se trata de alcançar, nas mais longínquas camadas da história, uma experiência da velha humanidade, uma voz que já tem pouco de humana: a voz silenciosa da natureza. Neste sentido, os contadores de histórias, mensageiros de experiências, serão sempre escavadores e tradutores.