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II. Pierrot, le fou, de Jean-Luc Godard

2. Os factos da trama

Paris. Ferdinand, ou Pierrot (como é tratado por Marianne, que por sua vez é também Marianne Renoir), é casado com uma italiana com dinheiro e com filhos, acaba de perder o emprego e está insatisfeito com a sua vida. A sua mulher acha que ele deve aceitar emprego na empresa do pai. Por acaso, a baby-sitter que a mulher lhe apresenta casualmente, é Marianne, ou Mariane-Renoir, como lhe vai chamar Pierrot ou Ferdinand ou o narrador, uma bela rapariga com quem teve uma história de amor há cinco anos atrás. Apaixonados, para viverem a sua história de amor, terão de se livrar de um cadáver, pois Marianne está envolvida numa história de gangsters e traficantes de armas. Acabam por ter de fugir, numa espécie particular de road movie, pela estrada fora. Saem de Paris, “por um sentido único”. Em fuga, Marianne vai contando a Ferdinand-Pierrot a sua história complicada. Ferdinand-Pierrot sente-se confuso. Existem dois bandos: um deles é dirigido pelo irmão de Marianne e no outro, rival, está Marianne, com o objectivo de o espiar. Marianne acaba por usar Ferdinand-Pierrot num golpe de génio que permite desfazer-se do bando rival e Ferdinand, sentindo-se traído, volta para a cidade completamente esvaído. A caminho de Paris, tenta acabar com a vida numa linha de comboio, mas muda de ideias quando o comboio está quase a alcançá-lo e salta, escapando ileso. Acaba por reencontrar Marianne, mas está desconfiado e amargurado. A identidade de Marianne é descoberta e ela acaba por ser morta. Ferdinand-Pierrot, não encontra outra solução senão seguir o fim trágico de Marianne. Numa espécie de ritual amoroso, pinta o seu rosto de tinta azul e acende o pavio. Muda de ideias à última da hora, mas o fio do pavio de explosivos com que decidiu terminar a sua vida é mais rápido do que ele.

Mas a verdadeira trama de Pierrot não é esta. A trama de Pierrot envolve uma série de acontecimentos que transportam as personagens num constante desdobramento. Ferdinand, a quem Marianne chama Pierrot e a quem chamaremos também assim, mantém

ao longo do filme esta dupla identidade, bem como Marianne, que é ao longo do filme também Marianne Renoir, numa identificação explícita com um quadro de Renoir, Menina com ramo de flores (1888). O desdobramento da identidade das personagens equivale a uma despersonalização num jogo de reflexos apresentado em série5, tal como a encontramos também na pintura de Edouard Manet. A questão do sujeito é neste filme profundamente trespassada por uma experiência ou por uma trama ao mesmo tempo interior e exterior, uma trama alucinatória se quisermos, que se revela numa espécie de arqueologia do visível. Se a imagem é alucinação não é no sentido de uma experiência interior, a distinção interior exterior é esbatida no filme, a favor do movimento da série – uma série de acontecimentos presentes, passados e futuros, sem que seja respeitada uma ordem cronológica. O eu define-se por esta série de sensações, imagens, percepções, ideias, lembranças, previsões, emoções, desejos, volições, etc. e são as conexões entre estes acontecimentos que constituem a trama. A série de acontecimentos não pode ser conectada pelo eu que constantemente se transforma noutro, se deforma. Ela será sobretudo desenvolvida a partir de qualquer coisa que podemos aproximar do “aspecto”, de que falou H. Taine6, relativamente à pintura de Edouard Manet: “enquanto associa, num instantâneo, vários pontos do espaço ligando cruzamentos distantes, esta junção ou síntese asignificante, é o facto de um autómato que se ergue no encéfalo e abre passagem no cérebro, para introduzir uma imagem sem duração, por uma linha errática que faz série dos seus elementos, que nenhum eu poderia ligar”. É aquilo a que Deleuze chamou o autómato ou a máquina abstracta que, justapondo as imagens em série, quer no plano figural, quer no plano material, equivale sempre a um pôr em tensão ao serviço de uma mise en scène paradoxal e constituída por discordâncias, cuja primeira função é tornar visíveis ou sensíveis forças mediúnicas, que se situam entre as coisas. A desordem narrativa, o facto dos elementos não se encadearem de forma narrativa, de acordo com uma composição dotada de um centro coerente, torna cada um dos elementos um acontecimento dotado de autonomia em si mesmo, cujo reflexo na multiplicidade de acontecimentos em que se reflecte, cria uma espécie de anti-estrutura cujo movimento constante é produzido ponto em série todos os elementos, a partir da sua extrema singularidade e sem privilegiar nenhum em particular. É a série7que importa, o movimento da série, automático e sempre deslocado

5 No que se refere à noção de série,Thierry de Duve aproxima Godard, no contexto do cinema e

Manet, no contexto da pintura: Chateau, Dominique, de Duve, Thierry, e M. Foucault, La peinture de Manet ; suivi de Michel Foucault, un regard, ed. M. Saison, Traces écrites (Paris: Seuil, 2004).

6 Eric Alliez, L’œil-cerveau, nouvelles histoires de la peinture moderne (Paris: J. Vrin, 2007), 210. 7

de si mesmo. O trabalho da série opera sempre ao nível da superfície das imagens, dos seus reflexos umas nas outras, esbatendo a relação entre o reflexo e o suporte que reflecte e vendo no tema apenas uma maneira de poder exprimir-se, exibir-se, prosseguindo à superfície. É por isso que o indivíduo, o sujeito da percepção, tende a dissolver-se no anonimato e que se existe alguma espécie de retrato, este não será nunca do tipo psicológico, mas um retrato que valoriza apenas a superfície, o que necessariamente implica uma desconstrução das noções de sujeito, de espaço geográfico e de tempo cronológico. O que acontece com o desdobramento de imagens de Pierrot-Ferdinand e Marianne-Renoir é que, havendo um reforço da singularidade de cada uma daquelas figuras, pela repetição diferencial da série, essa singularização não opera por semelhança e, na verdade, a semelhança parece faltar. O mecanismo da série coloca todas as imagens ao mesmo nível, não há hierarquias, não há ponto de referência. Todas elas, em simultâneo, são todas elas em simultâneo, mas sem princípio de semelhança. Pierrot nunca se assemelha a Ferdinand: nunca chegamos a perceber a razão de ser, a ligação, a história entre Pierrot e Ferdinand, não sabemos porque é que Marianne lhe chama Pierrot e porque razão ele repete: “não me chames Pierrot, chamo-me Ferdinand!”. Por isso, não há um Ferdinad a quem chamam Pierrot, nem sequer um Ferdinand inserido na sociedade capitalista que gostava de ser Pierrot, escritor e amante de literatura. Há os dois ao mesmo tempo e sempre em tensão. Entre o autor e os seus anónimos resta apenas essa margem, essa superfície multifacetada e sempre em vias de se desdobrar.