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I. Mundos Possíveis: a emergência da imagem

3. O intraduzível da tradução e o movimento intenso da língua

A tradução é a passagem de uma língua a outra, por uma cadeia contínua de transformações19. Vimos, no capítulo anterior, como a linguagem, segundo Benjamin, é essencialmente tradução: ela está imediatamente envolvida no mundo e cada língua está empenhada na tradução de cada outra língua, pois só na tradução a linguagem das coisas pode ser absorvida pela linguagem do conhecimento e do nome. Benjamin funda o conceito de tradução no acto de nomear e toda a tradução transportará sempre consigo vestígios

18 Walter Benjamin, «Paralipomena: fragmentos sobre romance e narrativa (entre 1928 e 1935)», em

Linguagem Tradução Literatura, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 5 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2015), 213.

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desse mesmo acto. À pergunta sobre o que nos diz afinal uma obra literária, Benjamin responde-nos, no seu texto sobre a tradução, que ela diz muito pouco para aquele que a compreende, afastando resolutamente a literatura, como fará mais tarde por relação à narração, do plano da informação e do enunciado. A recusa, para a linguagem humana, de um estatuto instrumental e da ordem da comunicação20 será reforçada no contexto da tradução.

Reduzir a tradução a um puro meio de informação, seria como reduzir toda a literatura a à informação sobre o conteúdo dos livros. Ora, aquilo que uma obra literária contém, para lá da informação (de que se ocupam os maus tradutores) é provavelmente, diz Benjamin, aquilo que nela existe de inapreensível, de misterioso e de poético. Como se pode reconstituir este mistério?

“A tradução é uma forma. Para a apreender enquanto tal, é necessário regressar ao original, pois nele reside a lei da tradução contida na sua traduzibilidade”21. A tradução é uma forma, no sentido goethiano do termo, ou seja, no sentido em que se constitui como o regresso à sua matriz. O conceito de forma deve ser visto no conceito do pensamento morfológico de Goethe, diz-nos Maria Filomena Molder, “como figura particular de uma matriz do desenvolvimento, como o crescimento derivado, fixado provisoriamente, de uma imagem originária, como seja o crescimento particular desta e daquela planta a partir da matriz da folha”22. A relação entre a tradução e o original terá como estrutura este princípio formante segundo o qual, “tal como as manifestações da vida se relacionam da forma mais viva com o vivo sem significarem nada para ele, assim também a tradução nasce do original – de facto, não tanto da sua vida, mas da sua “sobrevivência””23.

A traduzibilidade das obras é inerente a certas obras, o que não significa que a tradução seja para elas essencial, mas que há uma significação inerente aos originais que se manifesta na possibilidade de estes serem traduzidos. Arrisquemos afirmar que esta dimensão da possibilidade de tradução ou a traduzibilidade de uma obra é, ao mesmo tempo, a matéria inapreensível e o sentido de toda a tradução. É a traduzibilidade que

20 Importa distinguir entre o sentido do termo ‘comunicação’ a que se refere o texto aqui em causa,

tomada no seu sentido mais pobre, próximo da noção de informação, e um modo mais elevado de comunicação, enquanto experiência de comunicabilidade, que encontrámos expressa no texto de Benjamin, sobre o Narrador, de que a passagem sobre a analogia entre marca do narrador no conto e a marca da mão do oleiro no vaso de argila é uma imagem pregnante.

21 Benjamin, «A tarefa do tradutor», 92. 22

Maria Filomena Molder, «A Interrupção Catastrófica da Tradução: A Torre de Babel», em O Absoluto que pertence à Terra (Vendaval, 2005), 82.

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permite que qualquer tradução, por melhor que possa ser, nunca signifique nada para o original, mas entre com ele numa íntima conexão24. A ideia da vida e da sobrevivência das obras de arte deve, segundo Benjamin, ser compreendida num sentido totalmente objectivo e não metafórico, sendo que o âmbito da vida se determina sempre historicamente. As traduções, que não são meros meios de transmissão de conteúdos, “nascem quando, na sobrevivência de uma obra, esta atinge o seu período áureo” e quando, nelas, a vida do original alcança o seu desenvolvimento último, mais amplo e sempre renovado.

As línguas não são estranhas umas às outras. Elas são aparentadas, à priori e para lá de todas as relações históricas concretas, num querer dizer (das Meinen), ou seja, no facto de, em cada uma delas como um todo, se querer dizer uma e a mesma coisa - qualquer coisa que, no entanto, não é acessível a nenhuma delas isoladamente, mas apenas à totalidade das suas intencionalidades que se complementam umas às outras:

“Nas palavras Brot e Pain o que se quer dizer é o mesmo, mas não o modo de o querer dizer. É devido a esse modo de querer dizer que as palavras significam coisas diferentes para um Alemão e para um Francês, que elas não são permutáveis e que, em última análise, tendem para a exclusão mútua; e é por via disso que querem dizer que elas, tomadas em absoluto, significam algo que é o mesmo e idêntico”25.

Há, então, no interior de cada língua, uma tensão entre o querer dizer [das Meinen] – a que deve aspirar toda a tradução – e o modo de querer dizer [die Art des Meinens] – a realização particular de cada língua, aquilo que distingue cada língua de cada outra.

Se a tradução é uma forma, um movimento para um original, que nele próprio contém a traduzibilidade26, o parentesco entre duas línguas não é no entanto assimilável a uma vaga semelhança e aquilo a que a tradução aspira, enquanto forma, sempre provisória e temporária de nos confrontarmos com a estranheza das línguas, está longe de ser a semelhança com o original. Aquilo a que a tradução aspira indirectamente é a essa língua mais elevada, língua pura, que está “intensamente oculta nas traduções”, que é intraduzível, mas que se pressente em todas as línguas.

Não só o parentesco entre as línguas não envolve semelhança, como também não pode ser definido pela identidade da descendência (apesar, segundo Benjamin, do conceito

24

Ibid.

25 Ibid., 97. 26

de descendência continuar a ser imprescindível para a determinação de um uso mais restrito da língua). Há uma conexão histórica vital - de interrupção, reconfiguração - entre a tradução e o original, pelo que, havendo uma sobrevivência do original na tradução, ela não será nunca da ordem de uma teoria imagem-cópia. “Podemos identificar a tensão entre querer dizer e modo de querer dizer no interior de cada lingual com a sua musicalidade, a que Benjamin chamou a sua musicalidade”27. O núcleo genético ou a força motriz da tradução – que acontece nestas suspensões de sentido – é, então, podemos dizer, de ordem afectiva e é essencialmente intraduzível.

A traduzibilidade envolve, então, um sair de si, num movimento em direcção a um outro, a uma língua estranha ou estrangeira, mas neste sair de si, ao mesmo tempo que se rompe com o movimento contínuo das línguas, suspendendo-se a sua continuidade, alcança-se um sentido oculto que reside num nível de linguagem mais definitivo, digamos. A tarefa do tradutor envolve precisamente um trabalho de dar expressão à íntima relação entre as línguas, levado à prática, de forma embrionária e intensiva, um processo de integração das várias línguas numa língua única: um processo que decorre da própria vida das línguas, e que nelas faz eclodir a semente da língua pura.

Não só não faz parte da essência da tradução aspirar a uma semelhança com o original, como não será também na subjectividade do tradutor que se encontra, segundo Benjamin, a essência da tradução, como exprime o seu texto, citando Rudolf Pannwitz: “O erro fundamental de quem traduz é o de fixar o estado da língua própria, que é obra do acaso, em vez de a fazer entrar num movimento intenso por intervenção da língua estrangeira”28 . No movimento da tradução, não é então de uma equivalência que se coloque ao nível das línguas que se trata, fixando a identidade própria da língua e de quem traduz, mas a identidade apaga-se para fazer valer uma alteridade que se exprime na sua historicidade.