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II. Eu, um negro, de Jean Rouch

2. Ficção, efabulação, potência do falso

Oumarou Ganda é Edward G. Robinson, uma alcunha que ele adopta porque os amigos o acham parecido com o actor americano com o mesmo nome. Ele é livre para dizer o que lhe passa pela cabeça, face às suas acções, face às imagens. Petit Touré será, por sua vez, Eddie Constantine, outro actor de origem americana muito conhecido, naturalizado francês, Alassane Maiga é Tarzan, que dispensa apresentações, Gamby é Dorothy Lamour, diva americana de filmes americanos de série b. O realizador de cinema – Jean Rouch – vê- se perante um povo duplamente colonizado por histórias vindas de outros lugares, mas também pelos seus próprios mitos, que se tornam entidades impessoais ao serviço do colonizador. Rouch não pretende, no entanto, fazer-se etnólogo do povo, nem inventar uma ficção que ainda seria uma história privada, pois qualquer ficção pessoal, como qualquer mito impessoal, está sempre do lado dos “senhores”, da língua maior, do colonizador. Resta-lhe a possibilidade de se dar intercessores – ou seja – de tomar personagens reais e não fictícias, colocadas na posição de efabular, criando as suas próprias lendas.

Se Rouch dá um passo no rumo das personagens, as personagens dão um passo no rumo do autor: duplo devir. A efabulação não é um mito pessoal, mas também não é uma ficção pessoal: é uma palavra em acto ou um acto de palavra através do qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa o assunto privado da política e produz, ela mesma, enunciados colectivos. Não se trata então dos mitos de um povo passado, mas da efabulação do povo por vir. E é neste acto de efabulação que a palavra será um acontecimento vivo. É preciso que o acto de palavra se crie, como uma língua menor numa língua dominante, precisamente para exprimir uma impossibilidade de viver sob

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dominação. É a personagem real que sai do seu estado privado, ao mesmo tempo que o autor deixa o seu estado abstracto, para formar, a dois, ou com mais, os enunciados – o discurso indirecto livre – sobre o Níger, em Eu, um negro. E tal como num ritual de possessão, o transe efectua-se no devir das personagens, que é um duplo devir: as personagens reais tornam-se num outro, quando efabulam, mas também o próprio autor se faz outro, ao se conferir personagens reais.

“A ficção é inseparável de uma veneração que a apresenta como verdadeira”, diz Rouch, na religião, na sociedade, no cinema, no sistema de imagens. Como o cineasta Pierre Perrault, também Rouch compreendeu tão bem as palavras de Nietzsche, “elimina as tuas venerações”. Dirigir-se às suas personagens reais, não é apenas eliminar a ficção, mas libertá-la do modelo de verdade que a penetra, para encontrar a pura e simples função de efabulação que se opõe a este modelo. Se Rouch critica a ficção enquanto modelo de verdade preestabelecida, enquanto possível a realizar, é porque ela exprime necessariamente as ideias dominantes ou o ponto de vista do colonizador. À ficção, tomada nesta acepção, Rouch opõe, não o real, mas a efabulação ou a potência do falso, que é função fabuladora de uma cultura menor, colonizada e pobre. “Aquilo que o cinema deve alcançar não é a identidade de uma personagem, real ou ficcional, através dos seus aspectos objectivos ou subjectivos. É o devir da personagem real, quando ela se põe ela própria a ‘ficcionar’”10, contribuindo, assim, para a invenção do seu povo. O que é determinante na efabulação é a passagem de um antes a um depois da personagem, as suas transformações ou transições: o tornar-se um outro para si mesma. Também o cineasta se torna outro, quando toma a voz das personagens reais. O cineasta e as personagens, comunicam assim, no processo de invenção de um povo e de criação de uma língua estrangeira, numa língua dominante, criando uma imagem cristalina ou um modo de discurso que afecta, ao mesmo tempo, a ficção e a realidade.

Não existem, para Rouch, fronteiras entre o filme documental e o filme de ficção: “O cinema, a arte do duplo, é sempre a transição do mundo real para o mundo imaginário, e a etnografia, a ciência dos sistemas de pensamento dos outros, é um permanente cruzar de um universo conceptual para outro; uma ginástica acrobática em que perder o pé é o menor dos riscos”11.

10

Deleuze, Cinéma 2. L’Image-temps, 196.

11 Jean Rouch, Cine-Ethnography, ed. Steven Feld, annotated edition (University of Minnesota

A linguagem é interrompida, construindo-se uma narrativa baseada no discurso indirecto livre, dessa arte das passagens em que a voz é sobretudo um ser intermédio, de passagem. Se há discurso directo, focado nas imagens directas, sem nenhuma interferência indirecta, descrevendo fielmente o testemunho do passado, exprimindo a memória, há também discurso indirecto, em que o narrador toma a voz das personagens, mas para as integrar numa reconstrução dos acontecimentos. Sobretudo, o que há é a passagem de um ao outro, do directo ao indirecto, que rompe com a linearidade da história, fazendo o tempo saltar. A visão desdobra-se e este desdobramento é feito através desse dispositivo a que, na literatura, se chamou, discurso indirecto livre, que aproxima num mesmo enunciado, o ponto de vista do narrador e o da personagem, tornando-os indiscerníveis. Pasolini chamou a este tipo de aproximação entre dois pontos de vista num mesmo enunciado, que corresponde a uma superação da diferença entre o ponto de vista objectivo e o ponto de vista subjectivo, a subjectiva indirecta livre, transpondo e redefinindo o conceito literário de discurso indirecto livre, para o plano da imagem cinematográfica12.

“Eu não digo o meu verdadeiro nome” (de Robinson) e “ele não diz o seu verdadeiro nome” (de Rouch) tornam-se um só enunciado, duplo por natureza. Se E. G. Robinson nunca diz o seu verdadeiro nome, o seu nome aparece no seio de um jogo e este jogo é sempre um jogo de espelhos, um fenómeno de duplicação. As duas vozes do filme, distintas e irredutíveis uma à outra, constituem-se como um único acto de palavra, numa espécie de monólogo partilhado, em que o motor ou desencadeador é um fenómeno de estranheza.

Aquilo a que Rouch chamou um “cinema-verdade” não é um cinema da verdade ou uma narrativa da verdade, mas um cinema que destrói qualquer modelo de verdade, um discurso sempre duplo, indirecto-livre, um discurso sempre “de duas cabeças” ou de “mil cabeças”. A potência do falso tem a ver com este cinema que apresenta uma descrição que é sempre dupla, de espelhamento ou dupla-face.