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II. Pierrot, le fou, de Jean-Luc Godard

8. A voz de Pierrot: palavra em transformação

“A palavra que age de acordo com a significação pura que transforma torna-se trágica. A palavra enquanto suporte puro da sua significação é a palavra pura. Mas a seu lado existe uma outra, que se transforma a partir do seu ponto de origem, em direcção a outro, o da sua foz”41. Ao princípio de linguagem do drama-trágico lutuoso, Benjamin chama “palavra na transformação”. Trata-se de uma vida da palavra que decorre no plano do puro sentimento, na qual ela se purifica, ao passar de som da natureza a puro som do sentimento. Na palavra na transformação, a linguagem é apenas um estádio de passagem ou de transição naquilo a que Benjamin chama “o ciclo da sua transformação”. O drama- trágico lutuoso comunica-se nesta palavra que descreve o processo de transformação que vai desde o som natural, passando pelo lamento, até à música.

A típica tragédia do filme noir em que parece, à primeira vista, consistir a história de Pierrot não é, como sabemos, acompanhada por uma estrutura narrativa trágica, tal como foi definida na Poética de Aristóteles. A estrutura de Pierrot, para além de completamente irregular do ponto de vista da forma narrativa, pois cada episódio ou capítulo se configura de maneira diferente, como se nos fossem apresentadas várias possibilidades de títulos e capítulos, não cumpre o princípio cronológico, ainda que no final sejamos capazes de reconstituir a cronologia. Mas é na voz do filme, uma voz que continuamente se transforma num espaço e num tempo indeterminados, que encontramos a expressão de um drama de outro tipo: o drama trágico lutuoso, que Benjamin distingue da tragédia. No trecho acima encontramos dois modos de ser da palavra: a palavra pura que, na tragédia, é trágica sem mediação e a palavra na transformação. A palavra trágica, “que age de acordo com a significação pura”, tal como se exprime na tragédia, assenta num conjunto de princípios do discurso falado entre seres humanos, emergindo ao mesmo tempo que o trágico e apresentando cada palavra ou cada fala como tragicamente decisiva relativamente à acção trágica. Palavra e acção estão, na tragédia, inexoravelmente ligadas, constituindo-se como forças dominadoras e leis indissolúveis. Por sua vez, a palavra na transformação é o princípio de linguagem do drama trágico alemão. A voz do luto não é, como na tragédia, uma “força dominadora”, mas um “sentimento”42. Benjamin coloca a questão de saber que relação metafísica ou que conexão interna terá o sentimento lutuoso com a palavra, com a fala humana, que seja capaz de provocar a sua passagem do plano do

41 Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, 269. 42

puro sentimento para a ordem estética, quer dizer, como é que a linguagem, que absorve em si o luto, é, ao mesmo tempo, expressão desse luto. Há uma vida da palavra que passa de som da natureza a puro som do sentimento e o drama lutuoso é esse drama no qual se descreve esse percurso que, do som natural, passando pelo lamento, leva à música.

Diz-nos Benjamin, que “a essência do drama trágico já está contida naquela sabedoria antiga que diz que toda a natureza começaria a lamentar-se se lhe fosse dado o dom da linguagem”43. Este processo, esta passagem do som da natureza ao puro som do sentimento não é uma travessia contínua: “a meio deste caminho a natureza vê-se traída pela linguagem e aquele enorme constrangimento do sentimento torna-se luto”. A natureza vê-se traída pela palavra, enquanto mundo da significação, tempo histórico sem sentimento, e fica paralisada, abrindo-se uma fenda nessa palavra trágica, e emergindo a palavra enquanto elemento de transformação, que não significa senão a si mesma e ao sentimento mudo da natureza, ao luto, apenas comunicável na música, segundo Benjamin.

A voz, as vozes, em Pierrot, devem ser tomadas no sentido benjaminiano da palavra na transformação. As vozes de Marianne e Pierrot, monocórdicas, alternantes e discordantes, parecem vir de um tempo fora do tempo, o da eternidade reencontrada no paraíso perdido. É por isso que a vida que Godard procura filmar não pode ser filmada no presente, mas é preciso fazê-la sempre retornar numa declinação potencialmente infinita, ou seja, sem que o retorno seja o de um passado idêntico a si próprio. São vozes desencarnadas, que levam a cabo uma estranha troca sem diálogo. Como vozes de amantes que sempre se conheceram, que se reencontram eternamente no filme, nesse mundo feito do que acontece entre eles, da história da sua viagem, da sua errância, do diálogo surdo dos amantes.

À primeira vista pode parecer que a narração das vozes é uma narração retrospectiva, que começa pelo fim e anda para trás. Mas a verdade é que as vozes de Pierrot não têm referente narrativo, nem no fim nem a meio, nem no princípio. Elas estão sempre num meio que não é um meio que se possa medir, o seu tempo é indeterminado. Também o lugar de onde falam nos é desconhecido, parece ser um lugar fora do filme, como que em cima, a pairar sobre o filme, mas ao mesmo tempo as vozes são imanentes ao filme, exprimem-no, a vários níveis e como que do seu interior: um interior que está fora, um fora que está dentro.

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A fronteira entre interior e exterior é esbatida, anulada, revolvida. Há uma constante passagem da voz off para a voz in. No início do filme, por exemplo, quando Ferdinand- Pierrot lê, na banheira, o livro de Élie Faure, não só é a mesma voz como é o mesmo livro que a voz lê, mas ao mesmo tempo, o tom da voz, diz-nos que não é a mesma voz, criando- se uma indeterminação do mesmo tipo da que acontece entre Pierrot e Marianne, na sua viagem a duas vozes, que ora conversam, em cena, ora estão em off, esbatendo as diferenças entre o discurso indirecto e o discurso directo e produzindo uma voz que atravessa vários locutores, classicamente distintos, mas aqui envolvidos numa única voz, polifónica.

A voz destes amantes alcança uma espécie de grau zero da voz off, como sugere Serge Daney, num texto de 1977 (sobre Bresson, O Diabo Provavelmente, a voz off e outras coisas) que vem marcar retroactivamente a violência do surgimento da imagem ou a sua imprevisibilidade. É uma voz que não relata a narrativa e parece até criar uma linha de fuga relativamente a ela, arrancando a acção ao contínuo temporal e abrindo uma brecha de onde surge a imagem. Se, em A Imagem-Tempo, Deleuze insiste na dimensão romanesca deste filme de Godard, essa ideia tem sobretudo que ver com a potência que a voz off adquire neste filme, de romper com o curso natural das coisas: se se trata de uma potência romanesca, é no sentido preciso que lhe deu Bakhtine, em Estética e Teoria do Romance. Bakhtine estabeleceu uma oposição entre discurso poético e discurso romanesco. O discurso poético é um discurso directo, orientado para o seu objecto e encontrando apenas a resistência do objecto, e não a resistência do discurso do outro. É uma dinâmica que acontece entre a linguagem e o objecto. O discurso romanesco, pelo contrário, visa o objecto, não em si mesmo, mas no lugar de convergência entre duas vozes divergentes e discordantes. Ele visa o objecto, mas sempre no fluxo de uma palavra que se transforma, entre essas duas vozes. Se Godard usou, segundo Deleuze, todas as técnicas do discurso indirecto livre, a expressão desta ideia aproxima-se da ideia de polifonia de Bakhtine.