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O que comunica a linguagem? – pergunta Benjamin em Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana63. A resposta é: “cada linguagem comunica-se a si mesma” Comunica-se na língua e não por meio da língua. Ou seja, não devemos confundir o medium que define a linguagem e o meio através do qual se comunicam conteúdos: a essência espiritual é em si medium – elemento que reflecte a imediatez de toda a linguagem. Ainda no início do mesmo texto, Benjamin refere como a linguagem flui em todas as coisas e “não existe acontecimento ou coisa, nem na natureza animada nem na natureza inanimada, que não participe de algum modo da linguagem, porque a tudo é essencial comunicar o seu

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Marcel Proust, A la recherche du temps perdu, volume 2 : Le Côté de Guermantes, suivi de «Sodome et Gomorrhe» (Robert Laffont, 1988), 10–11.; apud Maldiney, Aîtres de la langue et demeures de la pensée, 190.

62 Maldiney refere-se ao conceito heideggeriano de dobra. 63

Walter Benjamin, «Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana», em Linguagem Tradução Literatura, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 5 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2015), 9–29.

conteúdo espiritual”64 Segundo Benjamin, a essência-de-linguagem das coisas é a sua linguagem, ou seja, a linguagem de um candeeiro, por exemplo, “não comunica o candeeiro (porque a essência espiritual do candeeiro, na medida em que é comunicável, não é o próprio candeeiro, comunica antes o candeeiro-linguagem, o candeeiro na comunicação, o candeeiro na expressão”65. As coisas – mudas por natureza – estão, no entanto, mergulhadas na linguagem. Se aquilo que é comunicável numa essência espiritual é a sua linguagem e nenhuma outra coisa isto significa que não há mediação nesta comunicação.

A essência-de-linguagem do ser humano, por sua vez é a sua língua, ou seja, as palavras. É nomeando que o homem comunica e a linguagem humana é a única linguagem que nomeia todas as outras coisas – é este o seu traço singular e essencial. É nomeando as coisas que o ser humano se comunica ou comunica a sua essência, não através dos nomes, então, no sentido em que eles designem as coisas, mas nos nomes. A dimensão do nome é a dimensão espiritual da linguagem, que não conhece meio, objecto ou destinatário. A linguagem espiritual ou a linguagem dos nomes distingue-se daquela que Benjamin define como uma concepção “burguesa” da linguagem, que designa todas as coisas através das palavras, utilizando-as como meros instrumentos de transmissão de uma ideia a um receptor ou destinatário – humano. Trata-se, nesta última, de uma concepção convencional da linguagem enquanto sistema de signos, que tem como único protagonista o ser humano. A essência espiritual da linguagem só se exprime de forma pura no nome ou na nomeação universal, onde culminam “a totalidade intensiva da linguagem como essência espiritual absolutamente comunicável e a totalidade extensiva como essência universal comunicante (nomeadora)”66. Deste modo, apenas a linguagem humana se pode considerar perfeita, do ponto de vista da universalidade e da intensidade. No entanto, se a essência espiritual em geral – das coisas e do homem – se identifica com a essência da linguagem, então, “a coisa será, de acordo com a sua essência espiritual, o medium da comunicação e aquilo que nela se comunica é este medium, ou seja, a linguagem”. Tal como Maldiney, também Benjamin, considera a linguagem enquanto expressão ou essência espiritual comunicante mais vasta, que integra esta outra dimensão – a comunicação através da palavra – particular à linguagem humana. Mas a equivalência entre essência espiritual e linguagem, em Benjamin, estabelece uma ligação íntima entre filosofia da linguagem e

64 Ibid., 9. 65 Ibid., 11. 66 Ibid., 15.

religião, conduzindo à noção de revelação, que exprime o traço da natureza divina da essência espiritual. Esta natureza divina da essência espiritual não conhece o inexprimível, pois invoca-o, no nome, e exprime-o na revelação. Na revelação, o nível de expressão corresponde ao mais puramente espiritual. Ora, se a linguagem das coisas é muda, sendo por isso imperfeita, as coisas só podem comunicar-se umas com as outras, como diz Benjamin, por meio de uma “comunidade mais ou menos material” que – tal como qualquer outra linguagem - não conhece qualquer mediação.

Benjamin recorre ao texto do Génesis, do Antigo Testamento67, para compreender a linguagem nas suas aporias. A palavra divina é criadora, “ela diz a palavra luz e a luz aparece”68, no entanto, relativamente à criação do homem, Deus prescindiu da palavra e moldou-o a partir do barro: o homem é um ser da terra, que pertence à terra, como sublinha Maria Filomena Molder. Assim, Deus liberta a palavra no homem, depositando no ser humano o poder criador que era seu. Agora é o homem que deve nomear (não criar) e, através do nome, conhecer. É por isso que a linguagem, diz Benjamin citando Hamann, “é mãe da razão e da revelação, seu alfa e ómega”69, mas o nome nunca alcança o Verbo criador, do mesmo modo que o conhecimento não alcança a Criação.

É pela palavra, então, que o homem se liga à linguagem das coisas – ela é o nome das coisas. Não se trata de uma relação arbitrária entre as palavras e as coisas, em que a palavra é um signo puramente convencional das coisas – esta é a concepção “burguesa” da linguagem, em que a linguagem se limita a fornecer meros signos. Mas se a relação entre os nomes e as coisas não é arbitrária, como é que o homem nomeia as coisas? Benjamin sublinha (para evitar o equívoco de uma teoria da linguagem de teor místico) que a palavra não pode ser a própria essência das coisas, pois as coisas em si não contêm a palavra. As coisas foram criadas pela palavra divina e não conhecidas, no seu nome, pela palavra humana. O nome que nós humanos damos aos seres e às coisas, dá conta deles, nas suas manifestações imediatas e esta nomeação assenta na forma como as coisas se nos comunicam ou na sua própria linguagem. É então na magia muda da natureza que reside a natureza da nomeação:

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Não se trata, como refere Benjamin em Linguagem Tradução Literatura, 17, e como sublinha Maria Filomena Molder em O Químico e o Alquimista, Benjamin leitor de Baudelaire (Lisboa: Relógio d’Água, 2011), 23, de fazer a exegese do texto bíblico, mas de utilizar a tradição que está mais próxima a Benjamin e na qual ele foi educado para compreender a linguagem nas suas aporias.

68 Molder, O Químico e o Alquimista, Benjamin leitor de Baudelaire, 23. 69

Como é que uma árvore se manifesta imediatamente? Pela sua morfologia, pela sua resistência ao vento, pelo crescimento das folhas, pelo crescimento dos frutos, pela sombra que dá. Como é que nós utilizamos uma árvore? Descansando à sua sombra, comendo os seus frutos, arrancando os seus ramos para nos aquecermos, deitando-a abaixo para a transformar em madeira com vista à construção de casas, de pontes70.

Assim, deve haver uma tradução da linguagem muda das coisas para a linguagem humana, que envolve uma concepção do sem-nome no nome. A linguagem é, neste sentido, essencialmente tradução: “Todas as linguagens são traduzíveis umas nas outras. A tradução é a passagem de uma língua a outra, por uma cadeia contínua de transformações”71 e só na tradução pode a linguagem das coisas ser absorvida pela linguagem do conhecimento e do nome. Desde que o ser humano saiu do estado paradisíaco – em que só conhecia a língua adâmica da nomeação, língua do conhecimento perfeito – que há tantas traduções quantas línguas. O pecado original é a hora do nascimento da palavra humana. Nela, o nome deixou de viver intacto, teve de sair da linguagem do nome ou, nas palavras de Benjamin, “da magia imanente que lhe é própria, para se tornar expressamente mágica, por assim dizer, a partir de fora”. É assim que a palavra passa a comunicar alguma coisa que está fora de si mesma e passa a ser um instrumento exterior de comunicação ou um signo.

Identifica-se em toda a língua uma tensão ou “tonalidade sentimental” entre aquilo a que Benjamin chamou, ainda no mesmo texto, o ‘querer dizer’, o movimento próprio de cada língua, que aspira alcançar um lugar onde todas as línguas se poderão encontrar e o ‘modo de querer dizer’, a realização particular do querer dizer em cada língua, aquilo que distingue cada língua de cada outra. Veremos estes conceitos mais demoradamente um pouco adiante. Aspirar à língua pura, espécie de metamorfose da língua adâmica operada pela punição de Babel, é a tarefa de toda a tradução. Para Benjamin a tradução, a poesia, a filosofia, a arte, podem tocar, nem que seja apenas de raspão, a língua original da nomeação.

Encontramos, na base da teoria do nome, aquilo a que Benjamin chamou faculdade mimética, no seu texto com o mesmo nome72. Tanto este texto como a Doutrina das Semelhanças e os Problemas da sociologia da linguagem, bem como o texto sobre a tradução73, trazem elos determinantes para uma aproximação mais clara da teoria da

70 Molder, O Químico e o Alquimista, Benjamin leitor de Baudelaire, 23. 71 Benjamin, «Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana», 21. 72

Walter Benjamin, «Sobre a faculdade mimética», em Linguagem Tradução Literatura, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 5 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2015), 56–59.

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nomeação de Benjamin. Todos sabemos como os animais desenvolveram e utilizam para se exprimir e para sobreviver uma forte potência mimética: os inúmeros processos de camuflagem, por exemplo, desde o das borboletas, ao das cobras e dos camaleões. Mas o homem, segundo Benjamin, é ainda mais apto a produzir (e também a perceber) semelhanças do que os animais.74. Para além das semelhanças conscientemente apercebidas (Benjamin dá o exemplo dos rostos), há um vasto campo de semelhanças inconscientes ou não apreendidas que funcionam como os estímulos e incentivos que estão na base da faculdade mimética do ser humano. O semelhante não é o absolutamente idêntico a outra coisa. É a percepção da semelhança que produz a identidade na diferença e a diferença na identidade. A identidade ou o “Eu”, por exemplo, é uma construção – a elaboração de um discurso autobiográfico que tem por base, também, a faculdade mimética. Trata-se aqui, então, de um acto que estabelece ligações diferenciando ou que diferencia estabelecendo ligações. Neste sentido, a faculdade mimética é produtora, tal como a faculdade da imaginação em Kant, cujo princípio é também, essencialmente, um princípio comparativo ou de afinidades. Mas o momento em que se percebe uma semelhança é tão fugaz, como a velocidade de um relâmpago: “ela passa veloz, talvez seja recuperável, mas não podemos fixá-la, como acontece com outras percepções. Oferece-se ao olhar de forma tão fugidia e passageira como uma constelação”75.

Reconhece-se então, indiscutivelmente, segundo Benjamin, a ideia já há muito defendida de que existe uma influência grande da faculdade mimética na linguagem. Interessa a Benjamin, por um lado o papel da faculdade mimética no que se refere à origem da linguagem em geral, não no sentido de encontrar a origem de determinadas línguas, pois “as mais antigas línguas conhecidas não têm nada de primitivo”76. A origem da linguagem em geral só se poderá compreender a partir da observação das transformações a que uma língua está submetida.

No texto Problemas da Sociologia da Linguagem, Benjamin aponta para o facto da teoria da linguagem implicar necessariamente outras disciplinas, para lá da linguística e da

Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 5 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2015), 50–55; Walter Benjamin, «Problemas da sociologia da linguagem», em Linguagem Tradução Literatura, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 5 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2015), 60–88; Walter Benjamin, «A tarefa do tradutor», em Linguagem Tradução Literatura, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 5 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2015), 91–106.

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Benjamin, «Doutrina das semelhanças», 50.

75 Ibid., 52. 76

sociologia, nomeadamente, a psicologia infantil, a psicologia animal e os estudos recentes da linguagem gestual e da linguagem dos sons. O elemento onomatopaico é considerado, por Benjamin, um elemento chave na génese da linguagem, partindo da ideia de Rudolf Leonhard, que afirma que toda a palavra e toda a língua é onomatopaica. No entanto, para compreender esta acepção de onomatopeia a semelhança deverá ser compreendida como semelhança não-sensível. “Imaginemos palavras de diferentes línguas com a mesma significação, ordenadas em torno do seu centro, que é o seu significado”77. Importa compreender de que modo é que todas estas palavras, que podem não ter nenhuma semelhança sensível entre si, se assemelham àquele significado que está no centro. Esta semelhança só pode acontecer porque uma palavra não é nunca um puro signo. A ligação entre a palavra e a coisa implica um esquema – o nome – ou seja, a coisa tal como ela é visada pelo homem. Assim, se se considera a palavra onomatopaica, não é porque ela imite a natureza, mas sim a sua tradução no medium do espírito, ou seja, na essência espiritual da linguagem. Neste sentido podemos dizer que cada palavra – falada ou escrita – é uma espécie de imitação sonora da totalidade indeterminada do sentido, de cada vez visada pelo pensamento, sendo que o sentido daquilo que é dito ou que é escrito está imediatamente ligado ao sentido visado. Esta imediatez ou esta vertente mágica da linguagem – como lhe chama Benjamin – não é separável do aspecto semiológico da linguagem: a parte mimética da linguagem só pode aparecer num determinado suporte. Esse suporte é o elemento semiótico ou comunicativo da linguagem.

O acto de leitura e de escrita supõe que sejamos capazes dessa ligação entre as letras, as palavras e as frases, ligação esta que envolve também diferenciação e interrupção entre elas. Ler ou escrever não se limita a uma decifração nem a uma produção de uma sucessão organizada de letras, palavras ou frases (sentido profano da palavra leitura), mas implica este outro nível, descontínuo, que alcança o conjunto do sentido como algo a interpretar, ou seja, como simbolizante (o sentido mágico da palavra leitura). Benjamin dá o exemplo do astrólogo que lê o futuro nos astros, como uma constelação a partir da qual se revela o destino e aponta para o facto de, nos tempos primitivos da humanidade, esta ser a forma de leitura por excelência. Será que esta forma de leitura simplesmente se perdeu, na nossa linguagem actual, ou será que se transformou? A hipótese de Benjamin é que o sentido mágico da leitura tenha migrado, “numa evolução de milénios, para o campo da linguagem e da escrita, criando, neste domínio, o mais completo arquivo de semelhanças não-

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sensíveis”78. Importa, no entanto, sublinhar – tomando a linguagem como um tal arquivo – que apenas no cruzamento entre os dois níveis da linguagem, a que Benjamin se refere, no texto sobre a tradução, como o simbolizante e simbolizado, se pode produzir verdadeiramente sentido, pois se o sentido não se reduz ao conteúdo comunicativo das palavras e das frases, no entanto, ele supõe a expressividade do conjunto linguístico e é nele que a fissura do simbolizante se abre. “Em toda a linguagem e nas suas criações resta, para lá do que é comunicável, um não comunicável, um simbolizante e um simbolizado. Simbolizante, apenas nas criações finitas das línguas, mas simbolizado no próprio devir das línguas”79.

Benjamin encontra nos estudos de Lévy-Bruhl80 sobre a linguagem primitiva, uma variante da teoria onomatopaica da linguagem, que aponta para uma dimensão activa dessa linguagem, assente em descrições desenhadas, mas também numa tendência para imitar tudo o que se ouve, vê e, em geral, pode ser apreendido, por todo o tipo de impressões: sonoras, gustativas, visuais, tácteis. Lévy-Bruhl refere-se, não a criações onomatopaicas no sentido estrito, mas a “gestos vocais descritivos”81, como determinantes para a compreensão das qualidades mágicas próprias dos primitivos.

Benjamin sublinha, desta vez a partir de uma ideia de Richard Paget, a ideia de uma definição da linguagem em que o elemento primário é o gesto e não o som, ou seja, segundo Paget, o elemento fonético é o suporte de uma comunicação mimético-gestual, colocando, como substracto original da linguagem, um gesto expressivo.

Um gesto expressivo, propriamente ligado à ligação entre linguagem e pensamento é também o que encontra Benjamin naquilo a que Jean Piaget chamou a função egocêntrica da linguagem, que se distingue da sua função socializada, no sentido em que se constitui como linguagem apenas para o sujeito que fala, sem envolver qualquer dimensão comunicativa. Mas, diz-nos Benjamin, que esta função egocêntrica só pode ser compreendida numa estreita articulação com os processos do pensamento, tornando-se mais evidente quando surge algum obstáculo à execução de uma tarefa. Vygotsky, que utilizou nos seus estudos alguns dos métodos de Piaget, concluiu que, quando as crianças

78 Ibid., 55. 79

Benjamin, «A tarefa do tradutor», 91–109.

80 O estudo de Lévy-Bruhl, citado por Benjamin, no seu texto “Problemas da Sociologia da

Linguagem” é: Les fonctions mentales dans les sociétés inférieures, Paris, 1918. Benjamin segue com entusiasmo os argumentos de Lévy-Bruhl sobre a mentalidade primitiva, lamentando não existir, na sua exposição, uma articulação entre a mentalidade primitiva e a histórica.

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se deparavam com uma dificuldade, o coeficiente da linguagem egocêntrica subia rapidamente quase para o dobro do coeficiente normal, sugerindo que “a interrupção de uma ocupação que está a decorrer facilmente é um factor importante de produção de linguagem egocêntrica” e que “o pensamento só entra em acção quando a actividade que até aí decorreu sem perturbações é interrompida”82.